20 Janeiro 2018
A solução oferecida pelo Facebook é tentar forçar ainda mais o mundo da fantasia.
O artigo é de Pedro Doria, publicado por O Estado de S. Paulo, 19-01-2018.
Certamente não foi sem pensar muito que o comando do Facebook decidiu impor aos usuários sua mais recente mudança de algoritmo. Esta virada não é como as anteriores. A empresa de Mark Zuckerberg nunca teve muitos pudores em impor mudanças que prejudicasse parceiros. Grandes empresas, imprensa, ou qualquer um que tenha tentado montar um negócio baseado na plataforma já se viu mais de uma vez surpreendido por uma novidade brusca que desmanchava planos e compromissos. Antes, porém, todas sempre beneficiaram o próprio Facebook. Agora é diferente.
A maior rede social do mundo tem dois problemas, ambos relacionados: um é que o Face se tornou um lugar de mau humor e irritação. O outro, que por causa da onda de notícias falsas e propaganda eleitoral de origem duvidosa, existe ameaça de regulamentação governamental.
A solução proposta todos já começamos a sentir. Há mais posts de amigos e menos links para notícias ou conteúdo das marcas. É bom voltar a rever nomes que não apareciam faz tempo na timeline. Só que aquele Facebook viciante, no qual mesmo entrando de dez em dez minutos havia uma coisa nova, está indo embora. O ritmo de renovação é mais lento e o número de visitas vai baixar em decorrência. Ou seja: os lucros vão diminuir. Em compensação, esta é a torcida, o clima vai mudar. Mais fotos de filhos e de praia, um quê daquele clima Instagram de a vida boa. Bom humor e políticos prestando menos a atenção.
É o que acontece quando se reconhece as consequências do problema, mas o diagnostica errado. Há um sacrifício da empresa Facebook na solução que apresenta. Assim como há uma falta de compreensão a respeito de si mesma. Até podemos chamar, seguindo o vernáculo do Vale, o Facebook de plataforma.
Mas a rede é outra coisa. É um jeito novo de fazer algo antigo. O Facebook é mídia.
Eles não gostam de ouvir isso. Em parte, é porque não querem atrair o escrutínio que acompanha servir de palco para o debate público. Em parte, é porque não conseguem enxergar seu papel. E este é um ponto chave. Sem conseguir compreender de todo seu papel, não percebem que o problema é muito mais fundo. O problema está na essência do algoritmo.
Quando os engenheiros desenharam a maneira que o Facebook funcionaria, seu objetivo era construir um ambiente no qual pessoas gastassem muito tempo. O que o algoritmo faz, matematicamente, é tentar identificar o que as pessoas querem ver e entregar mais daquilo. Ao mesmo tempo, em descobrindo o tipo de conteúdo que incomoda, mostrar menos.
Fazer parte de uma sociedade — seja como indivíduo, seja como grupo organizado em torno de interesses comuns, seja como empresa — exige certas responsabilidades. Quando seu negócio faz parte da praça pública onde os debates a respeito da sociedade ocorrem, esta responsabilidade é dobrada. Isso é verdade para todos os veículos. E o Facebook faz parte deste ecossistema.
Somos diferentes. Diferentes na cor da pele, no gênero, nos amores, humores, nas sensibilidades e mesmo ideias. Democracia é uma filosofia para lidar com as diferenças que o mundo traz. O que parecia aos engenheiros do Facebook um algoritmo inteligente, em verdade criou um mundo artificial no qual gente demais parecia pensar igual. E com o vulto que tomou, a rede se tornou um experimento social sem precedentes: uma praça pública na qual o outro lado não era percebido.
Criou intolerância para diferenças.
A solução oferecida é tentar forçar ainda mais o mundo da fantasia onde todos são iguais — só sorrisos, biquínis e crianças. O Face perdeu a chance de, qual gente grande, assumir seu lugar na praça pública do mundo real.
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O Face fugiu da raia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU