17 Setembro 2018
São membros de uma família, antigos alunos de um instituto, seguidores de uma equipe de futebol. Inclusive no trabalho montaram uma rede paralela ao organograma onde se diz que o chefe é idiota. Ah, sim, é muito provável que compartilhem fotos de seus entediantes domingos no Instagram.
Os que mandam são outros, mas graças a Niall Ferguson nossa consciência histórica será reforçada (pela metade).
A entrevista é de Jorge Benítez, publicada por El Mundo, 14-09-2018. A tradução é do Cepat.
Em seu novo livro, La plaza y la torre (Editora Debate), Ferguson investe contra a historiografia oficial que marginalizou a influência das redes sociais (esclarecimento: este conceito para ele é estrutural, muito mais amplo que a acepção popular que usamos para nos referir ao Facebook, Twitter e outros) e se centrou nas hierarquias. Os dois mundos, os dois poderes, se encontram e interagem. E também protagonizaram um embate ao largo dos séculos. Esta reivindicação é feita possivelmente pelo historiador mais influente da atualidade, um escocês encantador, bonito e best-seller que concede esta entrevista na Fundação Rafael del Pino, onde em algumas horas dará uma conferência.
Por trás de generais, reis e papas sempre houve redes sociais que interconectaram o mundo muito antes que o Facebook. Para explicar o fenômeno Trump, a estrutura do Estado Islâmico e as fake news é preciso entender como os cristãos se propagaram ou como caiu a União Soviética.
A Internet mudou menos coisas do que pensamos.
Hoje em dia, fala-se constantemente de um mundo interconectado, no entanto fenômenos como o cristianismo ou o Islã foram virais em seus inícios e a tecnologia não teve nada a ver.
Grande parte da história atual é tecnologicamente determinista. No Vale do Silício se acredita que a tecnologia explica 90% da História, mas estão equivocados. Havia redes sociais muito antes que o Facebook. É incrível a difusão tão rápida que estas religiões tiveram quando surgiram e não eram apoiadas nem pela imprensa, nem pela internet. Funcionava o boca a boca. O cristianismo quando se expandiu pelo Império Romano teve uma grande vantagem sobre os pagãos: os cristãos viviam mais, certamente, porque muitos de seus rituais eram mais higiênicos. O fato de se lavar era uma vantagem. A tecnologia não é sempre determinante. Um exemplo: se os Estados Unidos não tivessem sido um país descentralizado, as pessoas que trabalhavam no Departamento de Comunicações de Defesa na Califórnia não teriam começado a trabalhar no que ao final se tornou a internet. Quando isso foi feito pelo Pentágono, o órgão de poder, estava apenas preocupado com o Vietnã. Agir livre gerou o seu êxito. A URSS não pôde fazer isso não por falta de talento, mas de flexibilidade.
A primeira vez que se viu que o mundo estava interconectado foi quando apareceu a peste negra no século XIV.
Resulta-me incrível que sua propagação demonstrasse um mundo mais integrado do que poderíamos pensar. É possível fazer um acompanhamento da praga graças às rotas comerciais que a trouxeram da Ásia para a Europa. Não há nada mais viral que uma enfermidade. A mal chamada gripe espanhola causou tantas mortes em inícios do século XX como a guerra. E em uma velocidade assombrosa.
Esse temor global sempre existirá.
Claro. Recentemente, perguntaram-me na Itália se considerava Trump, o Brexit e outras bobagens como os grandes perigos que a humanidade enfrentava. Para mim, o que me dá medo é uma nova pandemia, que em um mundo comunicado como o de hoje, se expandiria de forma incontrolável!
Niall Ferguson é uma estrela editorial que fez fortuna escrevendo sobre impérios e dinheiro. Retirou a jaqueta. Em um papel, aponta os nomes dos jornalistas e dos meios de comunicação aos quais atende individualmente. Pertence a essa estirpe de britânicos que desfrutam e triunfam nos Estados Unidos. Apesar de viver na ensolarada Califórnia, sofre com a luz madrilena. Tem algo de fotofobia e sorri quando esfrega os olhos: “É o resultado de ser escocês, não estamos acostumados com o sol de vocês”.
Na conquista da América, uma pequena rede europeia atacou e derrotou uma hierarquia não europeia. Como a Espanha pôde conquistar tanto território em tão pouco tempo?
Fascina-me sobretudo a conquista de Pizarro do império inca. Os conquistadores eram uma rede que conseguiu uma vitória total com uma vantagem tecnológica que não era tão determinante. Os incas formavam uma sociedade muito hierarquizada, ao passo que os espanhóis eram quase um bando, pouco numeroso, que tinha até criminosos em suas filas e que, inclusive, às vezes, se matavam entre eles. Seu êxito é assombroso. É claro, influenciaram as enfermidades trazidas da Europa que dizimaram estas civilizações, mas acredito que também foi determinante a fragilidade da estrutura política dos incas. Estes enfrentaram os espanhóis, mas seu colapso quase imediato continua sendo um mistério. Pode ser que nisso haja uma lição que tenhamos que analisar hoje.
Qual?
São muito estudados os colapsos econômicos, mas muitas vezes o colapso político é prévio. Uma das razões da queda da elite inca foi a perda de legitimidade. Este colapso foi parecido ao da URSS. O império soviético cai, não foi invadido, porque sua legitimidade entrou em colapso.
Disse, antes, que havia uma lição para os dias de hoje...
A crise atual da Igreja Católica por casos de abusos sexuais pode ser uma ameaça para essa legitimidade da qual falamos e que pode ser fatal para a instituição. Pergunto-me se o Papa Francisco é para a Igreja o que foi Gorbachev para a URSS. Roma sobreviveu à Reforma protestante e também acredito que superará este caso, mas em 500 anos o Papado não enfrentou uma crise de tamanha envergadura.
Você considera que as agressões contra a maioria das redes sociais não são iniciadas por outras redes, mas que são ordenadas por entidades hierárquicas.
Não são iguais os ataques do KGB ao establishment britânico nos anos 30 e os ataques de Putin nas eleições de Trump. Aqui está clara uma ordem hierárquica, no entanto, os jihadistas atuam como redes, ainda que tenham líderes. O Estado Islâmico continuaria funcionando se morressem seus líderes...
... Mas em um conflito tão grande como a II Guerra Mundial, os aliados nunca poderiam ter vencido com uma estrutura baseada apenas nas redes.
Se tiver visto o filme Dunkerque, perceberá os limites das redes. Se os soldados ingleses que estavam encurralados nas praias tivessem contado com smartphones para receber ordens por WhatsApp, teria sido um desastre. A hierarquia às vezes é necessária, é preciso combiná-la com as redes.
Para você, o início da crise da hierarquia surge nos anos 1970.
Os Estados Unidos foram um centro hierárquico muito forte. A Guerra Fria lhe deu um impulso para continuar. Nos anos 1960, a imprensa era muito controlada. Não se falava dos escândalos sexuais de Kennedy. Tudo começa a mudar com a publicação dos Papéis do Pentágono relacionados ao Vietnã. O governo federal perdeu seu controle sobre a imprensa e começa o desenvolvimento na Califórnia do Vale do Silício. Foi uma época de desintegração.
Na atualidade, há duas revoluções que geram certa confusão aos cidadãos. Por um lado, as expectativas de crescimento dos países em vias de desenvolvimento e, por outro, um aumento da desigualdade nos países ricos. Se vende um mundo globalizado, ao mesmo tempo em que ressurge o nacionalismo.
Acredito que a globalização foi vendida ao mundo como uma política em que todos ganharíamos, mas não foi assim. Os grandes beneficiados foram as classes médias da Ásia e o 1% da elite do Ocidente. A desigualdade mundial descendeu, mas aumentou na maioria dos países ocidentais. A globalização benéfica chegou aos empresários, mas não aos trabalhadores. Há claramente perdedores, tanto em termos relativos como absolutos. A reação a esta situação, na minha avaliação, se fez esperar. Quando me mudei em 2002 para os Estados Unidos, perguntei a um amigo meu que é analista político onde estavam os candidatos protecionistas que competiam para ser indicados à presidência. Não existiam, nem no partido republicano, nem no democrata. Acredito que alguém como Trump poderia ter vencido antes com uma mensagem contrária ao livre comércio, anti-imigração, etc. Na Europa, o germe do populismo já estava ali muito antes da crise, mas foi lento.
Mas, o ‘Brexit’ e a vitória de Trump foram vitórias da rede sobre a hierarquia do establishment...
Sem o Facebook e o Twitter, Trump não seria presidente e tampouco haveria Brexit. Esta ferramenta não foi plenamente utilizada até estes anos. A publicidade política foi utilizada em grande escala nestas plataformas pelos lados vencedores, ao passo que o establishment ficou parado, subestimando essa nova arma.
É paradoxal que os magnatas destas redes sejam defensores da hierarquia que derrotaram.
É verdade. Os reis do Vale do Silício ficaram muito traumatizados com a vitória de Trump. Quase todos gastaram muito dinheiro na campanha de Clinton e esperavam que vencesse. Imagine o horror que sentiram no dia 9 de novembro. O Google se sentiu culpado por não ajudar na vitória de Clinton, mas com o Facebook foi pior: impulsionou Trump!
Houve redes muito anteriores ao Facebook, mas esta é a maior da História. Imaginava seu monopólio?
A ciência das redes prediz que neste mercado econômico o primeiro ganha 90%, o segundo 9% e restante somam 1%. É o conceito de que o vencedor leva tudo. Por isso, Google, Amazon e Facebook são líderes sem concorrência. As pessoas acreditam que o ciberespaço é algo muito descentralizado graças às redes. Mas, estas plataformas têm o poder que teve a Standard Oil quando dominou a indústria do petróleo. Eles são a Standard Data. A diferença é que nós, além disso, entregamos nossos dados.
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“Pergunto-me se o Papa Francisco é para a Igreja o que foi Gorbachev para a URSS”. Entrevista com Niall Ferguson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU