12 Dezembro 2017
O dilema constantino – ou seja, até que ponto pode ir o apoio dos cristãos a um político que promete defender suas questões "inegociáveis", mesmo que represente descaradamente a antítese do que deve ser um cristão – não é um problema apenas dos católicos.
O artigo é de Massimo Faggioli, historiador italiano, professor de teologia e estudos religiosos da Villanova University, seu mais recente livro intitula-se “Catholicism and Citizenship. Political Cultures of the Church in the Twenty-First Century” (Liturgical Press, 2017), publicado por La Croix International, 11-12-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
As diferentes visões de mundo do Papa Francisco e do Presidente dos EUA, Donald Trump, entram em confronto novamente – desta vez, a respeito de Jerusalém.
Nos últimos dias – 6 de dezembro e 10 de dezembro - a Santa Sé fez um apelo "para que a sabedoria e a prudência prevaleçam a respeito de Jerusalém", distanciando-se, assim, da decisão do governo Trump de reconhecer a Cidade Santa como capital de Israel.
Ninguém sabe para onde levará este estado permanente de tensão entre o Vaticano e a Casa Branca em questões internacionais e diplomáticas. Mas deve ser considerada no contexto da história geral da primazia papal, bem como da forma com que Francisco está exercitando essa primazia hoje.
Do ponto de vista histórico, a atual contraposição entre o Bispo de Roma e o líder da nação mais poderosa do mundo certamente tem precedentes. Mas faz parte de um padrão de pelo menos duas maneiras.
Em primeiro lugar, desde meados do século XIX, o Ocidente está cada vez mais secularizado, enquanto o Catolicismo tem se tornado cada vez mais "romanizado" através de uma maior ênfase e visibilidade ao papado.
Apesar da crise intelectual da "tese da secularização" no sentido do declínio terminal da religião no mundo industrializado, a marginalização do cristianismo dominante não está diminuindo no mundo ocidental. E, ainda, o papado tornou-se cada vez mais visível, tanto para católicos como para não católicos.
Em segundo lugar, os poderes papal e imperial vêm se enfrentando há mais de 15 séculos, desde os tempos do Império Romano. Mas a autoridade papal mundial também foi sistematicamente subestimada nos tempos modernos. Isso não começou com o Comunismo Soviético no final do século XX, mas já era evidente muito antes, no início da política ocidental moderna, logo após a Revolução Francesa.
No final de seu livro magistral, Papal Primacy (Primazia Papal, em tradução livre), cuja tradução para o inglês foi publicada em 1996, o historiador jesuíta Klaus Schatz apontou como os esforços de Napoleão para subjugar a Igreja francesa e humilhar o Papado Romano durante o reinado de Pio VII funcionavam, a longo prazo, apenas em benefício de Roma.
"Quando a Igreja ponderou sobre como manter a sua liberdade do estado, ficou claro que o único poder independente de Igreja era com o papado e Roma; tinha-se acabado o poder episcopal tradicional", defende Schatz.
O Papado Romano tem tanto recursos materiais (o Vaticano, o serviço diplomático, uma rede internacional de instituições católicas e assim por diante) como imateriais (a liturgia da Igreja e sua adaptabilidade às novas liturgias da comunicação de massa moderna).
A novidade desde a época de Napoleão é que ficou mais difícil para as elites intelectuais e políticas do Ocidente compreender este mundo complexo.
Para alguns mais do que outros, o analfabetismo moral, histórico e religioso do Trumpismo torna um tanto impossível que a Igreja Católica se encaixe na visão de mundo de um bilionário que agora é político e passou a simbolizar a era da pós-verdade.
Os recursos materiais e imateriais do papado, que a mídia moderna amplificou mais do que nunca, perduram na nossa consciência global e reforçam a voz do papado sobre as grandes questões morais e humanitárias, como testemunhamos durante a viagem de Francisco a Mianmar e Bangladesh. Provavelmente, em algum momento no futuro, a secularização do ocidente tornará essa voz menos significativa e mais difícil de ouvir. Mas isso ainda não aconteceu.
Isso afeta a forma como o papado é visto por católicos e não católicos, líderes políticos e cidadãos do nosso mundo. Por exemplo, há a questão atual de Jerusalém. Os católicos devem agradecer que, entre as muitas propostas que flutuaram durante o período pós-Vaticano II, a ideia de transferir a Santa Sé para Jerusalém nunca foi seriamente considerada.
Foi um sonho generoso, mas politicamente perigoso, de tornar o catolicismo mais fiel ao Evangelho e menos dependente da história do Império Romano e da cristandade medieval.
Mas, apesar dos pesares, Roma é uma porta global muito melhor para a Igreja. Um dos motivos para isto é que um papado com sede no Vaticano pode dizer o que os bispos e líderes de igrejas locais às vezes não podem ou não dizem. Imagine o quão difícil seriam as relações entre os Estados Unidos e alguém como o Papa Francisco se a sede da Igreja Católica global fosse, digamos, em Nova York. Provavelmente uma igreja deste tipo não teria elegido um jesuíta latino-americano para o papado.
Neste momento, em particular, há coisas que os políticos e bispos católicos estadunidenses não podem e não vão dizer. Portanto, ainda bem que existe o Vaticano. Roma pode ser o centro de um mundo simbólico antigo, mas ao mesmo tempo permanece suficientemente periférica, neutra e ligada ao passado (comparando com Nova York ou Pequim) para dar espaço de manobra ao papado no mundo global.
Esta natureza de ser central e periférica é um fator importante na compreensão do atual pontificado e, mais do que isso, da relação entre Francisco e Trump. Não se pode deixar de destacar semelhanças e diferenças entre a situação atual e a era dos regimes fascistas, de 1920 a 1940.
A consciência da Igreja global, visivelmente e fisicamente encarnada pelo papado e pelo Vaticano, aprendeu com essa história de alianças ideológicas profanas entre o catolicismo e as ditaduras. Mas é uma história que algumas igrejas locais aparentemente não aprenderam, pelo menos não na mesma medida.
Enquanto o Vaticano tornou-se o epítome da burocracia eclesiástica, da má gestão e da corrupção, manteve também certo sentido de história global e uma compreensão do papel da Igreja Católica na história que a manteve menos ocupada com questões locais do que as igrejas locais e os líderes políticos.
Isto permitiu que o atual pontificado tivesse um papel importante no atual momento histórico-teológico, em que estamos lidando, mais uma vez, com a tentação do Constantinismo – a aliança dos poderes político e religioso.
A crise moral dentro do protestantismo evangélico branco que vemos hoje, nos Estados Unidos de Trump, representa um cisma em uma reviravolta do neoconstantinismo em que Donald Trump é o novo Constantino. Há mais do que mera censura moral para os líderes evangélicos que forjaram uma aliança puramente política com um presidente que parece ser uma caricatura da esquerda ateia para deixar o cristianismo desacreditado.
O dilema constantino – ou seja, até que ponto pode ir o apoio dos cristãos a um político que promete defender suas questões "inegociáveis", ainda que represente descaradamente a antítese do que deve ser um cristão – não é um problema apenas dos católicos. Na verdade, é um problema maior para os não católicos, e isto também se deve ao papa atual.
O grande paradoxo é que Francisco, o sucessor de papas que ajudaram a Igreja a se beneficiar do Constantinismo, é agora o adversário global mais notório de Trump e o encantamento que alguns cristãos têm por ele nesta época pós-Constantiniana. Muitas vezes, e em diferentes momentos, inclusive na entrevista à La Croix, o Papa Francisco repetidamente se opôs à ideia de retornar ao estado confessional.
Este é um dos vários sinais de que o papado, em termos de reputação e credibilidade, está se saindo muito melhor do que outras instituições globais. Isso também deve servir como uma mensagem para os adversários internos do Papa. As tentativas de alguns católicos de tirar crédito do Papa Francisco estão sendo frustradas. Na verdade, estão fortalecendo seu pontificado.
Isso, é claro, tem um preço - politicamente, ao manter distância dos poderosos do mundo atual, e também eclesiologicamente, ao manter em equilíbrio os diferentes membros da Igreja. Historicamente, o reforço do papado tem tido o preço não apenas do império, mas também do restante da Igreja.
Na conclusão do livro mencionado acima, Schatz observou que uma dimensão fundamental do papado é o exercício da primazia em uma Igreja de consenso e recepção, e em uma Igreja cuja realidade compõe-se de camadas. Portanto, o verdadeiro desafio para o futuro do papado não é tanto político, mas eclesiológico.
Nota:
Massimo Faggioli estará no Instituto Humanitas Unisinos - IHU participando do XVIII Simpósio Internacional IHU – A virada profética de Francisco. Possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo, de 21 a 24 de maio de 2018. Mais informações aqui.
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O Papado Romano como antídoto para as tentações do neoconstantinismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU