05 Setembro 2019
"Tornando-se assim um instrumento sem vontade própria, o estúpido será capaz de todo o mal e, ao mesmo tempo, incapaz de reconhecer-se mau ou de reconhecer maldade em seus atos. Aqui está o perigo de um abuso diabólico. Como resultado, as pessoas serão destruídas para sempre."
O texto é de Dietrich Bonhoeffer, publicado originalmente no livro Widerstand und Ergebung. Briefe und Aufzeichnungen aus der Haft. A tradução é de Petronella Maria Boonen, a quem agradecemos o envio do texto.
A estupidez é mais perigosa que a maldade. Contra o mal se pode protestar; o mal pode ser exposto, revelado; pode também ser evitado, se necessário, até pela força; o mal sempre carrega o germe da autodecomposição, deixando pelo menos um desconforto naquele que o pratica. Diversamente, não há como se defender da estupidez. Nada pode ser feito aqui com protestos ou com violência; razões não a convencem; simplesmente não se dá crédito a fatos que contradigam o próprio preconceito – em tais casos, o estúpido se torna ainda mais resistente – e se esses fatos são incontestáveis, podem com facilidade ser postos de lado como casos isolados e sem sentido.
O estúpido, ao contrário da pessoa má, sente-se completamente satisfeito consigo mesmo; sim, ele até se torna perigoso, enfurecendo-se facilmente quando é refutado. Portanto, a relação com o estúpido exige muito mais cautela do que com a pessoa má. Nunca se há de convencer o estúpido pela razão – é inútil e perigoso. Para saber lidar com a estupidez, é preciso antes procurar entender sua natureza. Não se trata essencialmente de um defeito intelectual, mas algo que atinge a humanidade do sujeito. Tanto é assim que existem pessoas de inteligência extraordinariamente ágil que são estúpidas e pessoas intelectualmente pesadas que podem ser tudo, menos estúpidas.
Para nossa surpresa, chegamos à seguinte conclusão: parece que a estupidez não é propriamente um defeito congênito, mas um processo em que as pessoas se tornam estúpidas sob certas circunstâncias, ou deixam-se fazer estúpidas de forma recíproca. Também observamos que a estupidez aparece mais em pessoas ou grupos propensos ou condenados a viver em comum do que em pessoas mais fechadas, reservadas e solitárias. Assim, parece que a estupidez é um problema mais sociológico do que psicológico. É uma forma especial de influência das circunstâncias históricas sobre o homem, isto é, uma consequência psicológica de certas circunstâncias externas. Em uma análise mais detalhada, verifica-se que toda forte expansão externa do poder, seja política ou religiosa, golpeia um grande número de pessoas com estupidez. Sim, parece que é uma lei psicológica e sociológica. O poder de alguém precisa da estupidez de outrem.
O processo não é que, de repente, algumas faculdades – como a intelectual - definhem ou fracassem, mas sim que a independência interna da pessoa vai sendo roubada pela impressão esmagadora do desenvolvimento do poder, até que - mais ou menos inconscientemente – essa pessoa renuncia a encontrar seu próprio comportamento em relação às situações que a vida lhe apresenta.
O fato de o estúpido ser muitas vezes teimoso não significa que ele seja independente. Conversando com ele, você quase pode sentir que seu discurso nem sequer tem a ver com ele mesmo, com aquilo que o constitui. Trata-se de frases de efeito, slogans e chavões que se apoderaram dele. Ele está enfeitiçado, cego, abusado e maltratado em sua própria natureza. Tornando-se assim um instrumento sem vontade própria, o estúpido será capaz de todo o mal e, ao mesmo tempo, incapaz de reconhecer-se mau ou de reconhecer maldade em seus atos. Aqui está o perigo de um abuso diabólico. Como resultado, as pessoas serão destruídas para sempre.
Disso decorre que somente um ato de liberação – e não um ato de instrução – poderá superar a estupidez. Na grande maioria dos casos, para superar a estupidez, a pessoa terá de aceitar que uma genuína libertação interior só se tornará possível após a libertação externa; até então, sem essa condição, teremos que desistir de todas as tentativas de convencer os estúpidos. A propósito, nesse estado de coisas, fica bem claro que em tais circunstâncias é vão tentar saber o que "o povo" realmente pensa, mesmo porque, ao mesmo tempo - nessas dadas circunstâncias – qualquer resposta seria supérflua para o pensador e realizador responsável.
A Palavra da Bíblia que diz que o temor de Deus é o começo da sabedoria (Salmos 111: 10); diz que a liberação interior dos humanos, para uma vida responsável diante de Deus, é a única verdadeira superação da estupidez.
De resto, esses pensamentos sobre a estupidez são reconfortantes, pois não permitem tratar a maioria das pessoas como estúpidas a todo custo. Realmente, isso dependerá da tendência dos Poderes Instituídos, vale dizer, se querem tornar seu povo estúpido ou se buscam a independência interior e sabedoria de seus governados.
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Da estupidez - Dietrich Bonhoeffer. 1943 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU