21 Março 2019
Para pesquisadores, mais do que buscar respostas imediatas é preciso repensar a educação, suas políticas e ações educacionais.
A reportagem é de Ana Luiza Basilio, publicada por CartaCapital, 20-03-2019.
O massacre na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, na última semana, é o oitavo no País desde 2002. Para além do choque e da comoção, episódios como estes lançam a sociedade na busca de respostas imediatas: o que motiva esse tipo de violência?
Sem apontar uma única explicação, especialistas ouvidos por CartaCapital elencam “reflexões necessárias” para a construção da narrativa, que não deve recair sobre a escola, como culpada pelo ocorrido, mas convocar toda a sociedade a debater as políticas públicas de maneira articulada, e a refletir sobre o sistema educacional, seu modelo e práticas cotidianas.
“É preciso repensar o clima escolar, que diz respeito à infraestrutura das escolas, mas também às relações sociais nelas estabelecidas, entre professor aluno, aluno professor, professor diretor, diretor família e família e escola, em geral”, coloca a socióloga e pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), Miriam Abramovay.
Para ela, há uma negação da importância do clima escolar que traz como consequência vários tipos de violência nas unidades, “desde a dura, como no caso de Suzano, mas também as micro violências do cotidiano”, adverte. “No geral, isso não chama atenção, só quando há um caso extremo de morte ou quando um aluno agride um professor”, observa Abramovay.
Corrobora com a linha de pensamento o também pesquisador da Flacso, André Lázaro, que ainda considera, no âmbito do clima escolar, o valor atribuído à educação pela escola, a segurança, a confiança estabelecida entre as pessoas e o senso de justiça presente.
“Há regras? Todos as conhecem e concordam com elas? São equilibradas entre punições mais pesadas e mais leves? As pessoas são ouvidas? Se sentem participantes dessa escola? E o pertencimento, as pessoas têm a escola como sua, têm apreço por ela, se sentem identificadas com aquele ambiente?”, indaga o pesquisador.
Além de propiciar um ambiente saudável, a manutenção do clima escolar tem relação direta com a aprendizagem dos estudantes, questão desafiadora para a maioria das escolas.
“Há uma prova no Chile, aplicada por um escritório ligado à Unesco, equivalente ao Pisa, e que tem como objetivo identificar os fatores mais fortemente ligados à boa aprendizagem [aos resultados são acrescidos questionários aplicados entre professores, diretores e estudantes]. O primeiro fator altamente associado é a escolaridade dos pais, ou seja, crianças filhas de pessoas de elevada escolaridade tendem a ter melhores resultados escolares. O que me leva a dizer: a educação é uma herança de classe”, sentencia o especialista.
“No entanto, quando considerada somente a percepção dos estudantes em relação ao que mais interfere na aprendizagem, o clima escolar é altamente associado. Dar atenção a ele [ao clima escolar] é uma maneira de transformarmos uma herança em um direito”, atesta Lázaro.
Outra defesa feita pela pesquisadora Miriam Abramovay é a criação de programas de convivência escolar, no âmbito das políticas públicas educacionais junto a Estados e municípios, que permitam às comunidades escolares – diretores, professores, estudantes e demais funcionários – pesquisarem suas realidades, identificarem seus problemas e proporem ações de melhoria.
“É comum que, diante situações graves de violência como a de Suzano, se paute a importância do mediador escolar. A mediação é uma técnica importante, mas deve vir como parte de um programa maior, que parta de um diagnóstico da realidade escolar e desemboque em um plano de ações concreto para a unidade”, explica.
Nessa perspectiva, Miriam reforça a importância de incentivar a atuação dos próprios estudantes enquanto pesquisadores do ambiente escolar, para além dos professores, além de capacitá-los quanto às técnicas de investigação necessárias.
“É importante considerar que os conflitos não estão só na escola, mas na vida. E a existência deles não é ruim, já que eles levam as pessoas a crescerem. A questão é o que fazemos diante deles. Não dá pra fingir que nada está acontecendo, é preciso travar discussões efetivas, na base do diálogo, e apresentar propostas concretas de intervenção”, explica.
Um dos atiradores no caso de Suzano, o estudante Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, enfrentava questões pessoais um tanto complexas. Vivia o luto da perda recente da avó, que morreu há cerca de três meses, pessoa que o criou juntamente com seu avô. A situação teria levado o jovem a um quadro de tristeza aguda. Guilherme também não tinha histórico de proximidade com a mãe, Tatiana Taucci, que luta contra uma dependência química.
Para os pesquisadores, não há como dissociar a vida real dos alunos do contexto escolar. “As escolas precisam reconhecer problemas em seus estudantes e serem capazes de encaminhá-los”, coloca Miriam Abramovay, ao mesmo tempo em que reforça que a responsabilidade, no entanto, não é exclusiva das unidades de ensino.
“As escolas precisam atuar próximas dos outros equipamentos de proteção de crianças e adolescentes, caso dos conselhos tutelares, rede de assistência social e de saúde”, aponta. “Equipamentos temos, talvez não saibamos utilizá-los como deveríamos”, adverte.
Outro fator que chama a atenção na história é o fato de Guilherme ter deixado a escola em 2017, a um ano de concluir o Ensino Médio. A atitude fez com que o estudante entrasse para as estatísticas, um tanto desafiadoras na etapa escolar: a taxa de evasão ao longo do Ensino Médio é de 11,2%, segundo o Ministério da Educação. Entre os adolescentes de 15 a 17 anos, que deveriam estar na etapa, só 84,3% estudam. O número de matrículas na faixa etária caiu de 8,1 milhões, em 2016, para 7,9 milhões no ano passado.
Para Miriam, o sistema pratica uma violência contra os estudantes ao deixá-los irem embora da escola e isso precisa ser enfrentado com políticas de retenção efetivas.
“Muitas vezes, a saída de um estudante do sistema educacional não está atrelada só a uma decisão do jovem, ou a uma expulsão formal por parte da escola. Ela diz muito sobre a forma como as unidades lidam com os fenômenos educacionais, como conduzem as situações de ensino e aprendizagem, de escolas que não estão preparadas para lidar com os jovens”, problematiza.
André Lázaro entende que há uma falta de zelo, sobretudo por parte dos Estados, com os estudantes, “talvez por os crerem mais maduros, com certa autonomia. A ideia não é afastar os jovens disso, mas também não é possível deixá-los soltos, sem vínculos em uma sociedade como a nossa, marcada por desigualdade”, avalia. “É quase sintomático que o Guilherme volte à escola para cometer essa violência, é como se respondesse a uma frustração”, avalia.
O especialista ainda pontua a lógica fragmentada da administração pública que impede, a seu ver, que se criem protocolos de ações e uma busca ativa pelo estudante que deixou a escola.
“Quem deve ir até a família para entender o que aconteceu? É o centro social, a escola, o agente de saúde que está nas comunidades? De forma geral, vejo um descaso porque a educação pensa o seguinte, da porta da escola para dentro é comigo, para fora não sei. É preciso de um protocolo entre educação, saúde e assistência e um entendimento de como buscar essas crianças e adolescentes que estão fora da escola”, explana.
Para os especialistas, também é importante refletir sobre as demandas que os jovens vêm trazendo sobre as escolas. “O recado vem sendo dado há muito tempo, basta lembrarmos da reação dos estudantes diante à tentativa de reorganização escolar do Estado de São Paulo e o fechamento de 92 escolas em 2015 [182 escolas chegaram a ser ocupadas] e depois diante à Reforma do Ensino Médio, em 2016 [os estudantes ocuparam 961 escolas e universidades em todo o País]”, relembra André Lázaro.
Os episódios, segundo o especialista, indicam por parte dos estudantes o tipo de escola e ambiente que querem frequentar. “E nós insistimos em não ouvir”, critica o especialista, que propõe uma escuta ativa e um diálogo permanente com os jovens.
“Precisamos superar a lógica do ouvir de confessionário, para o ouvir do diálogo, propositivo. Fazer com que eles participem das decisões da escola, não apaga as hierarquias, mas disciplinam as responsabilidades. E eles [os estudantes] podem e devem apoiar na construção do clima escolar”, atesta.
O debate sobre segurança também é latente após o ocorrido na escola em Suzano. No entanto, a educadora e mestre em educação pela USP, Irandi Pereira, entende que é importante situar a discussão a partir de uma ótica correta.
“Não podemos reduzir o debate a uma violência escolar, somente. As escolas, por si só, podem produzir determinadas ações que levem a violência no contexto escolar, mas não esse tipo. Essa violência é estrutural e está ligada a diferentes demandas da sociedade que muitas vezes não são cumpridas”, avalia.
Para ela, o debate sobre segurança não deve se restringir ao contexto escolar. “Precisamos discutir a segurança da população, da comunidade, do entorno onde estão não só as escolas, mas os centros de saúde, de cultura, lazer. A violência está em todos os lugares por ausência de políticas públicas. O que quero dizer é que discutir o ocorrido em Suzano é avaliar o que se passa em uma sociedade refém da ausência do Estado e o que de fato são ações públicas qualificadas que cuidem do cidadão, o considere, pense na evolução de uma sociedade que reduza as desigualdades sociais”, problematiza.
Irani também rebate a militarização das escolas como possível resposta à violência que chega às unidades escolares. “As escolas precisam ser dirigidas por profissionais da área da educação, que tenham trajetória, vivência na área e sejam capazes de ofertar uma educação para toda a comunidade do entorno em que se localiza a unidade.”
Na mesma linha aponta André Lázaro, que entende que a escola não pode utilizar como resposta a mesma linguagem pela qual foi agredida. “A escola não é ambiente de obediência e hierarquia cega, mas de diálogo. A escola militarizada é aquela onde não se discute, se obedece. Não se constitui cidadania se as pessoas não pensam, se constitui ditadura”, sentencia.
Para o educador, a estratégia de militarizar as escolas é a pior resposta a partir do ponto que valida a linguagem da obediência, da violência e do silêncio. “Porque impor aos estudantes um determinado tipo de cabelo, comportamento, que façam fila e cantem o Hino é nada mais do que violento”, atesta.
Irani fala sobre a necessidade de reafirmar o papel da educação pública e de qualificá-la em todos os sentidos, “prevendo condições de trabalho adequadas e salários compatíveis a uma das funções mais importantes, que é a de cuidar de crianças, jovens e adolescentes”.
Para ela, o trabalho deve ser feito em parceria com a sociedade, o que também levanta questões sobre a possibilidade de isolar as unidades em si mesmas. “Quanto mais as escolas se fecharem em grades, mais vão se distanciar do papel efetivo da educação pública, que é para a sociedade como um todo, e deve prever todos os espaços públicos de grande concentração de público”, atesta.
André Lázaro também fala da importância das escolas se colocarem como um anteparo ao discurso de ódio presente na sociedade “e que vem sendo inclusive estimulado por parte de autoridades de grande responsabilidade educacional”.
O pesquisador condena discursos como o proferido pelo senador Major Olímpio (PSL-SP), que declarou que a tragédia teria sido evitada se os professores estivessem armados. “É irresponsável acreditar que a escola pode reagir à violência fazendo uso da mesma linguagem. As pessoas que discursam nesse sentido não entendem nem de segurança, nem de educação”, critica.
Para o educador, a virada possível é cada vez mais as unidades escolares atuarem no sentido de reconhecer a singularidade das pessoas, a diversidade e, ao mesmo tempo, fazer disso uma ponte para que o cotidiano escolar seja “informativo, formativo e qualificado”.
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Sete reflexões para a educação após o ataque à escola em Suzano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU