04 Julho 2018
Aqueles que atribuem ao sucessor de Lefebvre o papel de “defensor da tradição” manifestam que estão totalmente desorientados sobre a história dos últimos 50 anos e que não têm o mínimo senso da tradição que caminha e que se cura.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado em Come Se Non, 03-07-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com uma entrevista concedida ao Tagespost no dia 28 de junho passado, Bernard Fellay responde a perguntas bem formuladas sobre os 30 anos de experiência do cisma lefebvriano.
Muitas respostas fotografam com muita precisão o nível de distância e de hostilidade dos lefebvrianos em relação ao catolicismo romano, assim como ele se desenvolveu no Concílio Vaticano II em diante.
Gostaria de me deter apenas sobre algumas dessas respostas, que são singularmente úteis para se falar não tanto dos lefebvrianos, mas sim dos seus interlocutores na Cúria Romana e do seu jogo perigoso e duplo. Cito uma série de respostas de Fellay, às quais faço seguir meus breves comentários.
Fellay expressa opiniões sobre a missa resultante da Reforma litúrgica tão carregadas de preconceitos e tão injustos a ponto de clamar por vingança ao céu. Eis um primeiro trecho em que ele se expressa sobre o Concílio Vaticano II e sobre a reforma da missa:
“As reformas que se seguiram demonstraram isso mais claramente do que o próprio Concílio. O problema se condensou sobre a nova missa. Em Roma, disse-se ao arcebispo Lefebvre aut aut: ‘Se o senhor celebrar a nova missa, está tudo bem’. Os nossos argumentos contra a nova missa não importavam nada. Enquanto isso, o missal de Paulo VI foi composto com a colaboração de teólogos protestantes. Se somos forçados a celebrar essa missa, então realmente surge um problema. E nós fomos levados a fazer isso.”
É evidente que a incompreensão da missa resultante da Reforma Litúrgica leva a uma incompreensão radical do Concílio e do caminho de recompreensão do mundo moderno realizado pelo próprio Concílio. Fellay desacredita o Concílio e a Reforma Litúrgica. Com quem expressa essas opinião não se começa nem a discutir. Ele excomunga a si mesmo, pelos argumentos que utiliza.
A propósito da ruptura e do papel que o cardeal Ratzinger teve no caso em 1988, Fellay diz:
“(Ratzinger) não entendeu como eram profundas as razões do arcebispo e a desorientação dos fiéis e dos padres. Muitos não aguentavam mais escândalos e desconfortos pós-conciliares, e também o modo em que a nova missa era celebrada. Se o cardeal Ratzinger tivesse nos compreendido, ele não teria agido assim. E acho que ele se arrependeu. Por isso, como papa, tentou reparar os danos com o motu proprio e remover a excomunhão. Somos-lhe realmente gratos pelas suas tentativas de reconciliação.”
Essas palavras, que Fellay obviamente carrega com um tom totalmente particular, também revelam um dos equívocos mais insidiosos que estão por baixo de todos esses casos. A simples possibilidade de que o texto do Summorum pontificum tenha sido entendido como uma espécie de “ressarcimento do dano” e de “condição” para o acordo realmente parece ser uma gravíssima responsabilidade. Da parte dos lefebvrianos, pela incompreensão da reforma, e da parte de Bento XVI, pela relativização e pela banalização da própria reforma.
Depois de 30 anos daquele cisma, não há razões para manter ainda um paralelismo entre formas diferentes e contraditórias do mesmo rito, que não se fundamentam nem teologicamente, nem juridicamente, nem liturgicamente.
Mas talvez o texto mais surpreendente e preocupante seja aquele que Fellay dedica às demandas romanas para se chegar a um acordo. Eis as suas palavras:
“Nós devemos questionar certos pontos do Concílio. Os nossos interlocutores em Roma nos disseram: os pontos principais – liberdade de consciência, ecumenismo, nova missa – são problemas em aberto. Trata-se de um progresso incrível. Até agora se dizia: vocês devem obedecer. Agora, os colaboradores da Cúria dizem: vocês deveriam abrir um seminário em Roma, uma universidade para a defesa da tradição. Não é mais tudo preto e branco.”
É inevitável que Fellay demonstre um certo entusiasmo. Se Roma, sem qualquer responsabilidade, levasse a pensar, mesmo que apenas remotamente, que liberdade de consciência, ecumenismo e nova missa possam ser “variáveis não necessárias” da identidade católica, é claro que, para os lefebvrianos, seria um verdadeiro triunfo. Eles não teriam qualquer dificuldade para se reconciliar com uma Roma que se tornou, repentina e improvisadamente, lefebvriana.
Mas quem pode ter dito a Fellay aquelas palavras irresponsáveis, senão algum membro da Comissão Ecclesia Dei? E não será o caso de submeter esses oficiais a uma verificação, pelo menos em relação à tradição católica assim como o Concílio Vaticano II a projetou? Será que os membros dessa comissão, na fúria de celebrar com o rito antigo, se descobriram mais apaixonados pelo Concílio de Trento do que pelo Concílio Vaticano II? Aqueles que atribuem ao sucessor de Lefebvre o papel de “defensor da tradição” manifestam que estão totalmente desorientados sobre a história dos últimos 50 anos e que não têm o mínimo senso da tradição que caminha e que se cura.
Não deixaremos a “monsenhorzinhos” romanos sem verdadeira cultura eclesial e analfabetos em liturgia e em teologia conciliar a faculdade de liquidar a Reforma Litúrgica, o ecumenismo e a liberdade de consciência por um prato de lentilhas.
Sobre esse ponto, Roma só pode ser rigorosamente intransigente. Para permanecer aberta ao Espírito Santo. E para isolar definitivamente todos aqueles que querem reduzir a Igreja a um museu.
No entanto, se eu tivesse que considerar cuidadosamente a mesa das negociações com Fellay, francamente não saberia para que lado da mesa deveria olhar com maior preocupação.
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A 30 anos do cisma lefebvriano: um jogo duplo na Cúria Romana. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU