21 Agosto 2018
“Hoje, lamentamos com muita emoção o declive da abelha porque durante muito tempo foi considerada o símbolo privilegiado da beleza e da harmonia do mundo, quando a Natureza se via infinitamente mais vasta, poderosa e duradoura que todos os mortais reunidos”. É o que afirmam os irmãos Tavoillot. Talvez tenham razão e tanto zumbido atual sobre as abelhas seja o eco de uma voz que definha nos campos e jardins”, escreve Alejandro Cánepa, professor de Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade de Buenos Aires, em artigo publicado por Clarín-Revista Ñ, 17-08-2018. A tradução é do Cepat.
Retidão, abnegação, trabalho em equipe, modelo ideal de sociedade para alguns pensadores, símbolos de um ambiente puro; produtoras de mel, cera, pólen e própolis, geradoras de medo irracional para muitos moradores das grandes cidades, quando se deparam com uma delas.
As abelhas provocam diferentes interpretações, quase tantas como as flores que percorrem ao longo de sua vida. Talvez por isso apareçam, atualmente, em um verdadeiro enxame de ensaios, romances, contos e livros para pequenos, ao mesmo tempo em que cresce a preocupação por sua sobrevivência. Na sequência, um voo pelos vínculos entre esses insetos e a história e cultura humanas.
O status da abelha, como todo animal carregado de simbolismo, é ambíguo. Assim, para Pierre Henri e François Tavoillot, irmãos e autores de El filósofo y la abeja (Espasa, 2017) [O filósofo e a abelha], “nela encontramos a ambivalência natureza/cultura, já que segue sendo selvagem em estado doméstico (sua picada é temida) e doméstica em estado selvagem (produz seu mel inclusive sem apicultura). Em resumo, o mundo da abelha se situa, em todos os seus aspectos, no confuso ponto de união de diversas ordens do real: o vegetal e o animal, o terrestre e o celeste, a natureza e a cultura, o vivente e o eterno, o humano e o divino”.
A presença das abelhas chamou a atenção dos filósofos desde cedo. Os Tavoillot recordam que o próprio Aristóteles dedicou a este inseto numerosas observações, e foi o animal mais analisado por ele, depois do ser humano.
De fato, durante séculos, as opiniões do filósofo (algumas errôneas, como a que a abelha-rainha era um macho e que o mel “caía do ar”) marcaram as opiniões de outros pensadores. Se para Aristóteles a abelha representava a harmonia com o Cosmos, para o poeta romano Virgílio ilustrava a ordem do Universo “identificado com a pax romana”, de acordo com estes autores franceses.
O primeiro cristianismo também considerou a abelha um animal simbólico, mesmo que não figurasse nenhuma referência a ela no Novo Testamento. Como recorda Santo Ambrósio, no século IV depois de Cristo, é preciso “imitar a abelha, que forma favos sem prejudicar ninguém e sem atentar contra o bem alheio”.
Ao mesmo tempo, Santo Agostinho, ainda que a elogiava, ponderava: “Se admiramos a abelha que retoma o voo após ter feito seu mel com uma inexplicável sagacidade pela qual prevalece sobre o homem, não devemos por isso a preferir, nem a comparar conosco”. Não obstante, desde o anarquista Proudhon até Francesco Petrarca e Michel de Montaigne, ponderaram as características de abelhas e colmeias como rotas a seguir pela sociedade humana.
Em parte por sua longa história relacionada com a da humanidade, por seu poder simbólico, pelas múltiplas analogias que as pessoas se permitiram sobre elas e pelos dados atuais que marcam seu descenso, as abelhas chamam a atenção de artistas e escritores, além da de cientistas.
Em 1901, o ensaio do dramaturgo belga Maurice Maeterlinck, A vida das abelhas, se tornou um clássico e, sessenta anos depois, um relato de um argentino enriqueceria esse cruzamento entre literatura, apicultura e sociedade e começava a assinalar uma preocupação ecológica: em 1961, Marco Denevi publicava o relato Las abejas de bronce [As abelhas de bronze], no qual um enxame de metal substituía ao original e destruía as flores dos países, além de produzir um mel “com sabor metálico”.
Mais perto no tempo e no plano romanesco, em 2014, a escritora argentina radicada na França, Laura Alcoba, publicava seu romance El azul de las abejas (reeditado este ano por Edhasa) [O azul das abelhas], onde a obra de Maeterlinck aparece como uma das costuras da relação entre a narradora e seu pai. E, em 2016, Siruela lançou História de las abejas [História das abelhas], obra de ficção da norueguesa Maja Lunde, que tece as histórias de três apicultores em diferentes épocas e lugares.
Uma delas se dá na China, em 2098, em um mundo... sem abelhas. As produções para pequenos também se alimentam deste murmúrio: em 2007, estreou o recordista filme de animação Bee movie, e em 2016 o ilustrador polonês Piotr Socha publicou em castelhano o livro-álbum Abejas [Abelhas]. Na série Black Mirror, aparecem como protagonistas e substituem a espécie, que se extinguiu. São artificiais, pura ameaça tecnológica.
Para além do campo cultural, a apicultura é uma atividade lucrativa – inspiradora de representações, como vimos – estendida por todo o mundo. A Argentina é uma das principais produtoras de mel. Há estabelecimentos apícolas espalhados por lugares muito diferentes como Tucumán, San Juan, Río Negro e a província de Buenos Aires. Da localidade bonaerense de Escobar, o presidente da Cooperativa Apícola Amuyen, Ángel Davico, conta: “Nós produzimos principalmente pólen e, depois, mel. O pólen é vendido para outros produtores ou para dietéticas, veterinárias e ginásios”. O produtor afirma que o uso de agroquímicos sabota o trabalho (e a vida) das abelhas.
“Tivemos que transferi-las para a região do Delta, ao menos até que inventem a soja flutuante”, ironiza. “A monocultura retira a variedade de alimentação das abelhas e, além do mais, por ser um veneno, as abelhas o trazem para as colmeias e contagiam as outras”, acrescenta.
O fato de o modelo vigente de agronegócio afetar de cheio as abelhas e seu mundo não implica negar que a mortalidade das colmeias também obedece à presença de ácaros, fungos e bactérias.
Assim, essa combinação de causas extermina uma porcentagem significativa desses insetos. Em Córdoba, morreram 70 milhões nos primeiros meses do ano e uma hipótese consolidada é que um agroquímico foi o fator principal desse fato.
Martín Eguaras, doutor em Biologia, é um dos que mais sabe sobre abelhas no país. Pesquisador do CONICET, codirige o Centro de Pesquisa em Abelhas Sociais, dependente da Universidade Nacional de Mar del Plata.
“A quantidade de abelhas está em declive e é um fenômeno em nível mundial”, disse em diálogo com a revista Ñ. Embora o cientista afirme que os parasitas têm sua boa parte de responsabilidade neste processo, os agroquímicos “são um componente principal para definir a razão pela qual as abelhas morrem”.
Se o mel é o resultado mais tangível (e saboreável) da atividade apícola, Eguaras explica o papel fundamental que estes animais possuem. A principal contribuição é o processo de polinização, conduzem grãos de pólen de uma flor para outra, aumentam a produção de frutos e sementes, e assim dão de comer a toda a população humana.
Há espécies vegetais que, caso existam abelhas perto, podem chegar a aumentar sua produção em 40%, como o tomate e as fruteiras. E, além disso, o tipo de fruto que se consegue é melhor”.
Esses animais peculiares aparecem em flores de uma lavanda ou de um eucalipto, mesmo em uma época submetida aos algoritmos informáticos. Seu voo e suas tarefas parecem um lembrete de uma razão alheia à programação artificial.
“Hoje, lamentamos com muita emoção o declive da abelha porque durante muito tempo foi considerada o símbolo privilegiado da beleza e da harmonia do mundo, quando a Natureza se via infinitamente mais vasta, poderosa e duradoura que todos os mortais reunidos”. É o que afirmam os irmãos Tavoillot. Talvez tenham razão e tanto zumbido atual sobre as abelhas seja o eco de uma voz que definha nos campos e jardins.
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Segredos das abelhas e sua sociedade modelo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU