30 Mai 2018
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho da solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, 31 de maio (Mc 14, 12-16.22-26). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Esta festa da Eucaristia, ou do Corpo do Senhor (Missal de Pio V), ou solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Missal de Paulo VI), assim como a solenidade da Triunidade de Deus celebrada no domingo passado, é tardia. De fato, ela foi instituída no século XIII e, no século seguinte, custou a se impor no Ocidente, permanecendo, ao contrário, sempre desconhecida na tradição ortodoxa.
A intenção da Igreja é a de propor, fora do santíssimo Tríduo Pascal, a contemplação, a adoração e a celebração do mistério eucarístico do qual se faz memória na Quinta-Feira Santa, na coena Domini. Quanto ao trecho evangélico escolhido, o missal neste Ano B propõe a leitura do relato da última ceia no Evangelho segundo Marcos, que agora procuramos acolher como palavra do Senhor.
Antes de sua prisão e de sua morte em cruz, Jesus quis celebrar a Páscoa com os seus discípulos, e, justamente para isso, durante a sua última estada em Jerusalém, no primeiro dia da festa dos pães ázimos, envia dois de seus discípulos para que preparem o necessário para a ceia pascal.
Jesus sabe que é caçado, que não pode confiar nem sequer em todos os seus discípulos, porque um já o traiu (cf. Mc 14, 10-11), portanto, predispõe todas as coisas para que aquela ceia pascal possa acontecer, mas age com muita circunspecção, como se não quisesse que se soubesse onde a celebraria.
Por isso, os dois discípulos enviados por ele devem encontrar um homem que carrega um jarro de água (algo incomum, porque eram as mulheres que faziam tal operação, mas esse é o sinal combinado), devem segui-lo até uma casa, onde ele lhes indicará a “câmara alta”, a sala no andar de cima já mobilada e pronta, para se predispor tudo para a ceia pascal.
De fato, é preciso preparar o pão, o vinho, o cordeiro, as ervas amargas, para recordar em uma refeição – como previa a Lei (cf. Ex 12) – a saída de Israel do Egito, a libertação da escravidão, o nascimento do povo pertencente ao Senhor. E assim, em obediência à ordem dada por Jesus com autoridade e gravidade aos dois discípulos enviados, tudo está preparado para aquela celebração pascal, por aquela hora solene, para aquela hora última de Jesus com os seus discípulos, para aquela hora na qual a Páscoa do cordeiro se tornará a Páscoa de Jesus.
E, quando Jesus se senta à mesa para a ceia, ele faz gestos e diz algumas palavras sobre o pão e sobre o vinho, dando origem à celebração da nova aliança com a sua comunidade. Dessa cena, temos quatro relatos, três nos Evangelhos sinóticos (cf. Mc 14, 22-25; Mt 26, 26-29; Lc 22, 18-20) e um, o mais antigo, na Primeira Carta aos Coríntios (cf. 1Cor 11, 23-25): relatos que trazem palavras um pouco diferentes entre si, como testemunho de que não se trata de fórmulas mágicas a serem repetidas tais e quais, mas de palavras que manifestam a intenção de Jesus e explicam os seus gestos.
As primeiras comunidades cristãs, portanto, querendo permanecer fiéis à intenção de Jesus, repetiram as suas palavras, retomaram os seus gestos, e, desde então, a ceia do Senhor é sempre e em toda parte celebrada nas igrejas.
Em primeiro lugar, Jesus faz uma ação ritual: toma o pão ázimo que está sobre a mesa do seder pascal, pronuncia a bênção a Deus por aquele dom, depois o parte e o dá a seus discípulos. Tomar o pão, parti-lo e dá-lo é um gesto cotidiano feito por quem preside a mesa, mas Jesus o faz com uma intensidade e com uma força que o tornam cheio de significado, fazendo dele um gesto que se imprime na mente e no coração dos comensais daquela ceia pascal.
Jesus assume a atitude e a palavra da Sabedoria de Deus que fala e convida ao banquete (cf. Pr 9, 1-6), assume as palavras do profeta que chama para a refeição da aliança eterna (cf. Is 55, 1-3), e oferece como alimento a sua vida, o seu corpo, a si mesmo!
Há nesse gesto e nessas palavras de Jesus a sua doação até o extremo, porque ele amou e ama até o dom da sua vida (cf. Jo 13, 1). Diante dessa ação, os discípulos certamente ficaram abalados e somente após a morte e ressurreição de Jesus compreenderam o que não puderam esquecer.
Também não esqueçamos que o gesto de partir o pão indicava já nos profetas o compartilhar o pão com os pobres, os necessitados e os famintos (cf. Is 58, 7), expressando, desse modo, uma partilha daquilo que faz viver, que manifesta a comunhão entre todos aqueles que comem o mesmo pão. Eis por que que o primeiro nome dado à Eucaristia pelos discípulos e pelos cristãos das origens é “fração do pão” (cf. Lc 24, 35; At 2, 42; 20, 7; Didaqué 9, 3).
Quanto às palavras que acompanham o gesto – “Tomai, isto é o meu corpo” –, elas querem significar que Jesus entrega e dá toda a sua vida inteira aos discípulos, os quais, comendo esse pão, tornam-se partícipes da sua vida consumida e entregue por amor, “até a morte e morte de cruz” (Fp 2, 8). Desse modo, Jesus explica antecipadamente e em plena liberdade, com gestos e palavras, o que acontecerá dali a pouco: a sua morte deverá ser percebida como dom da sua vida às pessoas, vida oferecida em sacrifício a Deus.
Depois, Jesus também toma o cálice em suas mãos, dá graças a Deus pelo fruto da videira e, com solenidade, declara: “Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos”. Assim como deu seu corpo entregando o pão, assim também ele dá seu sangue estendendo aos discípulos o cálice de vinho para beber; ou seja, Jesus dá a sua vida, significada na cultura semítica pelo sangue.
O evangelista sublinha que “todos beberam” desse cálice, porque o dom de Jesus é para todos, sem excluir ninguém. Há um contraste entre esse “todos”, que indica todos os discípulos, e as palavras ditas anteriormente: “Um de vós me trairá” (Mc 14, 18). Mas isso destaca ainda mais o fato de que todos estão associados ao beber o cálice oferecido, até mesmo Judas, o traidor. A todos, sem excluir ninguém, Jesus oferece a sua vida e o seu amor gratuito, que nunca deve ser merecido.
Mas aqui é preciso captar também o cumprimento a que Jesus quer levar as palavras que selavam a aliança entre Deus e Israel no Monte Sinai, quando, com o sangue das vítimas do sacrifício, Moisés aspergiu o altar, trono de Deus, e o povo reunido em assembleia, dizendo: “Este é o sangue da aliança” (cf. Ex 24, 6-8). No Sinai, naquela celebração da aliança, o sangue, a vida unia Deus e seu povo em um pacto de pertença recíproca, em uma comunhão fiel na qual Deus se mostrava como “o Senhor misericordioso e compassivo, lento na ira, grande no amor e na fidelidade” (Ex 34, 6).
Mas a aliança que Jesus estipula com o dom de sua vida não é mais restrita ao povo de Israel, mas sim uma aliança universal, aberta a todas as nações, uma aliança no seu sangue derramado “pelas multidões” (rabbim, polloí: cf. Is 53, 11-12): não “por muitos”, portanto, mas “por todos” (cf. Concílio Vaticano II, Ad gentes 3).
O Apóstolo Paulo, justamente para afirmar essa destinação universal do dom do sangue de Cristo, escreve na Carta aos Romanos: “A prova de que Deus ama a todos é que Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5, 7-8). Ele morreu por todos, até mesmo por Judas, assim como por todos nós que estamos em maldade e na inimizade com Deus.
Aqui devemos entender como o dom da Eucaristia não é um prêmio, um privilégio para os justos, mas um remédio para os doentes, um viático para os pecadores. A Eucaristia nada mais é do que narração em palavras e gestos do amor de Deus, é a síntese de toda a vida do Filho Jesus Cristo, a síntese de toda a história da salvação.
Recordemos, enfim, que aquela antecipação da morte de Jesus no rito da ação de graças sobre o pão partido e no rito do cálice compartilhado é também uma antecipação do Reino que vem, em que a morte estará vencida para sempre. Por isso, Jesus diz: “Em verdade vos digo, não beberei mais do fruto da videira, até o dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus”.
A refeição eucarística, portanto, é prelúdio do banquete do Reino, em que Jesus, o Kýrios ressuscitado, comerá conosco e beberá conosco o cálice da vida futura, no banquete nupcial, em que o vinho será novo, isto é, outro, último e definitivo, vinho da própria vida divina, a sua vida que é ágape, amor: e nós beberemos aquele vinho novo vivendo nele e com ele para sempre.
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O dom de toda a vida de Jesus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU