21 Agosto 2018
Moradores relatam abusos em operações nos complexos da Penha, Alemão e Maré nesta segunda-feira. Dois integrantes do Exército estão entre as vítimas.
A reportagem é de Arthur Stabile e Carolina Moura (Ponte), publicada por Ponte Jornalismo e reproduzida por El País, 20-08-2018.
“Alô? Calma aí, muito tiro”, diz a voz ao telefone. Alguns segundos passam. “Agora posso falar. Está assim desde as 5 horas da manhã, não para o tiroteio”. O relato é de uma moradora da Penha, zona norte do Rio de Janeiro, uma das comunidades alvo de operação das Forças Armadas nesta segunda-feira, 20. Ao menos 13 pessoas morreram, sendo uma delas o primeiro integrante do Exército a ser morto em serviço desde o início da intervenção federal na segurança do Rio, em 16 de fevereiro de 2018.
Cerca de 4 mil militares e 70 policiais civis atuaram nos complexos do Alemão, da Maré e da Penha. De acordo com informações do Comando Militar do Leste (CML), o objetivo era reprimir o tráfico de drogas na região. Informações iniciais apontavam para oito mortos na Penha, depois o Comando retificou o número e informou que foram cinco vítimas. Oficialmente, não foram dados detalhes sobre as circunstâncias das mortes. O Gabinete da Intervenção Federal (GIF), comandado pelo general interventor Walter Souza Braga Netto, silenciou quando questionado pela Ponte sobre a ação.
Outras seis pessoas morreram baleadas na Ponte Rio-Niterói. Elas estavam em dois carros e, segundo o Exército, fugiam da operação nas comunidades. “Estou perdendo várias amizades, os amigos estão todos morrendo. O bagulho está foda, mas vejo isso como coisas da vida, já estou acostumado. É foda perder amigos…”, lamentou um morador da Penha, pedindo anonimato por temer represálias.
Ainda nos complexos, dois militares ficaram feridos e um deles morreu. O cabo Fabiano de Oliveira Santos estava na Serra da Misericórdia quando foi baleado no ombro, mas morreu no caminho do hospital. O outro soldado, atingido na perna, está fora de perigo.
Às 19h desta segunda-feira, o CML confirmou a morte de outro militar, por volta de 17h40, no Complexo da Penha. De acordo com o Portal G1, ele foi identificado como João Viktor da Silva, de 21 anos.
“Neste momento de consternação e pesar, o Comando Militar do Leste solicita que seja concedido o respeito ao luto e à contrição das famílias dos militares, ressaltando que todo o apoio psicológico e espiritual vem sendo dado ao soldado e aos familiares de ambos”, explicou o CML, em nota, apontando que tomou “todas as medidas administrativas e judiciais cabíveis”.
“Por fim, concitamos à população fluminense um momento de reflexão acerca do supremo sacrifício despendido por estes militares em sua missão de proporcionar um ambiente seguro e estável ao habitantes do Estado do Rio de Janeiro”, finaliza o texto do Comando.
Moradores dos complexos contaram que a rotina muda durante as operações, contínuas nos últimos três dias nas comunidades. Revista em todos os que passam pelos militares, inclusive com checagem de bolsas e celulares, é prática comum e naturalizada, segundo relatos.
“Quando isso acontece [tiroteio], eu corro pra trás da minha casa e me escondo. A gente tem que se proteger. Acordamos com rajadas de tiros e parece que vai ser o dia todo assim”, conta uma mulher que vive na Penha. “Tão esculachando morador, botando pé na porta, revistando… Essa guerra não tem fim”, continua.
A ação desta segunda-feira teve maior intensidade por parte das Forças Armadas na Penha, com “poucos tiros” sendo ouvidos no Alemão, outro alvo das ações desde sábado, 18. Contudo, a comunidade com ação mais tranquila teve muitos “mandados para entrar nas casas”, conforme testemunhas.
Um morador do complexo confirmou ter ouvido “muito tiro e muita gente morrendo” desde o começo do dia. “O negócio aqui está feio. Imagina para nós, moradores, acordar com isso? Somos trabalhadores, queremos nossos direitos. Hoje muitos ficaram em casa, as crianças também”, conta, dizendo ter esperança que “amanhã seja um outro dia e que acabem os tiros”.
A intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro completou seis meses desde o seu início no dia 16 de agosto. Antes das mortes de hoje, do cabo Santos e de João Viktor da Silva, apenas um militar havia morrido durante a intervenção. O sargento estava em seu período de folga quando reagiu a um assalto em 20 de fevereiro e não resistiu aos ferimentos. O caso aconteceu em um arrastão em Campo Grande, zona oeste da capital fluminense.
Para Silvia Ramos, coordenadora do Observatório da Intervenção, é preciso que se apure as circunstâncias das 11 mortes de civis provocadas pela operação. Caso confirmada a ação direta dos militares, isto representa “uma mudança preocupante” nos trabalhos.
“Até aqui, desde o início da intervenção, os soldados do Exército faziam parte de operações, mas cuidavam para não haver confrontos diretos e não haver baixas”, pontua a coordenadora do Observatório. “As Forças Armadas não podem copiar a lógica de confrontos inúteis e mortes inaceitáveis que predominam nas práticas de polícias do RJ”, continua.
A ONG Justiça Global criticou a operação, apontando para denúncias de abusos como “casas invadidas, celulares revistados e pessoas detidas por participarem de grupos de WhatsApp com alertas de segurança”. “Estamos buscando pronto esclarecimento junto aos órgãos competentes sobre as motivações desta megaoperação, além de registros claros sobre os grupamentos envolvidos, de modo a buscar efetiva responsabilização sobre as violações em curso”, diz nota da ONG.
Questionado pela reportagem sobre a operação nos complexos e a morte de civis e do militar, o GIF não respondeu às perguntas e “solicitou entrar em contato” com o CML, reenviando o e-mail enviado pela Ponte.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Essa guerra não tem fim”: o lamento após ação sangrenta que terminou com 13 mortos no RJ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU