13 Junho 2018
"Teologia, creio, porque o que interessa ao autor não é a narrativa bíblica, mas a imagem de Deus que veicula. E qual é essa imagem? Aquela de um Deus frágil", escreve Michelina Borsari, filosofa, em artigo publicado por Settimana News, 10-06-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Teologia para tempos incertos: este é o título de uma obra publicada pela Laterza (Bari, 2018), assinada por Brunetto Salvarani. Vamos reproduzir a apresentação feita em Modena (29 de maio) por Michelina Borsari. A autora deste ensaio, formada em filosofia, foi durante 16 anos o coração e o motor do Festivalfilosofia, que envolve as cidades de Modena, Carpi e Sassuolo.
Nós precisamos da Bíblia, afirma esse livro denso e bem escrito. É a Bíblia o fármaco capaz de curar os muitos males pelos quais nos sentimos cercados. E, se é verdade que a Bíblia existe há milênios, também é verdade que 1) os tempos mudaram, e 2) nem é mesmo verdade que a Bíblia está ali há milênios já que foi mantida como um livro fechado.
Vejamos os tempos. O livro começa com um esboço da paisagem com tons bastante dramáticos. Cito: incerta, confusa, ansiosa, deprimida, autodestrutiva, resignada ao desaparecimento do outro, decadente e deteriorada... Certamente a reconheceram apesar da incidência pesada da cor: é o nosso tempo. Período de risco e incerteza – costuma-se dizer - como se tivesse existido algum tempo em que o ser humano tenha percebido a sua vida como uma trajetória certa e segura.
O fato é que, eu cito: estamos no final de um universo mental, as Grandes Narrativas esgotaram a sua força propulsora e não há novos modelos a vista.
Até mesmo as narrativas das crenças tornaram-se opacas, áfonas, inúteis. Cito novamente: É todo o horizonte religioso convencional que se tornou torcido sobre si mesmo e o inteiro cristianismo que se estilhaçou, tornando-se incompreensíveis para a maioria das pessoas, e de muitas maneiras não natural. A ponto de levantar uma questão inesperada: somos os últimos cristãos? Mas como? Não estávamos presentes no momento da vingança de Deus?
Contraordem: estamos no tempo da vingança de Deus, mas, ao mesmo tempo, na época de sua derrota. Pois, se é verdade que as religiões ganharam visibilidade no espaço público, também é verdade que elas não necessariamente retomaram o domínio. Especificamente, é considerado definitivamente concluído o regime de cristandade que moldou a sociedade e a cultura ocidentais. Disso deriva uma indiferença que agrava o drama da ignorância religiosa em geral, e da Bíblia em especial.
Mas, considerando bem, a Bíblia - a Bíblia em sua totalidade com o Primeiro e o Novo Testamento - para o cristianismo romano é uma aquisição recente, lançada pelo Concílio Vaticano II no mercado, 50-60 anos atrás, o período de duas gerações. Antes daquela data, o “Antigo Testamento” permanecia sendo a Escritura Hebraica, diante da qual foi acordado marcar, durante todo o milenário regime cristão, a novidade do Novo Testamento, que também no nome sinalizava o seu caráter de superação do Velho.
É bom lembrar que sobre a leitura da Bíblia, sobre a possibilidade de acessar diretamente o texto na língua moderna, dividiu-se a cristandade. De modo que, quando em algum filme aparecer o Livro, tenham certeza que se trata de uma Bíblia reformada.
A Igreja de Roma e os seus ministros não, não delegam, preservam - devemos dizer a alto custo - o monopólio da leitura. Tanto é assim que, para a longa e densa história dos efeitos da Bíblia – a sua Wirkungsgeschichte – dever-se-ia falar justamente de efeitos das suas interpretações.
Eis aqui, então, que enquanto a Modernidade avança com prepotência com todas as suas libertações (incluindo o analfabetismo), o Vaticano II finalmente realiza o grande salto: o Antigo Testamento entra na missa e começa a ser lido. E, imediatamente, a Bíblia muda, como, aliás, reza o antigo ditado hermenêutico: Sacra Scriptura cum legente crescit. O texto mudou? Claro que não (mesmo que as traduções se esforcem ...). Mas os olhos mudaram, o significado e o alcance das palavras, os tempos.
E uma vez que, como vimos, os tempos são incertos, por que esse livro que apresenta em sete capítulos sete figuras bíblicos não usa o título Uma Bíblia para tempos incertos, mas sim Teologia para tempos incertos?
Teologia, creio, porque o que interessa ao autor não é a narrativa bíblica, mas a imagem de Deus que veicula. E qual é essa imagem? Aquela de um Deus frágil.
Uma teologia da fragilidade de Deus perpassa transversalmente as Sagradas Escrituras – do Primeiro ao Novo Testamento - e recorta histórias e personagens (Jonas, Noé, Jacó, Jó, Qoelet o Eclesiastes, Jesus, a Igreja) que remetem todos ao espelho muito humano da fragilidade. Todos aparecem com traços humanos (aliás, inclusive são todos homens!), nem perfeitos, nem perfeitamente virtuosos. Não aqueles do Primeiro Testamento e nem aqueles do Novo, sobre a virtude dos quais seria o suficiente citar o episódio da cruz onde os 12 acabaram sumindo (mas não as mulheres).
Em suma, as figuras que Brunetto Salvarani seleciona para nós, iluminando-as com a luz e as sombras da fragilidade humana não compõem um martirológio e não têm a postura exemplar dos santos. São pobres Cristos, como todos nós.
Também Cristo? Até mesmo o Deus dos exércitos? Aqui está a dimensão teológica do livro e a sua razão de ser: a fragilidade é o caráter dos tempos e do homem, porque é antes de tudo um caráter de Deus. Justamente nisso seríamos feitos à sua imagem e semelhança.
Nesse ousado enfoque Brunetto Salvarani não está evidentemente sozinho: ao longo do livro são acrescentadas notas cultas e fundamentadas sobre um debate que data do século passado e que foi se articulando cada vez mais, alimentando-se justamente daquela leitura judaica que o Concílio permitiu abaixando as cercas. Alimentando-se, em particular, da teologia do Holocausto.
Quem entre os cristãos tivesse permanecido com a ideia do Deus Todo-Poderoso (e de resto... Creio em um só Deus, pai todo-poderoso...) deve estar querendo sair correndo. Mas o livro declara que a leitura da Bíblia também é útil para os Gentios, em especial para os Gentios italianos, que - e não apenas por desinteresse próprio - estão entre os mais afeitos pela ignorância bíblica.
E aqui os Gentios são alertados que, sem a Bíblia acabariam por desaparecer não só as grandes e pequenas obras da cultura literária ocidental, mas também aquelas pictóricas e visuais, e mesmo as musicais, em uma longa parábola que atingiria até os blues de Sonny Bono.
Concordo, não há dúvida: também os Gentios devem abaixar as cercas e começar a ler a Bíblia: eles se sentiriam em casa. É um argumento suficiente? Permita-me acrescentar outro, que retiro da La Santa Ignorancia de Olivier Roy, Feltrinelli 2009.
O livro esclarece um engano básico: a secularização aliada com a globalização não eliminou a religião, mas produziu uma sua mutação; separou-a de seu contexto cultural, fazendo-a parecer nos termos de uma "pura religião". Dessa forma, garantiu-lhe autonomia e capacidade de expansão para além do território de pertencimento histórico.
Agora, a desterritorialização e desculturação são justamente os traços de um novo religioso que, em sua "pureza", se fundamentaliza. O retorno do religioso não é apenas uma espécie de ilusão ótica, é também o teatro do avanço de versões religiosas que se recusam a ser reduzidas a sistemas simbólicos e que tornam explicita a ruptura com as práticas e as culturas dominantes. Em suma, a batalha pela Bíblia e aquela pela cultura podem revelar-se a mesma e idêntica batalha: aquela contra a ignorância e contra os fundamentalismos que agora correm soltos mesmo nas nossas ruas.
No entanto, querido autor, seria melhor, para esses Gentios bem dispostos, citar pelo menos uma edição dessa bendita Bíblia. E não reduzi-la a comentários, mais ou menos atualizados: para eles não seriam suficientemente satisfatórios.
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Figuras bíblicas para tempos incertos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU