29 Mai 2018
Os caminhoneiros provaram ser a única categoria capaz de converter o Brasil em um refém do tamanho de um continente.
É sexta-feira ao meio-dia no centro do Recife, uma cidade de mais de um milhão e meio de habitantes, capital de Pernambuco, mas poderia ser a primeira hora de um domingo, a julgar pelo ambiente desértico. No que deveria ser o ápice do horário comercial, as ruas estão quase vazias, pelas vias quase não passam carros e há várias lojas fechadas. Claudenilson Carlos da Silva, de 34 anos, conta as mesas que estão sem ninguém no restaurante em que trabalha. "Se continuar assim vamos fechar mais cedo”, calcula. “Agora é hora do almoço, era para isso estar cheio.”
A reportagem é de Tom C. Avendaño, Afonso Benites, Felipe Betim e Marina Rossi, publicada por El País, 28-05-2018.
Isso é o que se passa por uma cena normal no Brasil dos últimos dias. O país inteiro passou ao menos uma semana imerso em uma greve de caminhoneiros que paralisou boa parte de sua vida pública, quando não transformou o dia a dia em seus 26 Estados em um pesadelo logístico. Postos de gasolina, supermercados, hospitais e aeroportos foram ficando desabastecidos com o passar dos dias e suspenderam alguns de seus serviços: os portos ficaram sem nada para exportar e os cidadãos e governos locais ainda buscam desesperadamente fórmulas para resolver a situação. E como trilha sonora de todo este caos, o zunzunzum de soluções temporais que o Governo federal, de Michel Temer, vai anunciando e que, até um final in extremis, pouco fizeram para mudar a situação nas ruas.
Quando a greve começou, na segunda-feira passada, nada indicava que iria alcançar essa dimensão. Os caminhoneiros protestavam contra o preço do combustível, o que não parecia um despropósito. O valor não parou de subir desde junho de 2017, quando a petroleira estatal, a Petrobras, começou a se basear na oscilação internacional. Mas se a Petrobras mudou de política de preços é porque Temer permitiu em maio de 2016, razão pela qual, nestes primeiros dias, o Executivo pouco pôde – ou quis – fazer. Só que essa resposta implicava um erro de cálculo: o Brasil é o país que mais depende de rodovias no mundo. No total, 58% de suas mercadorias – e, sobretudo, 90% de seu petróleo –, é distribuído através delas (nos Estados Unidos, um país de menor tamanho, somente 43% do petróleo é transportado assim). Os caminhoneiros são a única categoria capaz de converter o primeiro país latino-americano em um refém do tamanho de um continente.
O alarme soou na quarta-feira, quando várias cidades começaram a viver a mesma cena: carros amontoados em postos de gasolina que estavam entregando suas últimas gotas de combustível. Na quinta-feira já se falava em crise. A central de abastecimento do Rio de Janeiro não recebeu 90% dos caminhões que esperava e todas as grandes cidades reduziram o transporte público à metade. No Paraná, no Sul, duas universidades fecharam as portas. Na sexta-feira a crise se transformara em caos nacional. Os aeroportos já cancelaram voos às dezenas, incluindo alguns internacionais. São Paulo, a maior megalópole e a mais rica do país, lar de 12 milhões de pessoas, se declarou em estado de emergência: horas depois, 99% de seus postos de gasolina ficaram vazios. Em algumas de suas ruas começaram a aparecer entregadores de comida em domicílio a cavalos. Os Estados de Pernambuco e Sergipe também se declararam em emergência logo depois. O aeroporto de Brasília cancelou 40 voos. Uma associação de exportadores de carne anunciou que, com a falta de alimentos, morreriam 1 bilhão de aves e 20 milhões de suínos.
Enquanto isso, em estradas de todo o país ocorriam piquetes de caminhões com os motoristas dentro. Na sexta-feira havia 534 e em um deles, na periferia de São Paulo, estava Ademir Wagenknecht, de 43 anos, 25 deles ao volante de um caminhão. “Às vezes trabalho dez horas e às vezes, 20, e vejo meus filhos três ou quatro dias por mês”, explica. “Um só pneu já é um absurdo de caro, custa 1.800 reais, que é o que recebo para levar cebolas a Santa Catarina. O que me resta se gasto tanto com diesel? Tenho que tirar do meu bolso. Eu segui a profissão do meu pai, que me ensinou o trabalho, mas na época havia muito menos dificuldades.”
Não foram poucos os momentos da crise em que o Governo projetou a imagem de que simplesmente não sabia o que fazer. Não há precedente na história do Brasil para este tipo de problema. A frota de caminhoneiros nunca havia sido tão grande, o Executivo nunca tão impopular (somente 5% da população vê Temer com bons olhos) e, sobretudo, o país não tem prática de taxar o petróleo de modo livre. A norma era que a Petrobras modificasse artificialmente seu valor seguindo indicações políticas, mas quanto Temer chegou ao poder, em maio de 2016, renovou a cúpula dirigente da petroleira e lhe deu liberdade para mudar o sistema de preços. Eles decidiram se basear na oscilação internacional, que não está exatamente baixa ultimamente. Há duas semanas o barril do Brent alcançou 80 dólares (quase 300 reais) pela primeira vez desde 2014. No resto do mundo, as economias emergentes como a brasileira sofrem os vaivéns do dólar, e o real está cada vez mais distante da moeda norte-americana. Ou seja, o preço subiu 50% em um ano e a moeda perdeu 4,3% no último mês. O fósforo e o pavio da bomba.
A princípio Temer tentou ser conciliador. Na quarta-feira se vangloriou de ter convencido a Petrobras a baixar o preço do diesel em 10% em relação ao valor internacional, e o deixar assim durante 15 dias como gesto de boa vontade para negociar. Com isso, fez disparar o medo de que a política voltasse a controlar a Petrobras e as ações da petroleira desabaram pelo menos 14%. Esse único gesto já havia baixado o valor da maior empresa brasileira em 47 bilhões de reais. Na quinta-feira Temer voltou à carga. Comprometeu-se a pagar à Petrobras a diferença entre o valor internacional do diesel e o preço para o consumidor brasileiro. Assim o preço não se alteraria até dezembro. Não bastou. Na sexta-feira Temer voltou a aparecer e, desta vez, quando surgiu na televisão, nas ruas de Brasília se escutou um buzinaço coletivo. Sua solução desta vez foi mais drástica: ameaçou chamar o Exército para desobstruir as estradas.
Alguns piquetes foram se dissolvendo ao longo do fim de semana e Governo prosseguiu com a fórmula de se antagonizar com os caminhoneiros. Entre as acusações: estavam fazendo locaute, ou seja, a paralisação patronal (no Brasil se adapta o termo inglês, lockout), que é ilegal; e também que estavam associados a máfias e criminosos para pressionar a classe política. Ao final, cedeu aos pontos principais pedidos pelos grevistas. Não parecia ter muita mais opção. Se a ideia era lançar a categoria à ira da população, não se saiu de todo bem, pelo menos no momento. O atendente Claudenislon os incentiva, no restaurante vazio do Recife, onde trabalha: “Quando fazem manifestação contra a tarifa de ônibus, não vão até o fim? Até abaixar? Então por mim, eles [os caminhoneiros] deveriam ir até o fim”, diz. “Até o preço do combustível abaixar.”
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Uma semana de greve de caminhoneiros e de caos na República Federativa das Rodovias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU