Dimensão política do Tríduo Pascal

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15 Abril 2014

"Dentro de poucos dias estaremos celebrando a festa da Páscoa cristã. Desde a mais remota antiguidade a Páscoa cristã é a celebração do mistério da ressurreição de Jesus. Porém, a liturgia pascal, desde os primórdios, uniu a celebração da ressurreição de Jesus à sua paixão e morte. Num primeiro momento pode parecer estranho que a celebração pascal, enquanto festa da vida, esteja profundamente conectada com a paixão e a morte de Jesus. Mas nisso não há nenhum exagero e nem tão pouco algo fora de lugar", escreve José Lisboa Moreira de Oliveira, filósofo, teólogo, escritor, conferencista e professor universitário em artigo que nos foi enviado.

Eis o artigo.

Dentro de poucos dias estaremos celebrando a festa da Páscoa cristã. Desde a mais remota antiguidade a Páscoa cristã é a celebração do mistério da ressurreição de Jesus. Porém, a liturgia pascal, desde os primórdios, uniu a celebração da ressurreição de Jesus à sua paixão e morte. Num primeiro momento pode parecer estranho que a celebração pascal, enquanto festa da vida, esteja profundamente conectada com a paixão e a morte de Jesus. Mas nisso não há nenhum exagero e nem tão pouco algo fora de lugar.

A ressurreição acontece porque antes houve paixão e morte. Paixão entendida como a fidelidade de Jesus ao projeto do Pai até as últimas consequências (Mc 14,34-36). Morte porque aquele galileu se tornara muito incômodo para o sistema religioso e político da época e era preciso eliminá-lo de uma só vez e para sempre (Jo 5,18). Torturado, e depois eliminado da pior forma possível para aquela época, Jesus ressuscita pelo poder de Deus (At 2,24). Sua ressurreição foi a resposta dada pelo Pai aos seus torturadores e aos seus algozes. Eles pensavam que tinham eliminado para sempre a sua memória, mas, de repente, Jesus ressuscita glorioso e torna-se mais incômodo e mais vivo do que antes, para desespero daqueles que o tinham torturado e matado (Mt 28,11-15; At 5,21-42).

Precisamos eliminar os resquícios de certa cristologia ainda presente em determinados ambientes, segundo a qual Jesus teria passado pela tortura e pela morte para aplacar a ira de seu Pai. Deus teria ficado muito zangado com os pecados da humanidade e exigia uma satisfação, uma reparação à altura. E para realizar tal reparação teria decidido desde toda a eternidade punir o próprio Filho, de modo que sua ira fosse aplacada. Chegou-se a atribuir a Santo Anselmo esse absurdo. Porém, a teoria da expiação não passa de uma falsa interpretação do pensamento deste grande teólogo. Na verdade o que Anselmo quis afirmar, com sua teoria, foi a plena e absoluta liberdade de Jesus e a plena e absoluta acolhida da decisão de Jesus por parte do Pai. O Filho decide ir até o fim e não recuar, mesmo diante da ameaça de morte. O Pai decide acolher a decisão do Filho até as últimas consequências. Não interfere e não impõe ao Filho um meio-termo, um compromisso para salvar a própria pele, como, às vezes, costumam fazer certos pais quando seus filhos são ameaçados.

A superação desse tipo de cristologia do conformismo do Filho e da brutalidade sanguinária do Pai é de fundamental importância para não obscurecermos e não negarmos as devidas responsabilidades. As lideranças religiosas judaicas e o império romano tiveram, sim, a sua responsabilidade na tortura e na morte de Jesus (Jo 19,11). O que aconteceu não foi fruto do acaso ou de um plano previamente estabelecido por Deus e do qual Jesus não pôde fugir. O que aconteceu foi um conluio entre o poder religioso e o poder político que predominavam na Palestina daquela época. O sistema religioso e o sistema político de então torturaram e mataram Jesus. É claro que isso não nos dá o direito de acusar todos os judeus de todas as épocas pelo assassinato de Jesus, como tristemente e lamentavelmente fez a Igreja Católica até pouco tempo atrás e como levianamente continuam fazendo alguns católicos de direita. Não podemos nem mesmo condenar todos os romanos daquela época. Mas é preciso deixar claro que a morte de Jesus não foi um desejo do Pai e do qual o Filho não teve como escapar. Dizer que tudo já estava previsto é transformar a fé cristã em puro fatalismo e em mero capricho de Deus. E isso seria um tremendo absurdo.

A paixão, a morte e a ressurreição de Jesus inspiraram homens e mulheres de todos os tempos. Essas pessoas, animadas pela fé em Cristo, assumiram corajosamente o projeto de Deus até as últimas consequências. Desde os primeiros mártires do cristianismo até os mais recentes como Santos Dias, Margarida Alves, Dorothy Stang, Josimo e Oscar Romero, homens e mulheres seguiram em frente e não arredaram o pé diante das ameaças dos poderosos, prepotentes e arrogantes. E faziam isso porque estavam convencidos de que entre paixão, morte e ressurreição existe uma profunda ligação. Estavam convencidos de que, mesmo triturados e assassinados pelos sistemas religiosos e políticos, continuariam vivos, ressuscitados pelo poder de Deus. Famosa é a frase de Dom Oscar Romero: “Se me matam, vou ressuscitar na luta do meu povo”.

Meditar nestes termos sobre a paixão e a morte de Jesus é essencial, uma vez que corremos o risco de cultuar um Jesus açucarado, irreal e inexistente. De fato, ainda hoje não são poucas as pessoas e os movimentos de Igreja nos quais Jesus é visto sem nenhuma conexão com a sua história, com os fatos que antecederam a Páscoa. Isso leva a um cristianismo aguado e descomprometido, que se recusa a ver a realidade e se distancia propositadamente de um compromisso sério com a luta pela justiça e pela construção de um mundo mais humano e saudável. Nós cremos firmemente na ressurreição, no Cristo glorioso que venceu a dor, o sofrimento e a morte (Mc 16,6). Mas não podemos imaginar um Cristo ressuscitado diferente daquele que caminhou pelas estradas da Galileia e que enfrentou a paixão e a morte por causa da sua fidelidade ao projeto do Pai e por causa de seu amor pelo povo. As narrativas das aparições do Ressuscitado, mais do que evidenciar a reanimação de um cadáver – como se Jesus tivesse readquirido o mesmo corpo de antes da morte – querem evidenciar a relação entre o Jesus histórico e o Jesus ressuscitado (Lc 24,39-40; Jo 20,27). Querem mostrar que não é possível adorar o Ressuscitado negando aquele Jesus que caminhou pelas entradas empoeiradas da Palestina, anunciando a libertação aos pobres e oprimidos.

Neste sentido pode-se e deve-se dizer que o Tríduo Pascal possui uma dimensão política inegável. Celebrá-lo é reconhecer que Jesus, deliberadamente e conscientemente tomou partido, escolhendo ser fiel ao projeto do Pai, o qual incluía uma paixão pelo povo, um anúncio de libertação e uma rejeição radical do projeto do templo de Jerusalém que tinha se corrompido, transformando a religião num “mercado religioso”, num “covil de ladrões” (Jo 2,16). Celebrar o Tríduo Pascal é reconhecer que Jesus rejeitou o projeto político dos romanos, cujos chefes agiam como verdadeiras “raposas” (Lc 13,31-33), fazendo pesar sobre os ombros das pessoas, especialmente dos mais pobres, a tirania e a opressão (Mc 10,42-45).

Sem essa dimensão política, toda celebração pascal vira uma farsa, um ritual sacrílego que ofende a Deus, porque desprovido de consequências reais para a vida da humanidade. Ainda hoje existem aqueles que querem uma Semana Santa folclórica, com bastante emoção e choro diante de uma estátua de Nossa Senhora das Dores ou de um Senhor dos Passos branco, de olhos e sangue azuis. Mas não querem uma Semana Santa que associe as dores de Maria, mãe de Jesus, às dores de Cláudia Teixeira, negra, pobre, moradora de periferia, brutalmente arrastada e assassinada pela Polícia Militar do Rio. Não querem uma Semana Santa que ouse associar o Cristo amarrado na coluna da flagelação ao jovem negro amarrado a um poste por playboys brancos cariocas, num bairro chique do Rio de Janeiro.

É fácil comover-se diante de estátuas, mesmo que sejam estátuas “sagradas”. Elas estão lá imóveis. Não nos incomodam e não nos desinstalam. Não nos causam problemas, não nos provocam e nem exigem de nós conversão. Mas comover-se diante de estátuas não é cristão, não é evangélico e, de certa maneira, é uma idolatria. Idolatria porque Jesus não quer lágrimas para ele e nem tão pouco para uma estátua sua ou de sua mãe. Não foi isso o que ele disse a algumas mulheres enquanto se dirigia para o Calvário (Lc 23,27-32)? O que ele quer mesmo de nós é uma comoção que se transforme em ação em favor dos que estão oprimidos, sofridos, abandonados e excluídos do direito à vida plena (Mt 25,31-46). Urge, pois, celebrar o Tríduo Pascal com obras e gestos, fazendo o que pediu o papa Francisco na Evangelii Gaudium (EG), ou seja, “tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (EG, 24). Se a nossa celebração da Páscoa serve apenas para aderir a uma economia que mata, deixa do mesmo jeito a desigualdade social, ajuda a produzir uma sociedade de “pessoas descartáveis” e contribui para a globalização da indiferença (EG, 53-60), então é uma páscoa consumista, de supermercado, e não a Páscoa de Jesus. Para ser Páscoa de Jesus é preciso que ela não seja uma “espiritualidade do bem-estar”, uma “teologia da prosperidade” alienante, subjetiva, sem compromissos fraternos (EG, 89-90). Para ser a celebração da Páscoa de Jesus ela precisa ser política, ou seja, anunciar um caminho esperançoso e libertador que leve felicidade e alegria aos pobres. Para ser Páscoa de Jesus ela terá que ser uma verdadeira “caravana solidária” (EG, 87).