20 Mai 2019
"Vamos guardar o pessimismo para tempos melhores", é o convite do escritor e teólogo de Libertação, Frei Betto, diante da dramática involução política e cultural registrada no Brasil sob o governo Bolsonaro.
Uma deriva autoritária não muito distante, na verdade, das dinâmicas de desconstrução da democracia que também se registram na Europa (e na Itália), como foi mencionado durante o seminário "Brasil: democracia em crise. Alarme para a América Latina", promovido no dia 14 de maio na Lumsa pela Fundação Basso e pelo Comitê Italiano Lula Livre, com a presença, além de Frei Betto, de juristas, professores e filósofos brasileiros e italianos.
A entrevista é de Claudia Fanti, publicada por Il manifesto, 18-05-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Embora, a tendência seja geral, o Brasil - foi apontado - representa um caso significativo daquelas “autocracias eletivas” marcadas, como destacou Luigi Ferrajoli, pela intolerância por todo vínculo constitucional, com base em uma nova forma de política à qual os mercados, "os verdadeiros soberanos absolutos", pedem "uma única coisa: disciplinar a sociedade".
E é neste laboratório de neoliberalismo ultra-autoritário constituído pelo Brasil que a esquerda, segundo Frei Betto, é convocada a arregaçar as mangas, resgatando os erros cometidos pelos governos do PT.
A greve de professores, estudantes e trabalhadores da educação contra os cortes para a educação pode ser um sinal de uma retomada da iniciativa pela esquerda?
Para que a esquerda retome a ofensiva, é necessário que ela retorne ao trabalho de base, à formação de novos militantes, à elaboração de um projeto de país. Quando entrei no governo Lula, a primeira coisa a que me dediquei foi a criação de uma equipe de educação popular, a Rede de educação cidadã (Recid), constituída por 800 educadores populares pagos pelo governo e mil voluntários. E ainda, quando em novembro de 2014 propus a Dilma, logo que ela foi reeleita, para apoiar a Recid, a presidente não tinha ideia de que existisse uma equipe de 800 educadores no governo chamados para realizar um trabalho de conscientização com as famílias beneficiárias do programa bolsa-família.
O problema é que não conseguimos transmitir o sentido do processo político que estávamos vivenciando. Nós nos limitamos a oferecer bens pessoais, em vez de investir, com decisão, nos bens sociais. E com isso criamos uma nação mais de consumidores que de cidadãos e cidadãs aptos a assumir um protagonismo político. Não é por acaso que Paulo Freire dizia que a cabeça do homem pobre tende a ser o abrigo do opressor. E a isso se soma a desmobilização provocada pela cooptação dos movimentos populares que, com honrosas exceções como o MST, passaram a representar mais o governo junto às bases do que as bases junto ao governo.
E assim, depois de 13 anos de PT, as pessoas escolheram Bolsonaro ...
O escolheram também porque o candidato em que teriam votado estava preso. E porque a facada sofrida por Bolsonaro, sobre a qual tantas dúvidas foram levantadas - inclusive por mim -, o afastou do debate, transformando-o em uma vítima. Mas outro fator decisivo para sua vitória foi a manipulação de redes digitais, que me recuso a chamar de redes sociais porque é muito duvidoso que criem sociabilidade. Que, inclusive, é o horizonte em que Steve Bannon se move, e o que explica por que, apesar de toda a mídia dos EUA, com exceção de Fox, ter se oposto a Trump, este tenha vencido; apesar de todas as mídias inglesas serem contra o Brexit, os eleitores tenham decidido deixar a Europa e apesar de toda a mídia brasileira atacar Bolsonaro, foi ele quem conquistou a presidência. O problema é que não temos controle sobre os algoritmos e eles sim, conseguem enviar milhões de fake news para milhões de celulares.
Tudo isso, no entanto, não tira o fato de que a esquerda cometeu o erro de trocar um projeto de Brasil, aquele desenhado nos documentos originais do PT, com um projeto de poder. E, ao fazer isso, tenha deixado abertas brechas para a ofensiva da direita. Sem mencionar que a falta de autocrítica por parte do PT sobre os escândalos de corrupção favoreceu a ideia de uma corrupção generalizada, causando um profundo descrédito.
Tem sido amplamente demonstrado que o governo Bolsonaro expressa um mix mortífero de neoliberalismo e ultra-autoritarismo. Essa é a lógica que orienta o desmantelamento da educação pública?
O quadro é o da desestatização em curso em nível mundial, baseada em duas ideias fundamentais: que o Estado deve funcionar como uma empresa e, portanto, deve ser administrado não pela classe política, mas por quem tenha competências na iniciativa privada e que deve ser tirada do Estado a responsabilidade pelos direitos sociais. Assim, numa época de mercantilização total de todas as dimensões da vida, os direitos universais também devem ser privatizados, a partir da alimentação, saúde e educação. O aspecto mais significativo dos cortes de Bolsonaro é que o programa de financiamento estudantil, de maior interesse para os proprietários de escolas privadas, tenha sido o mais protegido.
Bolsonaro chegará ao fim do mandato?
O governo está tão desconjuntado e atravessado por conflitos internos que a oposição não deve fazer quase nada para combatê-lo. Seu descrédito é endógeno. Não sei o que irá acontecer, mas compartilho a opinião do líder da oposição na Câmara Alessandro Molon, segundo a qual é melhor que Bolsonaro permaneça, em vez de ver o general Hamilton Mourão subir ao poder. Porque, ao contrário do presidente, que não tem o apoio nem do mercado, nem da grande mídia e nem de toda a força armada, seu vice desfruta do apoio total de todas essas forças. E assim, poderia impor um regime muito mais duro ao Brasil. Por incrível que pareça, Mourão, com seu perfil elegante e aparentemente democrático, é mais perigoso que Bolsonaro.
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"Vamos guardar o pessimismo para tempos melhores". Entrevista com Frei Betto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU