03 Fevereiro 2018
“O que aconteceu em Osorno com importantes grupos de leigas e leigos que protestaram contra a presença, à frente dessa diocese, de um bispo que lhes foi imposto e que consideram, não sem fundamento, com antecedentes que o inabilitam para ocupar esse cargo, obriga a uma reflexão mais atenta sobre os critérios e os mecanismos utilizados para a escolha e a nomeação dos bispos na Igreja”, escreve Antonio Bentué, teólogo, professor da Pontifícia Universidade Católica do Chile, em artigo publicado por Reflexión y Liberación, 02-02-2018. A tradução é de André Langer.
A situação de mal-estar e decepção provocada pela nomeação de dom Juan Barros em Osorno e sua confirmação explícita pelo Papa Francisco, apesar de todas as queixas contra ele, constitui a ponta do iceberg de um problema muito mais profundo tanto na Igreja do Chile como em toda a Igreja universal. O que aconteceu em Osorno com importantes grupos de leigas e leigos que protestaram contra a presença, à frente dessa diocese, de um bispo que lhes foi imposto e que consideram, não sem fundamento, com antecedentes que o inabilitam para ocupar esse cargo, obriga a uma reflexão mais atenta sobre os critérios e os mecanismos utilizados para a escolha e a nomeação dos bispos na Igreja.
Atualmente, as normas que regem este processo de escolha e nomeação são estabelecidas pelo “novo” Direito Canônico, promulgado em 1983, particularmente em seu cân. 377, § 3, que, na essência, prescreve: “todas as vezes que se houver de nomear um bispo diocesano ou um bispo coadjutor, compete ao núncio pontifício, para propor à Sé Apostólica uma terna, pedir separadamente e comunicar à Sé Apostólica, juntamente com o seu parecer, as sugestões do arcebispo e dos bispos da província, a que pertence a diocese a prover ou a que esta está agregada, e as do presidente da Conferência Episcopal; além disso, o núncio pontifício ouça também alguns membros do colégio dos consultores e do cabido catedralício e, se o julgar conveniente, solicite em separado e secretamente o parecer de outros membros de ambos os cleros e bem assim de alguns leigos notáveis pela sua sabedoria...”.
No caso da nomeação do bispo Barros, não sabemos se essas diversas consultas foram atendidas ou, pelo menos, “consultadas”, pelo Sr. Núncio na época. Em todo caso, sabe-se que o então cardeal e presidente da Conferência Episcopal, não concordou com essa nomeação para Osorno, bem como alguns outros bispos. Mas, deixando de lado o caso do bispo Barros, é um contrassenso que – embora desde o Concílio de Trento, ratificado posteriormente pelo Concílio Vaticano II (Christus Dominus, n. 20), para evitar a ingerência do Estado na nomeação dos bispos, os poderes civis são convidados a se absterem de interferir nas nomeações episcopais – se tenha agora, ao contrário, como principal mediador para dirigir esse processo de eleição e nomeação precisamente o representante “político” do “Estado do Vaticano”, que é o caso do núncio, em vez dos genuínos representantes do Povo de Deus que se encontram em uma diocese particular.
Mas este contrassenso é ainda maior devido à sua radical incoerência com relação a três aspectos fundamentais da própria fé católica, cuja autenticidade deverá ser garantida pelo bispo eleito:
Aqui reside o principal mal-estar em relação a vários aspectos praticados na Igreja institucional católica que não correspondem ao Espírito que habitou em Jesus de Nazaré “ungindo-o como Cristo”. Essa espiritualidade de Jesus, como mostrado nos Evangelhos, permite somente a ele dizer: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14, 9), centrando o “cristianismo”, não para colocar muita religião nos próprios interesses mundanos do prazer, do poder e da riqueza, mas na mudança real do critério do mundo pelo do Reino de Deus. “Meu Reino não é deste mundo...” (Jo 18, 36); é por isso que “Não amem o mundo e nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo (os apetites baixos, os olhos insaciáveis, a arrogância do dinheiro) são coisas que não vem do Pai, mas do mundo. E o mundo passa com seus desejos insaciáveis...” (1Jo 2, 15-17).
O Papa Francisco também se refere a esse “mundanismo” ao dizer “Não ao mundanismo espiritual” (Evangelii Gaudium, 93-97). “Mas entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se o servo de todos. Porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e para dar a sua vida...” (Mc 10, 43-45). “Nunca se deixem chamar de mestre, pois um só é o Mestre de vocês” (Mt 23, 8-11). “Você é Pedro e sobre essa pedra construirei a minha Igreja, contra a qual (autés, no feminino) as portas do inferno não prevalecerão...; e, cuidado, Pedro! “Satanás, afaste-se de mim, você é um obstáculo, já que os seus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens” (Mt 16, 18 e 23).
Por causa dessa crítica à ambiguidade mundana, Jesus foi condenado à morte em uma cruz pelos representantes do “mundanismo espiritual”. Mas Deus lhe deu razão ressuscitando-o... de maneira que todo aquele que viver a vida com a autenticidade dos critérios com que Jesus os enfrentou, está com a razão, embora o persigam e o matem por isso (“Felizes quando vos perseguirem por causa de mim...” (Lc 6, 22).
Durante boa parte dos primeiros séculos do cristianismo, a tradição das igrejas, recolhida já desde o início do século III na Tradição Apostólica de Hipólito, expressava-se dessa maneira: “Deve ser ordenado bispo aquele que tenha sido eleito incontestavelmente por todo o povo... Com o consentimento de todos, os bispos imporão as mãos sobre ele enquanto o povo permanece em pé. A seguir, um dos bispos, por consenso geral, imporá as mãos sobre o que está sendo ordenado e rezará, dizendo...”.
E quando alguém queria impor-se ou impor a outro como bispo, contra a vontade do povo e do seu clero, os fiéis recorriam ao Papa para que ele defendesse a diocese maltratada. Há três casos especialmente ilustrativos a este respeito:
– O Papa São Celestino I (422-432) interveio na diocese de Viena para que se respeitasse a vontade do povo sem impor-lhe um bispo que lhe fosse estranho: “Ninguém seja nomeado bispo de quem não o deseja. Busque-se o desejo e o consentimento do clero, do povo e dos homens públicos. E só se eleja alguém de outra igreja, quando na cidade para a qual se busca o bispo não se encontrar ninguém digno de ser consagrado, o que não cremos que ocorra”.
– Também o Papa Hilário (465) exige que o bispo Irineu, que vem de outra diocese, deixe a sede de Barcelona: “Irineu deve deixar Barcelona e retornar à sua própria igreja. E que, uma vez que as vontades se acalmaram pelo aborrecimento sacerdotal, um bispo saído do clero local seja ordenado para Barcelona”.
– A mesma linha de legislação é encontrada em várias cartas do Papa São Leão: “Aquele que está encarregado de todos deve ser escolhido por todos...” (carta 10).
“... É absolutamente ilícito que o metropolita ordene bispos a seu gosto, sem o consentimento do clero e do povo. Em vez disso, deve-se colocar à frente da Igreja de Deus, aquele que foi escolhido pelo consentimento de todos os cidadãos (dessa igreja)” (carta 13).
“Ninguém seja nomeado bispo de quem não o deseja ou o rejeita, para que os cidadãos não acabem desprezando, ou mesmo odiando, um bispo não desejado e se tornem menos religiosos do que convém, porque não puderam ter aquele que queriam (como bispo)” (carta 14).
– Para terminar esses testemunhos sobre um critério fundamental na escolha do bispo, remeto à carta que o Papa João VIII enviou ao arcebispo de Verdun no ano de 877, em tom de queixa por não ter cumprido o que os santos Papas precedentes (como Celestino e Leão) haviam ordenado de acordo com a Tradição eclesial: “Se você tivesse mantido as normas canônicas, essa controvérsia não teria surgido... Porque se nosso antecessor Celestino afirma que ‘ninguém seja nomeado bispo de quem não o deseja’, é claro que deveria ter requerido qual era o desejo e o consentimento do clero, do povo e das autoridades. Posto que, de acordo com a autoridade do próprio Celestino, os clérigos têm a faculdade de resistir se são prejudicados, de modo que não temam em rechaçar a quem lhes é imposto de fora. E se não podem ter o prêmio do melhor, que tenham pelo menos a liberdade de decidir quem os governará. Pois São Leão diz: não há razão para que os que não foram desejados pelo povo nem eleitos pelo clero sejam considerados bispos”.
Quase 100 anos depois do fim do Concílio Vaticano I (1870) – que, devido a circunstâncias políticas e eclesiásticas particulares, teve que terminar precipitadamente, permanecendo com uma eclesiologia quase ausente, centrada exclusivamente no papa e em seus atributos, especialmente a da “infalibilidade quando fala ex cathedra” (Pastor Aeternus) –, o Concílio Vaticano II queria colocar toda a força de seu ensino doutrinal na Igreja (Constituição Lumen Gentium), compreendida em sua integridade fundamental.
A Lumen Gentium começa por assinalar o caráter sacramental da Igreja. E posto que Sacramento significa o caráter de uma realidade visível que remete a outra Realidade invisível (a Graça), a Lumen Gentium especifica: “porque a Igreja é em Cristo como que (veluti) o sacramento...” (LG 1). Ou seja, a Igreja é um sacramento na medida em que a sua visibilidade (e a dos seus sacramentos) corresponde à visibilidade do Jesus do Evangelho. É por isso que não é um “sacramento” autônomo, mas “como” um sacramento. O sacramento próprio é Jesus. Só ele pode dizer “quem me viu (o homem visível), viu o Pai (invisível)” (Jo 14, 9).
A Igreja não pode dizer isso como se fosse uma instituição “mágica” (= automática) e não propriamente sacramental. A Igreja é, pois, “sacramento” segundo; o sacramento primeiro é apenas o Jesus do Evangelho, cuja humanidade está penetrada pelo Espírito de Deus (o Cristo). Como o expressa a famosa frase de Santo Irineu: “aí onde está o Espírito de Deus, aí está a Igreja e toda a Graça”. É o que João quer mostrar ao descrever a morte de Jesus com a expressão: “Entregou o Espírito”, o mesmo Espírito que animou toda a sua vida (Jo 19, 30) e que também animará os sacramentos da Igreja, simbolizados pela água (batismo) e pelo sangue (Eucaristia) que jorram do lado aberto (Jo 19, 34). Por esta razão, a espiritualidade de Jesus, tal como aparece nos Evangelhos, constitui o critério para a “conversão” da espiritualidade da Igreja.
Essa fidelidade ao Espírito de Deus revelado na visibilidade de Jesus também explica que a mesma Constituição LG defina a primeira estrutura da Igreja como Povo de Deus (LG cap. II). A Igreja de Jesus Cristo é, acima de tudo, uma comunidade de irmãos e irmãs iguais, majoritariamente leigas e leigos (LG cap. IV), todos assumidos pela mesma Graça da filiação divina, expressa sacramentalmente pelo batismo comum que constitui a todos como partícipes do tríplice ministério de Jesus Cristo: sacerdotes, profetas e reis.
O Sacramento da Ordem, pelo contrário, é um sacramento de serviço a esse povo e não de poder sobre ele. E o sacerdócio ordenado está, portanto, a serviço do sacerdócio batismal e não acima dele (LG cap. III, e assim o recolhe o Catecismo quando situa, finalmente, o Sacramento da Ordem, junto com o Matrimônio, como sacramentos de serviço).
Esta eclesiologia magisterial da Constituição Lumen Gentium tem, ou deveria ter, também uma aplicação concreta nos critérios eclesiais para a escolha de um bispo. É a eclesiologia que deriva de Jesus e que explica a insistência da Tradição de séculos anteriores para levar seriamente em consideração a voz (profetismo) do Povo de Deus para que sempre exista seu consentimento na escolha do bispo, sem que nunca lhe seja imposto.
Outra contribuição fundamental do Concílio é a categoria teológica dos Sinais dos Tempos, que é o mais proeminente da Constituição Gaudium et Spes. A Igreja deixa para trás sua antiga concepção que a levava a pretender ter a verdade absoluta frente a um mundo que não tinha nada para contribuir e, nesse caso, com o qual não precisava dialogar. E a Gaudium et Spes considera que “não pode demonstrar com maior eloquência sua solidariedade, respeito e amor para com toda a família humana... senão estabelecendo com ela um diálogo sobre aqueles vários problemas, iluminando-os à luz tirada do Evangelho” (GS 3).
Para isso, a Igreja, a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, para que cada geração possa responder às interrogações eternas da humanidade...” (GS 4, cf. 11 e 44). E, sem dúvida, um dos principais Sinais dos Tempos modernos é a consciência “democrática”. Consciência que coincide com o ensinamento conciliar da Igreja, em primeiro lugar, como Povo de Deus constituído por irmãs e irmãs em igualdade de direitos e deveres.
Ou, melhor, seria preciso dizer “conversão da pastoral” na Igreja. O que equivale a demandar a “conversão” daqueles que são os principais responsáveis por essa “pastoral”, no caso os Pastores. A expressão é assumida pela primeira vez na Igreja pós-conciliar no Sínodo de Santo Domingo (1992), quando os bispos latino-americanos querem reconectar a Pastoral de suas Igrejas com o Evangelho, apelando a uma “Nova Evangelização”.
E declaram: “A nova Evangelização exige a conversão pastoral da Igreja... Assim, a nova evangelização continuará na linha da Encarnação do Verbo... Tal conversão deve ser coerente com o Concílio. Ela diz respeito a tudo e a todos: na consciência, práxis pessoal e comunitária, nas relações de igualdade e de autoridade; com estruturas e dinamismos que tornem a Igreja presente com cada vez mais clareza, enquanto sinal eficaz, sacramento de salvação universal” (n. 30).
Neste texto notável expressam-se com clareza os dois elementos fundamentais da “conversão” exigida da ação pastoral da Igreja, comandada por seus Pastores: a linha da Encarnação, que é o “auto-esvaziamento” do Verbo de Deus (kenosis), Fl 2, 5-7), e a coerência com uma eclesiologia em que o Povo de Deus esteja realmente em primeiro lugar, a cujo serviço os Pastores devem estar. É o chamado debruçar-se dos bispos sobre si mesmos para “converter” sua ação pastoral de uma eclesiologia do poder clerical à de um serviço fraterno de uma Igreja principalmente laical.
E esse apelo à “conversão pastoral” será retomado pelo Papa Francisco, aplicando-o ao exercício do próprio Papado: “Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também numa conversão do papado. Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao significado que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades atuais da evangelização. (...) Pouco temos avançado neste sentido. Também o papado e as estruturas centrais da Igreja universal precisam ouvir este apelo a uma conversão pastoral” (Evangelii Gaudium, 32).
E os critérios para a escolha dos Pastores são a instância em que se requer hoje com maior urgência essa conversão pastoral.
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“Nenhum bispo imposto” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU