23 Abril 2019
Existem dramas que tocam os indivíduos, outros que abalam uma civilização inteira. Notre-Dame era um símbolo, não da França ou da cristandade, mas de uma cultura milenar que despertava um sentimento profundo de reverência. Essa sacralidade imanente se consumiu no último incêndio.
O depoimento é de Michel Maffesoli, professor emérito da Sorbonne, membro do Institut Universitaire de France, publicado por L’inactuelle, revue d’un monde qui vient, 16-04-2019. A tradução é de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco.
Na funesta noite de 15 de abril, a Notre-Dame de Paris queimava! Pouco a pouco, uma imensa multidão foi se reunindo ao redor. Impotente, mas em comunhão de destino com esse espírito de pedra em total incandescência. Povo silencioso. Depois, subitamente, cantava ou rezava a “Ave Maria”. Na Place Saint Michel, no Quai d’Orléans, na Pont Saint Louis, a emoção era sublimada por um canto que nada tinha de ofensivo, mas que ressoava como o eco de uma alma coletiva que, desde a Idade Média, envolve essa figura protetora da cidade.
Assim como Victor Hugo, em "Notre-Dame de Paris", publicado em 1831, inúmeros escritores a celebraram. Não estariam eles enfatizando que seus sinos, em particular seu bordão, emocionam mesmo os espíritos mais insensíveis e, em certas ocasiões, chegam a inflamar a cidade como um todo? O que causa espanto é o clima de devoção reinante ao redor da catedral. Algo que se assemelha a um pensamento meditativo. Vem-me à mente a observação de Heidegger, que considerava “o pensamento como um exercício de devoção”. A devoção característica daqueles que se devotam a algo. O devoto assemelha-se igualmente a uma viga mestra de madeira que fornece a sensação de segurança e solidez. Notre-Dame existe como uma viga mestra fincada na terra para servir de fundação a toda forma de estar junto.
O oportunismo midiático que impregna a grande imprensa deplorou esse incêndio ao bel prazer, como uma ameaça perigosa ao fascínio exercido por essa Igreja, mundialmente conhecida, que atrai 14 milhões de turistas todo ano, situando-a, assim, no mesmo plano da Disneylândia.
Redução de ótica utilitarista que não capta a força do imaginário, causa e efeito de uma edificação como essa. Os construtores das catedrais eram animados por um outro objetivo: uma encarnação do sagrado. A emoção coletiva que tomou conta da população ao ver a essa catedral queimar não é outra coisa senão a irrefutável permanência do que Joseph de Maistre denominava o “resíduo divino”.
Resíduo como substrato sólido de qualquer sociedade, até mesmo de qualquer cultura. Resíduo que, como viga mestra da devoção, sem dúvida alguma está enraizado em um determinado lugar, mas não cessa de se irradiar de uma maneira que não poderia ser mais ampla. Bastava ouvir na multidão compacta os murmúrios pronunciados em nossas línguas latinas para compreender “a unidiversidade” simbolizada pela Catedral de Notre-Dame de Paris. Ela reúne o que estava disperso. É o protótipo do enraizamento dinâmico. O enraizamento do “comércio” em seu sentido mais amplo, que era pré-moderno e que certamente será pós-moderno.
Tal “Comércio” pode ser encontrado no romance de Victor Hugo, no qual o corcunda Quasímodo, a cigana Esmeralda e o belo Phoebus de Châteauperce se mesclam numa sinfonia barroca na qual o falar em línguas diversas não enfatiza menos a unicidade fundamental em torno de um princípio comum. A narrativa expressa a nostalgia de um outro lugar, a nostalgia do homem como sujeito do desejo, sempre atormentado pela transcendência.
É bem isso que as orações e os cantos que se expressaram espontaneamente, as lágrimas que surgiram sem a menor vergonha traduziam: uma transcendência imanente que confortava e reconfortava um povo reunido.
Durkheim falava dos “ritos expiatórios”, ritos de lágrimas. Momentos em que a emoção coletiva adquire uma função carismática, ou melhor, uma função de união, de comunhão. Renascimento de um laço que o individualismo moderno não conseguiu de fato romper e que em certos momentos readquire uma força e um vigor inegáveis. Sem sombra de dúvida, o palavreado midiático ou político “perora” a atração turística da Catedral, o que está bem longe de ser essencial. Isso porque, para além ou para aquém do turismo, a verdadeira atração é espiritual, até mesmo sacramental. Ou seja, ela se assemelha à imagem do sacramento, ela é o que torna visível uma força invisível, a necessidade de ir mais além do confinamento egotista próprio da modernidade. Dialoga entre o visível e o invisível que despreza a mercantilização dominante.
Assim, além da destruição de uma joia do patrimônio da humanidade, o temor expressado nos rostos assustados era o de ver desaparecer um verdadeiro “matrimonium” coletivo. Lugar que serve de matriz espiritual para toda vida social.
Mas, como ocorre em toda atividade humana, na expressão de Santo Agostinho, “in te ipsum redi”, é preciso conhecer a si mesmo, a fim de renascer e alcançar uma existência melhor. Tudo é símbolo. Na nave, a cruz luminosa sobre o altar central continuou a brilhar. Seria preciso talvez compreender esse incêndio como “catabase”? Descida aos infernos como indicador de uma ressurreição que algum dia advirá. Foi precisamente isso que se sentiu na devoção coletiva em torno de Notre-Dame de Paris em chamas!
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Notre-Dame, a transcendência imanente. Artigo de Michel Maffesoli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU