17 Março 2019
Embora o massacre de Suzano possa ser considerado um ato isolado, o crime gerou a discussão de fatores fundamentais das escolas brasileiras. O bullying que levou um dos atiradores a largar o colégio – o mesmo que presenciou o massacre – foi apresentado como uma das possíveis motivações da barbárie, ocorrida na quarta-feira (13/03). O vice-presidente Hamilton Mourão, por sua vez, atribuiu a culpa ao vício dos jovens em jogos eletrônicos.
Há quase duas décadas, a socióloga Miriam Abramovay estuda em profundidade o tema da violência nas escolas. Em entrevista à DW Brasil, ela defende a criação de políticas públicas destinadas à melhoria da convivência escolar, depois de ter detectado, em pesquisas recentes, a incidência dos termos suicídio e depressão entre jovens de 13 a 19 anos.
"Há 50 anos, a escola pública era de elite. Nos últimos 20 anos, a escola se massificou. Essa mudança é muito difícil. São linguagens diferentes, pensamentos diferentes, formas de ação diferentes, com as quais a escola tem dificuldade de lidar", diz ela, que é coordenadora da área de Estudos e Políticas sobre a Juventude na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).
A entrevista é de João Soares, publicada por Deutsche Welle, 15-03-2019.
Eis a entrevista.
A mãe de um dos responsáveis pelo massacre de Suzano afirmou que o filho deixou a escola por sofrer bullying. Há uma conexão intrínseca entre os fatos?
Em primeiro lugar, acho incorreto usar o conceito de bullying, porque incorpora muitos problemas sem especificar nenhum – o racismo, a homofobia, a violência que vem de fora para dentro da escola. E, mais grave, não distingue problemas entre as diferentes gerações. O bullying acontece entre alunos, não existe entre professor e aluno.
O que o garoto sofreu, quando falamos que ele foi vítima de bullying? Não quer dizer nada. O conceito é muito complicado por isso. Que tipo de violência? Nunca se sabe. Temos que falar que ele sofreu algum tipo de violência, mas precisamos descobrir qual, o que aconteceu com ele que foi tão grave. Penso que não foi só o fato de ele ter sofrido na escola que o levou a essa ação.
Existe uma certa exposição, além de uma maneira de ser e atuar de determinados jovens, que os leva a cultuar a violência. Não vemos todos os jovens que sofreram violência nas escolas fazerem práticas semelhantes. Temos que levar em conta essa questão da predisposição e as características desse menino. A polícia está trabalhando para entender a rede que ele tinha ao seu redor.
Esse jovem integrava uma rede que mostrava como fazer as coisas, qual arma comprar. É um crime de ódio muito bem preparado, durante quase um ano. Não foi algo que veio na cabeça, e eles entraram na escola. Não sei o que se pode fazer quanto à internet, mas é preciso ficar atento. Chama atenção também como é fácil comprar armas. Se isso for flexibilizado, é evidente que a situação vai piorar.
Existe algum risco de a visibilidade do caso estimular novos atentados?
Não vejo essa relação. O que aconteceu é único. Mourão associou o massacre a jogos eletrônicos e disse que vê os netos jogando o dia inteiro. Será que eles terão uma atitude como essa? É evidente que não. Só quem já tem tendência violenta vai imitar.
Estamos sempre em busca de culpados. O importante é pensarmos em medidas preventivas, e não de força. Devemos elaborar políticas públicas para pensar preventivamente, e não tentar culpabilizar a internet ou jogos eletrônicos. A culpada é a sociedade. Precisamos discutir como queremos melhorá-la, e isso passa por medidas preventivas, e não escolas militarizadas.
O governo do Rio de Janeiro anunciou que vai colocar 40 policiais militares nas escolas. O que esses policiais entendem de escola? Acham que vai ter tiroteio na escola todos os dias? Se eles forem bem preparados para algum tipo de atividade, só pode ser jogar bola com os meninos. Em Brasília, quando adotaram essa prática, há 11 anos, os adolescentes não gostaram. Muitas vezes, os PMs tinham comportamentos dúbios na escola, especialmente em relação às meninas. Pensam sempre em medidas repressivas: vamos militarizar as escolas e tudo dará certo. Não é por aí.
Como a escola deve lidar com o jovem que apresenta comportamento violento?
Não acho que a escola seja responsável por saber o que fazer com um menino que tem perfil violento, mas é responsável por detectar. Em geral, eles vão embora. Existe uma rede de atendimento da juventude, em que os jovens podem ser atendidos psicologicamente.
Se não há mecanismos que permitem detectar isso, fica muito difícil, e casos assim podem acontecer a qualquer momento. Muitas vezes, as famílias nem se dão conta do que está acontecendo. A mãe do Guilherme Taucci, um dos atiradores, relatou que o via jogando e gritando coisas relacionadas à violência. Ela não soube o que fazer. Para ela, era "coisa de menino".
Não acho que a escola possa resolver, mas ela tem que abraçar a causa e tentar pensar, conjuntamente com a rede de apoio que existe na sociedade, no que fazer.
Você defende a importância de políticas públicas direcionadas à melhoria da convivência escolar. O que pode ser feito, em termos práticos?
O primeiro passo para um programa de convivência escolar é fazer um diagnóstico sobre a questão da violência e da convivência escolar, com pesquisas quantitativas e qualitativas. Isso não existe no Brasil. Há pesquisas realizadas em alguns estados, mas que não são comparativas por não adotarem a mesma metodologia. É preciso escutar esses jovens para saber o que eles sentem.
Posteriormente, o resultado desse trabalho teria que ser devolvido às secretarias de educação, de modo que pudessem ter um diálogo mais vivo com as escolas. O ideal seria pensar ações individualizadas para cada escola, mas é preciso generalizar quando se trata de política pública.
Aí entra a necessidade de formular um plano de ação, no qual as escolas deveriam apontar o que consideram importante. Ao me referir às escolas, estou falando de professores, alunos, pais, funcionários e todos da comunidade escolar. E fazer, principalmente, com que os jovens tenham uma participação efetiva nesse plano de ação.
De que forma?
Esses adolescentes reclamam muito da sua não participação. A cultura escolar é tão forte que não deixa que a cultura juvenil entre no cotidiano das escolas e não dá espaço para eles escolherem e participarem. Outra coisa importante, que precisaria ser muito pensada, é que esses jovens também sejam pesquisadores da sua realidade. Além de participar, eles devem poder olhar a realidade com outros olhos. Para isso, é muito importante a formação dos professores, evidentemente. Os professores só vão poder ensinar para os meninos se tiverem uma formação adequada. Hoje, esse tema não aparece nas faculdades de educação.
Há outras experiências que poderiam ser levantadas e integradas em uma proposta de convivência escolar. Enquanto isso, o que temos é a proibição de falar sobre esses temas, de falar sobre política, sobre discriminação. Sempre foi um tema muito difícil de entrar, como política pública, e hoje é mais ainda.
Esse tipo de mudança pode impactar também a qualidade do ensino?
Há pesquisas que mostram como a questão do clima escolar é fundamental para a qualidade da escola. Em 2013, a Pesquisa Internacional de Ensino e Aprendizagem da OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico] concluiu que estimular a participação dos diferentes atores escolares e criar uma cultura de responsabilidade compartilhada e apoio mútuo contribuem para o desenvolvimento de um ambiente propício à aprendizagem. Não se devem levar em conta só os testes que são feitos, como o Ideb, mas também esse indicador.
Por causa de conflitos ou mau comportamento, os jovens são expulsos, e podem também sair por vontade própria, como aconteceu com o Guilherme [um dos atiradores de Suzano]. Mas, se ele fez isso, foi porque alguma coisa aconteceu. Além de achar a escola chata, outras coisas também podem acontecer. Essa questão do clima escolar e das relações sociais são fundamentais na questão da qualidade da escola.
Existe uma dificuldade das escolas em assimilar mudanças no perfil dos estudantes?
Hoje os jovens vivem em uma era globalizada, em que têm acesso a muita informação. Há uma falta de adaptação da escola a esse novo olhar sobre as diferentes juventudes. Os jovens mudaram, mas a escola não acompanhou. De novo, reitero que os professores não estão preparados para lidar com esses adolescentes e jovens. Não sabem o que fazer.
Há 50 anos, a escola pública era de elite. Nos últimos 20 anos, a escola se massificou. Essa mudança é muito difícil, e não só no Brasil, mas em todos os países, como na França. Essa é uma das dificuldades. São linguagens diferentes, pensamentos diferentes, formas de ação diferentes, com as quais a escola tem dificuldade de lidar – embora continue com os mesmos problemas de antes: racismo, homofobia, relações sociais.
Recentemente você foi surpreendida ao detectar a presença dos temas da depressão e suicídio entre jovens de 13 a 19 anos em estudo no Rio Grande do Sul e no Ceará. O que justifica esse fenômeno?
É algo muito novo. Estamos escrevendo o livro sobre esse trabalho e vamos começar a pesquisar especificamente sobre o tema no final do ano. Chama muita atenção, em primeiro lugar, que eles se mutilam. Isso nós ouvimos nos grupos focais, que foram muito desgastantes. Eles choravam muito, e era uma catarse coletiva. Era angustiante, porque tudo o que podemos fazer é escrever sobre isso e, naturalmente, falar para a escola prestar atenção. Mas não vamos estar lá com eles para ajudá-los.
O antropólogo francês David Le Breton escreve que se mutilar é uma forma de não se suicidar. Os jovens disseram exatamente a mesma coisa, comprovando o que ele diz na teoria. Eles relataram que se machucavam para sentir que estavam vivendo, pois já se sentiam mortos. É um clima muito duro, muito difícil.
Quando teve a polêmica da Baleia Azul [jogo que incita jovens à automutilação], alguns diziam que os jovens tomavam essa atitude por imitação. Mas eles não estão imitando alguém, tentando chamar atenção. Estão sofrendo mesmo, sem que ninguém se dê conta.
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"Os jovens mudaram, e a escola não acompanhou". Entrevista com Miriam Abramovay - Instituto Humanitas Unisinos - IHU