01 Março 2018
O autor de Sociedade tela. Black Mirror e tecnodependência, afirma que, embora as tecnologias gerem uma ilusão de hiperconectividade global, as pessoas se sentem cada vez mais trancafiadas em sua solidão. Amor, arte, paixão: autênticos refúgios para a liberdade humana.
Escondido em um bar do microcentro de Buenos Aires, em uma mesa quadrada como as demais, sua voz cativa mentes alheias que se voltam para ver de onde vem tanta eloquência. Renascentista em pleno ano de 2018, este intelectual com alma conurbana e raízes camponesas conecta ideias como quem – de memória, com movimentos repetidos – tece uma peça de lã macia e milimétrica.
Esteban Ierardo é licenciado em Filosofia, professor (UBA, Fundação Centro Psicanalítico Argentino) e escritor. Embora tenha escrito vários livros de ensaios sobre arte, filosofia, literatura e natureza, romances, contos e histórias de ficção científica, seu último material – publicado no final do ano passado –, Sociedad pantalla. Black Mirror y la tecnodependencia (Ediciones Continente) desfruta de um sucesso retumbante.
Nesta entrevista, Ierardo descreve em que consiste o pensamento sistêmico, conta por que admira Leonardo Da Vinci como expoente dessa dinâmica mental e analisa os limites da tecnodependência e do mundo virtual.
A entrevista é de Pablo Esteban, publicada por Página/12, 28-02-2018. A tradução é de André Langer.
Você é um cultor do “pensamento sistêmico”. Como se conectam os diferentes saberes quando o conhecimento está tão segmentado nas instituições?
O pensamento sistêmico é uma iniciativa intelectual que consiste em fazer confluir diversos caminhos de reflexão. Baseia-se na busca de pautas que comunicam aquilo que – aparentemente – está fragmentado; é uma tentativa de pensar o universal existente nos processos culturais. A partir daí, é de grande serventia utilizar a metáfora da rede – que explica fenômenos como a internet – para compreender a dinâmica dos saberes que, ligados a partir de aspectos particulares, formam paradigmas comuns.
Uma reflexão com eco no Renascimento.
Absolutamente. Por isso, o grande arquétipo que me interessa reivindicar é Leonardo Da Vinci, que foi o primeiro pensador sistêmico, mesmo quando ainda não refletíamos a realidade a partir desse conceito. Ele constitui o melhor exemplo de um intelectual que, impulsionado pela força da dúvida, não se resignou à especialização que, na modernidade, começou a se vislumbrar a partir do humanismo. Da Vinci representa o ideal de pensar o universo sem retroceder diante das dificuldades do desafio; seu resgate do conhecimento enciclopédico e sua formação múltipla e complexa inspiram muitíssimo.
Na realidade, os saberes específicos se esquecem do universal e são condenados a reproduzir abstrações descontextualizadas, separadas da realidade. Se não há curiosidade, como condição para a preservação da infância, cai-se no conformismo cego. O problema do mundo acadêmico é que ele impõe um mandato aos especialistas e insta-os a manejar absolutamente tudo de uma disciplina, quando está claro que a única coisa que o saber produz é o não-saber.
Como desenvolver um pensamento sistêmico e ser renascentista em 2018?
Através de estímulos filosóficos. Com Nietzsche, por exemplo, é possível perceber a presença de um pensamento ligado à desconstrução e à suspeita. Ele nos convida a questionar a verdade oficial de seu tempo e recupera os aspectos desconhecidos do real interpretado de múltiplas formas. Sartre, por outro lado, nos ensina que nascemos sem um sentido predeterminado e, de fato, gera-se um vazio na origem da nossa existência que deve ser preenchido com conteúdos construídos.
Finalmente, com o conceito de “cuidado de si”, Foucault (a partir de seus estudos sobre a história da sexualidade) recupera os gregos antigos, prossegue com a ideia sartreana e propõe-nos construir o nosso próprio eu, ao mesmo tempo que nos oferece uma a ética como prática de liberdade. A partir das reflexões desses autores, creio que é possível abordar uma realidade mais ampla que aquela proposta pelos saberes segmentados e penso que o ser humano conta com possibilidades essenciais de autoconstrução pessoal.
Ou seja, pode forjar um pensamento crítico?
Claro, um pensamento que visa quebrar sentidos comuns gerados nas próprias trajetórias educativas: os psicólogos pensam que o mundo é explicado a partir de realidades psicológicas; os sociólogos acreditam que a realidade é dada por uma série de processos sociais convertidos em estatísticas; e os físicos sentem que podem compreender tudo a partir de estruturas matemáticas. A questão é que, na realidade, tudo se manifesta simultaneamente.
Como esta reflexão é apresentada no seu último livro?
A sociedade tela apresenta uma ambiguidade. Por um lado, sugere que temos cada vez mais acesso para interagir de maneira universal; de fato, é evidente que cada pessoa pode se comunicar com outra pessoa que se encontra em uma região remota do mundo. No entanto, sob a aparência de sentir que nos abrimos para o mundo inteiro, nos encontramos mais sozinhos e trancafiados em nós mesmos. Quando acreditamos que estamos agindo no mundo, fazemos isso em uma certa ordem tecnocultural, que é reproduzida simultaneamente por um sistema capitalista que se alimenta desse engano. Viver hiperconectado é viver cada vez mais preso em gaiolas eletrônicas; sem ter consciência do nosso cativeiro, confiamos o nosso tempo aos interesses das empresas publicitárias. O Facebook funciona desse jeito.
Então, como combater a tecnodependência?
A partir da reavaliação da autonomia individual. Com uma tomada de consciência para compreender como somos condicionados por uma sociedade atravessada pela tecnologia. Eu ainda acredito que a faísca da dúvida, da suspeita e da desconfiança tem um efeito desestabilizador que pode nos libertar de uma conectividade absoluta. Pelo menos até que não se produza algo como aquilo que aparece na série Black Mirror com implantes cerebrais e estímulos elétricos que visam controlar nossos comportamentos no futuro. A liberdade é essa capacidade de se atentar para as falsas propostas de realidade vinculadas à realização pessoal a partir da tecnologia.
Você escreve em um artigo que “o que a linguagem informática nunca poderá traduzir são as emoções diante de uma obra de arte, de um drama, do amor, da paixão”. Por que eles configuram “refúgios” para a humanidade?
Nossa época apresenta singularidades. A relação entre tecnologia, cultura e globalização oferece a oportunidade de preservar o passado como nunca antes (não apenas a partir da escrita, mas através de imagens e possíveis hologramas). No entanto, há uma ameaça latente que está ligada ao perigo de destruir a memória existencial, isto é, com recordar que não sabemos. Não conhecemos a origem última da vida, nem do universo, nem conseguimos compreender o fenômeno misterioso da violência.
Em que sentido não compreendemos a violência?
Uma coisa é explicar as formas como as violências são geradas e reproduzidas (como o terror, o autoritarismo, a tirania) e outra é interpretar a origem e a natureza da sua existência. Por que o homem, apesar dos avanços tecnológicos, ainda é um fracasso nas suas capacidades para libertar-se da reprodução da violência? Os limites da cultura digital estão vinculados a um exercício de preservação dessa memória existencial.
Dito com outras palavras: não podemos digitalizar os mitos de origem, como o mal e a violência, assim como as qualidades estéticas, o prazer diante da beleza, a paixão espiritual e profunda de se sentir apaixonado e a insaciável curiosidade do conhecimento. Os computadores não serão capazes de imitar essas qualidades específicas do ser humano, as características da mente, nem reproduzir a riqueza da experiência.
Já que você fala de memórias, qual é a concepção de tempo que se tem na sociedade tela? Como libertar-se desse aprisionamento em um presente eterno e fugaz?
O tempo em que vivemos expressa a primazia absoluta do imediatismo; uma metafísica imposta pelo jornalismo, uma vez que a importância da notícia e do último momento não constitui apenas uma anedota. Portanto, é necessário celebrar que a informação circule com maior rapidez e simultaneidade, mas não devemos confundir o imediatismo com uma característica natural do tempo.
Por último, em um livro recente você afirma que além das modificações contemporâneas há “dilemas e riscos ancestrais”. A história da humanidade no Ocidente parece ser recursiva. Por quê?
É possível pensar nossas realidades a partir do conceito de “imobilidade histórica”, uma vez que cada desenvolvimento traz na medula um componente da imutabilidade. Refiro-me aos dilemas associados aos conflitos constitutivos do ser humano que, longe de desaparecer, permanecem estáticos. Como já comentei, a humanidade não encontra uma alternativa para a violência como forma de resolução dos conflitos.
Do mesmo modo, as pessoas exibem uma necessidade – quase desesperada – diante da insegurança, porque ao longo da história optaram por renunciar à sua liberdade para comungar com doutrinas religiosas ou políticas totalitárias que proporcionassem a sensação de refúgio e proteção. Consequentemente, permanecemos predispostos a aceitar verdades totais, em troca do consumo de certezas que, em hipótese alguma, estremeçam o universo de significados em que nos movemos.
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Como libertar-se da gaiola eletrônica. Entrevista com Esteban Ierardo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU