18 Setembro 2018
A Anvisa quer novos rótulos para os alimentos. O órgão, que dita as regras de venda de alimentos e remédios no Brasil, criou em maio de 2018 uma proposta que pode obrigar fabricantes a incluir alertas gráficos sobre a presença de componentes nocivos à saúde, como sal, açúcar e gorduras nas embalagens. O sistema também busca padronizar informações, como as medidas básicas usadas para indicar a proporção de nutrientes e ingredientes. Sem essa padronização, a indústria confunde o consumidor diante da prateleira, que precisa decidir sobre a influência de 1g de sal em embalagens de quantidades diferentes.
A reportagem é de João Peres, publicada por The Intercept Brasil, 16-09-2018.
No mundo inteiro, governos buscam soluções criativas para lidar com a obesidade e as doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e câncer, que se transformaram nas maiores ameaças à saúde pública. No Brasil, três em cada quatro mortes são causadas por elas. A tentativa da Anvisa de aprovar um rótulo mais claro, com alertas sobre componentes nocivos à saúde e relacionados a essas doenças, seria uma maneira de incentivar a população a optar por alimentos mais saudáveis.
A proposta, no entanto, incomodou empresas como Coca-Cola, Nestlé, Unilever e Danone, gigantes do setor de ultraprocessados – alimentos industrializados prontos para o consumo feitos com componentes químicos e, em geral, cheios de sódio, açúcar e gorduras –, que têm se movimentado fortemente para evitar a aprovação da nova regra. A proposta já passou por uma primeira e turbulenta fase de consulta pública. Agora, deve haver uma nova consulta, e finalmente o texto precisa passar pela diretoria.
A resistência da indústria é encabeçada pela Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação, a Abia, composta por Nestlé, Unilever, Bauducco e Danone, entre outras gigantes do ramo. Para enfrentar a decisão, essas empresas seguem um roteiro bem conhecido: buscam convencer o governo, a opinião pública, a mídia e os cientistas de que, talvez, os malefícios de seus produtos não sejam tão grandes assim. É bem parecido com o que faziam as fabricantes de cigarro no passado, uma comparação que a indústria de alimentos odeia. Normalmente funciona.
O lobby dos alimentos foi descrito em 2015 pela pesquisadora francesa Mélissa Mialon, atualmente no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, a Universidade de São Paulo. E, na briga contra a mudança nos rótulos, a estratégia de lobby já mostrou resultado: as empresas conseguiram estender o prazo da consulta pública da Anvisa graças a uma liminar.
Entenda como as empresas tentam impor suas vontades goela abaixo:
Assim que surge uma nova política que interfere nos negócios, a indústria corre para superdimensionar o seu impacto. A Abia, por exemplo, diz que alterar os rótulos pode levar ao fechamento de mais de 10% dos postos de trabalho no setor.
Na verdade, em menos de um mês foram apresentadas três estimativas diferentes: 145 mil, 180 mil e 200 mil – isso num segmento responsável por 1,8 milhão de empregos. Pedimos à associação que nos mostrasse como o levantamento foi feito, mas a explicação foi breve, dizendo apenas se tratar de relatório preliminar.
A entidade calcula que o total de prejuízos chegaria a R$ 100 bilhões e, num efeito-dominó, já fala em outros 1,9 milhão de postos de trabalho fechados em várias áreas. Apesar de a associação não divulgar o documento, tivemos acesso a ele. E vimos que o cálculo foi feito a partir da extrapolação dos números de uma pesquisa Ibope e não de um levantamento científico. A GO Associados, consultoria responsável pelo cálculo, levou em conta a preferência das pessoas por um modelo ou outro para supor o que ocorreria com o consumo. E ignorou a possibilidade das pessoas começarem a optar por produtos mais saudáveis (na projeção deles, é como se as pessoas tivessem parado de comer).
Há cálculos, no entanto, sobre qual seria o impacto de rótulos mais claros na saúde pública. No Canadá, país que começará em breve a implementar os alertas nos rótulos, a economia no sistema de saúde pode chegar ao equivalente a R$ 10 bilhões – em uma estimativa conservadora. Também procuramos os dados disponíveis no Chile, único país que já colocou em prática as advertências. Lemos o relatório financeiro das maiores empresas. E, lá, não encontramos sinal de fechamento de vagas de trabalho: pelo contrário, algumas até contrataram. A produção aumentou em alguns casos: os setores de alimentos e bebidas seguem crescendo, de acordo com o último relatório anual de vendas, publicado em junho, pela entidade que representa a indústria.
Como a Anvisa se mostrou irredutível, a Abia buscou a intervenção do Ministério da Saúde. Deu certo. Gilberto Occhi, que assumiu a função em abril, chegou a se colocar contra os alertas. “Não se pode mudar de forma radical uma embalagem sob pena de destruir produtos ou empregos e empresas”, disse.
A escadinha subiu e chegou ao Palácio do Planalto. “É importantíssimo. Essa coisa do triângulo, que é sinal de perigo, se não tomar cuidado daqui a pouco bota tarja preta no alimento. Vai prejudicar o setor”, disse Michel Temer durante almoço com industriais em São Paulo – ignorando que o excesso de sal e açúcar também prejudica as pessoas. O presidente da Abia chegou a pedir claramente a nomeação de um diretor da Anvisa alinhado às empresas. Mais tarde, o ministro Occhi baixou o tom.
A pressão chega ao Congresso também. Lá, desde 2008 tramita um um projeto de lei que propõe um outro método de sinalização de perigos no alimentos. O Projeto de Lei do Senado 439, de 2008, propõe adotar o semáforo, um sistema que prevê a colocação das cores verde, amarelo e vermelho para os nutrientes críticos. Se aprovado, o semáforo torna nulo o novo método que a Anvisa defende. Esse projeto ficou estacionado por muitos anos por pressão do setor privado, mas o surgimento dos alertas da Anvisa fez as empresas abraçarem esse sistema como uma estratégia de mal menor.
Detalhe: quem decidiu movimentar o PL foi o presidente da Comissão de Assuntos Econômicos, o tucano Tasso Jereissati, do Ceará. Ele é o maior engarrafador e distribuidor de Coca-Cola do Brasil depois da própria corporação. Jereissati entregou o projeto nas mãos de Armando Monteiro Neto, do PTB de Pernambuco, ex-presidente da Confederação Nacional da Indústria. O relatório favorável foi aprovado e o texto seguiu para a Comissão de Assuntos Sociais.
As multinacionais do setor alimentício não hesitam em colocar seus escritórios de advocacia para trabalhar – mesmo que seja só para intimidar quem incomoda. Em julho, a Abia conseguiu por meio de uma liminar prorrogar por 15 dias a primeira fase de consulta pública sobre os rótulos. A Anvisa diz que o Judiciário foi induzido a erro e classificou as alegações da indústria como “infundadas”, “inverídicas”, “imprecisas” e “descontextualizadas”.
As associações empresariais aproveitaram a primeira fase de consulta pública para reforçar o jogo psicológico. Dizem que a agência está extrapolando seu papel, o que pode causar a “nulidade” do processo graças a medidas “inconstitucionais”.
A Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição, a Sban, é uma entidade relevante no mundo científico, promovendo eventos de formação de profissionais e emitindo posicionamentos sobre questões-chave na comunidade de saúde. Em debates, em geral, seja em grupos de trabalho na Anvisa, seja em vídeos e documentos, a entidade se posiciona a favor das empresas.
Parece ilógico que uma sociedade de nutricionistas se posicione contra uma medida que visa alertar sobre excesso de componentes prejudiciais à saúde e dar transparência para a composição de alimentos, mas é isso o que acontece. A Sban aderiu até à campanha oficial da indústria, chamada Sua Liberdade de Escolha.
O pesquisador brasileiro Carlos Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, pesquisa o impacto dos alimentos ultraprocessados na saúde humana. Foi ele quem criou o sistema de “classificação de alimentos por extensão e propósito de processamento”. Foram suas as diretrizes que serviram de base para a elaboração do Guia Alimentar da População Brasileira, criado pelo Ministério da Saúde em 2014, que propõe uma alimentação baseada em comida de verdade com o mínimo de industrializados e ultraprocessados, aquelas formulações alimentícias repletas de sal, açúcar, gorduras e aditivos que você não entende muito bem como foram fabricadas.
Monteiro se tornou persona non grata para a indústria alimentícia. As organizações da ciência patrocinadas pelas empresas têm se articulado em ataques a Monteiro e ao novo rótulo. No ano passado, Mike Gibney, um pesquisador financiado pela Nestlé e por uma coalizão das fabricantes de cereais matinais, escreveu um artigo no qual dizia que a teoria do brasileiro não se sustenta. Ele deixou de lado evidências científicas que associavam o consumo de ultraprocessados com desfechos negativos.
“Não vamos acabar com todas as fábricas e voltar a cultivar apenas grãos. Não vai dar certo”, disse o pesquisador em entrevista ao The New York Times. “Se eu pedisse para 100 famílias brasileiras que parem de consumir alimentos processados, teria que me perguntar: o que elas comerão?”.
Gibney, vinculado à Universidade de Dublin, na Irlanda, tem rodado o mundo na tentativa de desacreditar Monteiro. Em maio, ele esteve no Brasil.
Não em uma organização científica, mas na Fiesp, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. A palestra foi promovida pelo Instituto Tecnológico de Alimentos, estatal paulista vinculada à Secretaria de Agricultura, que se posiciona contra as diretrizes de “comida de verdade” propostas pelo Ministério da Saúde no Guia Alimentar para a População Brasileira. E, claro, foi aplaudida pelos diretores da Abia. Também durante o Congresso Internacional de Nutrição, em outubro do ano passado, em Buenos Aires, pesquisadores com elos com a indústria buscaram desacreditar o trabalho de Monteiro. Associações de engenheiros de alimentos na América Latina se tornaram o braço mais ativo desses ataques, que nunca oferecem espaço ao grupo do pesquisador brasileiro.
Essa foi uma das estratégias favoritas da indústria tabagista durante a sua batalha para evitar as restrições ao cigarro durante as décadas de 70, 80 e 90: afirmar que o fumante é o culpado, mesmo que se saiba que a nicotina provoca dependência e que a grande maioria jamais consegue deixar de fumar.
A indústria alimentícia, vale lembrar, se especializou em desenvolver produtos “impossíveis de comer um só”. O jornalista Michael Moss, autor do livro Sal, açúcar, gordura, narra em detalhes a estratégia das empresas para driblar os mecanismos de saciedade do nosso organismo. O que se descobriu é que a junção de açúcar e gordura na medida certa tapeia o corpo. “Os maiores sucessos — Coca-Cola, Doritos ou o prato semipronto Velveeta Cheesy Skillets, da Kraft — têm sua origem nas fórmulas que provocam as papilas gustativas o suficiente para serem atraentes sem ter um único sabor mais acentuado que diga ao cérebro: já chega!”
Mas os tempos mudaram e agora as empresas dizem recomendar moderação. Assim, se houver exagero, a culpa é do obeso, que não sabe fechar a boca. “A educação nutricional até pode parecer alguma coisa utópica. Mas a gente tem que lembrar que o rótulo não é um fim em si. A gente tem que ensinar o consumidor a ler. As pessoas não sabem, mas vão aprender. Não sabem interpretar, vão aprender”, disse Marcia Terra, coordenadora da Sban, em vídeo gravado para a Abia.
Tente ler o rótulo do Cup Noodles:
(Foto: Reprodução)
Está difícil? A culpa é sua.
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Como funciona o lobby da Nestlé, Unilever e Danone para esconder o excesso de sal, gordura e açúcar nos rótulos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU