03 Abril 2018
"Peregrinamos, eu e minha mulher pela Itália que há tempo fora libertada, assim que houve um ano em que nos encontramos além das florestas na borda do Casentino e já era meio-dia, e estávamos sozinhos na paisagem, naquelas paragens, solitários e sem rumos, e seguíamos assim só por seguir, uma placa avisou sobre uma antiga capela, a capela avisou sobre a Revolution, e foi assim que eu conheci aquele padre (...). Ele fez algo com as mãos e ao fazê-lo ele celebrava, o seu povo fazia algo com as mãos e ao fazê-lo servia (...). Aquela festa da Libertação era ver e ouvir em paz uma missa, a presença de Cristo tinha o perfume da sopa de grão de bico e da torta de acelga, eu não sou católico, mas não por isso não tenho o direito de poder acessar o sagrado. Desde então, não foi necessário esperar até o dia 25 de abril para retornar à capela de Romena".
A reportagem é de Alessia Rastelli, publicada no caderno La Lettura, do jornal Corriere dela Sera, de 25-03-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Depois daquela primeira vez, na esteira dos Beatles, o escritor Maurizio Maggiani voltou todos os anos, nos últimos dez anos. Autor de Il coraggio del pettirosso (A coragem do pintarroxo, 1995) Il viaggiatore notturno (O viajante noturno, 2005, Prêmio Strega), Il Romanzo della Nazione (O Romance da Nação, 2015, todos pela Feltrinelli), agora está envolvido em um romance de amor. Não é um homem ateu, mas "sem Deus" e um anarquista. O padre, por outro lado, é Dom Luigi Verdi (1958), um padre toscano que depois de uma crise interior, passou alguns meses na Bolívia entre os camponeses, mais alguns outros no deserto da Argélia, e retornou em 1991 para Pratovecchio (Arezzo), no Casentino, a região imersa na espiritualidade do mosteiro de Camáldoli e do santuário de la Verna. Aqui ele encontrou Romena: uma antiga capela do século XII, semi abandonada, que foi seu novo ponto de partida. Ao redor da igreja fundou uma comunidade para que as pessoas possam entrar em contato consigo mesmo, e até mesmo com Deus, se o quiserem, e depois retomar a vida. Um oásis de repouso por onde passam cerca de 10 mil pessoas todos os anos.
Maggiani e dom Luigi se tornaram amigos, "irmãos", apoio um do outro. Juntos, eles escreveram um livro: Sempre (Chiarelettere), diálogo sobre a vida - e sobre as suas vidas - em que evocam lembranças, viradas, figuras decisivas (Garibaldi, Mazzini, Charles de Foucauld, que inaugurou no Sahara uma existência inspirada no estilo de Jesus, avós, pais, o eremita Giosuè Boesch, o teólogo-poeta David Maria Turoldo). La Lettura encontrou-se com ambos. Dom Luigi em Romena. Maggiani em Faenza (Ravenna): aqui o escritor, nascido em 1951 em Castelnuovo Magra (La Spezia), mora atualmente com sua esposa, depois de uma longa lealdade com a região da Liguria (um exemplo, entre seus textos: Mi sono perso a Genova (Eu me perdi em Gênova, Feltrinelli, dedicado, em 2007, quase como se fosse a uma mulher amada, à que se tornou sua cidade).
De Gênova provém a foto da capa do novo livro. A inscrição “Sempre” impressa em um muro. “Não há físico, nem teólogo, nem matemático, nem amante – escreve Maggiani - que possa colocar a mão no fogo pela palavra "sempre". Não há certeza de nada, mas escrita naquele muro assume uma matéria e força imensas (...). Representa a matéria do impossível, a matéria do absoluto, a matéria do imensurável, a matéria do sagrado". Eis que aqui está então, desde o título, a demanda de infinito que une o homem sem Deus e o homem de Deus. Todos, talvez. Conciliável, para o escritor, até mesmo com a anarquia. "Esta última e Deus são a mesma coisa", diz ele da cozinha onde nos recebe, em uma casa cercada de verde. “Eu venho de uma família pobre de agricultores - ele conta - depois meu pai se tornou um operário, evoluiu. Uma família de anarquistas genéticos, porém com esposas que frequentavam a missa. É difícil ser qualquer outra coisa quando você é educado dessa maneira. Anarquia quer dizer ser senhores do próprio destino, ser iguais não porque somos todos servos, mas porque somos todos senhores. Deus e a anarquia investem você dessa senhorilidade, de uma soberania que quer dizer responsabilidade. No Gênesis, Deus mostra ao homem o universo e o torna responsável por ele".
Ao contrário daqueles que acreditam em Deus, no entanto, os anarquistas não têm um livro. Nenhuma Bíblia "Não há uma ideologia, há muitos pensadores", observa Maggiani. “Um lugar, um livro, uma voz” ao contrário – reconhece - constituem a essência de um lugar como Romena. “As pequenas capelas nasceram na época da fome, após a queda do Império Romano, quando nada mais estava de pé e a população estava em crise. As pessoas procuram um abrigo e constroem uma igreja, as cabanas, abrigos de pedra e argamassa. Depois é escolhido o melhor da comunidade, aquele que sabe ler, mastiga pelo menos um pouco da Bíblia e dos Evangelhos, e é eleito padre. Um lugar, um livro, uma voz. Todos os três são necessários para fazer uma paróquia: um povo que se reconhece em si, em um lugar maior do que cada um, maior que todos". Sagrado.
"O Partido Comunista se parecia com isso", reflete Maggiani. "Recolhia os humilhados, os necessitados também do ponto de vista espiritual". Um lugar: a seção. Um livro: o manifesto de Marx. Uma voz: o líder que explica isso para os companheiros. “Votei algumas vezes - lembra ele - no PCI. Em 1973, eu vivia em Florença porque me apaixonei por uma garota. Fui à Festa da Unidade e lá vi um grupo usando roupas étnicas. Eles eram os Inti-Illimani: que se lamentavam pelo golpe de Pinochet no Chile, Nós também sofremos tentativas de golpe. Mas tentativas, justamente. Por isso eu votava no Pci, eu precisava de uma igreja”.
Partidos-igrejas. Um lugar, um livro, uma voz" dos quais precisaríamos inclusive hoje". O partido das Cinco Estrelas não o convence: "Para eles, somos todos iguais no sentido de que todos somos servos". Nem a esquerda: “Pão, justiça, liberdade são as instância que desde sempre defende. O problema é que fomos governados pela esquerda e não tivemos nada disso". Como um homem que começou a escrever graças ao fascínio por um computador da Apple, portanto insuspeito de tecno-ceticismo, ele denuncia as redes sociais como uma "forma de perigosa ditadura". O que fazer, o que resta, então nesse cenário?". Ao contrário do Partido Comunista e do pensamento liberal, que têm confiança no que o homem é, o Deus dos cristãos, dos judeus e dos muçulmanos confia no que o homem será. E o mesmo vale para a anarquia. É claro, é mais fácil para os crentes pensar que o indivíduo pode se redimir, enquanto do ponto de vista de um anarquista que não tem Deus, trata-se de uma grande utopia. Mas do que viver de outra forma? Eu coloco a disposição o meu pequeno pedaço de existência para que uma nova humanidade possa ser construída. Eu confio no bom senso. Acredito que possamos nos tornar melhores. Mesmo que, às vezes, pareça impossível”.
É uma sombra que dura um momento. Logo reaparecem as ferramentas de defesa. Nos tempos da antiga Romena, havia os bárbaros. "Agora eu, que nasci no campo, decidi voltar para a terra. Eu vim aqui para Faenza porque espero que os Hunos passem aqui mais tarde", diz Maggiani. "Quando os camponeses não são escravizados, quando não são vencidos pela pobreza, eles trazem vida à vida. A cooperação aqui ainda existe. Os estrangeiros não são um problema, mas não porque sejam em menor número do que em outros lugares, são mais do que a média nacional, mas porque estão integrados. Ao coletor de lixo confiaram alguns garotos negros, e agora ele assumiu o papel de irmão mais velho deles. Há a Penny Wirton, a escola de italiano para os imigrantes, na qual muitos estudantes do ensino médio são voluntários. Há um departamento para os devedores. Igrejas da contemporaneidade”. Cidadelas, em uma época de crise. "Material, é claro, mas hoje também somos órfãos de uma ideia", observa o escritor. Quem mantém esses postos avançados em pé é uma minoria de pessoas. Porém uma "grande minoria: os apóstolos eram 12 e a Revolução Francesa foi feita por 7% dos parisienses".
Maggiani ama revoluções. "Vamos analisar a Igreja: com a renúncia de Ratzinger, pensava-se que estava acabada. Em vez disso, se recuperou, porque Bergoglio chegou. Explosivo, revolucionário. Um jesuíta que conhece não apenas o sentido das palavras, mas também das preposições que ele pronuncia”.
"Com Francisco o ar está de volta", diz Dom Luigi, ele também convencido que atravessamos tempos complicados. "Recentemente - ele explica - comecei a ler Nietzsche novamente. Hoje vivemos justamente as consequências do niilismo que ele descreve. Não vejo à minha volta pessoas piores do que há vinte anos atrás, mas cansadas, estressadas, exaustas. O filósofo também fala de solidão, dificuldade em encontrar um lugar aonde se sentir em casa. E finalmente, última consequência: "Seremos envenenados pelo veneno da antiga serpente".
Pois bem, tudo está acontecendo, mas eu tento ver o que há a ser salvo, por onde podemos começar de novo. “Como anarquista - Maggiani afirma, por sua vez - o objetivo seria colocar a bomba sob o assento do rei, mas quem realmente é o rei? Eu não acredito que seja Donald Trump, eu ainda não sei quem poderia ser. Sou também a favor da luta armada, mas as armas certas não são nem as atômicas, nem a TNT e nem as armas de fogo. E também não serão as intelectuais. A obstinação que possa existir o mundo da nova humanidade, ao contrário, é uma arma muito poderosa".
Recuperar pelo menos o "mínimo de humanidade" está entre os objetivos de Dom Luigi. Maggiani recorda aquele dia de 25 de abril, quando o conheceu: "Ele mexia as mãos, embora tenha os dedos um pouco curtos, desde o nascimento. Ele não me revelou um conceito, mas a si mesmo. É por isso que eu o amo, como amo as pessoas de Romena”. “Aprendi a não ter vergonha dos meus dedos”, conta-nos o padre da paróquia, enquanto nos mostra as criações artesanais que ele próprio produz. Metais antigos, sucatas doadas pelos camponeses, que ele transforma em ícones: pássaros em voo, homens e mulheres abraçados, moldados por aquelas mãos "para demonstrar que a fragilidade pode se transformar em força".
Romena organiza cursos, concertos, conferências, incluindo um ciclo de três dias para aqueles que estão passando por uma crise, para se encontrar e voltar à vida. Um encontro, uma vez por mês, há cerca de quinze anos, é dedicado aos pais que perderam um filho. Entramos na sala reservada a eles. Na parede está pintada uma amendoeira, inspirada pelo Ramo em flor de Van Gogh. "As mães e pais muitas vezes me perguntam: "Onde estava Deus?", testemunha o sacerdote. "Eu não tenho as respostas, mas tento viver as perguntas. Eu não gosto de catecismo que dá aulas, agir como professor é inútil". Na paróquia também chegam aqueles que perderam filhos que cometeram suicídio. "Para esses pais, tento dizer: talvez não seja verdade que seus filhos não amavam a vida. Eles a amavam demais e a queriam melhor”.
O desaparecimento daqueles que nos são caros é um verdadeiro confronto, em vida, com o absoluto. O infinito de uma ausência.
A fé pode vacilar, mesmo assim há alguém que a redescobre. "No meu caso - confessa Maggiani - eu não encontrei Deus. Sinto falta dos meus pais, dos meus amigos que morreram. Mas não perdi ninguém. Os maus desaparecem, os justos vivem para sempre". Ele explica isso no livro, que também parece uma pequena capela: "Eu acredito na memória, na lembrança, como necessidade fundamental para toda jornada. Se durante a caminhada você vira a cabeça e não vê nada é possível que se perca, você não sabe onde está indo (...). Então você precisa de sua bússola para não se perder, e sua bússola é quando você se vira e vê de onde você vem.
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Mosteiros e outras barricadas para uma nova humanidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU