06 Dezembro 2017
"Uma guerra de um milhão de mortos": a manchete de jornal mostra o que nos espera se entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos for deflagrado o conflito nuclear. Claro que a estimativa refere-se apenas ao primeiro dia. O segundo e os subsequentes dias da guerra não são sequer mencionados. Porque não há certeza de que existirão.
O comentário é de Domenico Rosati, publicado por Settimana News, 04-12-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há meses que se prolonga a escalada, verbal e de força, entre os dois adversários: insultos e injúrias alternam-se com demonstrações em campo. De um lado, lançamentos de mísseis com alcance cada vez maior, do outro, sanções e manobras militares nas proximidades.
Todos os ingredientes militares e psicológicos estão postos de forma a considerar o desastre como uma eventualidade altamente provável e até mesmo desejável para liquidar um incômodo.
Possível? De novo? Mas é precisamente em situações como essas que a memória começa a remexer na poeira dos arquivos para desencavar algum episódio, uma situação, um fato do qual extrair um vislumbre de esperança.
Embora ainda não tenha sido escrita uma história das guerras evitadas, a analogia mais evidente é proposta pelo que aconteceu (e não aconteceu) em águas cubanas, no outono de 1962. Os soviéticos tinham instalado suas plataformas de lançamento no território da ilha que Castro havia filiado ao comunismo e estavam se preparando para armá-las com suas ogivas nucleares que viajavam em uma frota no Caribe.
Entre o presidente dos EUA Kennedy e o líder soviético Kruschev, a tensão, animada pelos mútuos ultimatos, chegou às estrelas.
A história da desativação da ameaça teve tantas versões que continua a ser difícil identificar a real. Diplomacia e orações encontraram uma maneira de se unir e o mundo conseguiu regozijar-se pelo perigo evitado.
Alguns meses mais tarde, na Páscoa de 1963, o Papa João XXIII, que tinha tido um papel nada secundário no caso, promulgou a encíclica Pacem in terris, em que definia a guerra nuclear como algo alienum a ratione: não "irracional" ou "irrazoável" – como colocaram alguns tradutores – mas, mais precisamente, "coisa de louco". Somente seres humanos desprovidos de bom senso teriam podido desencadear um conflito que ninguém poderia vencer.
O episódio cubano deve ser lembrado porque recorremos a ele repetidamente ao longo das décadas seguintes todas as vezes que, durante a Guerra Fria, as forças do Leste e as do Ocidente ameaçavam chegar às vias de fato.
A história atual costuma geralmente explicar os benefícios da dissuasão nuclear no sentido de que as duas grandes potências detentoras da bomba atômica teriam tanto medo de sucumbir que decidiram empunhar a arma letal apenas como um instrumento de propaganda.
Pessoalmente, tenho algumas dúvidas a respeito. Eu não acho que foi apenas propaganda a decisão das duas grandes potências enfrentarem-se na Europa com ogivas nucleares instaladas nos chamados mísseis de médio alcance, ou "euromísseis". Foi uma maneira de reduzir a ameaça sobre cidades dos Estados Unidos e (em parte) também sobre as da URSS, mas arrasando a cemitérios aquelas do velho continente.
Desativar a ameaça não foi fácil. Em toda a Europa Ocidental ganharam vida movimentos de oposição à instalação dos mísseis estadunidenses.
Na Itália, o epicentro das manifestações foi em Comiso, na Sicília, onde seriam implantadas rampas de lançamento. Eu ainda tenho uma memória vívida das passeatas e comícios diante do aeroporto Magliocco. E principalmente me recordo de uma conversa com o líder comunista Pio La Torre (mais tarde morto pela máfia) acontecida durante uma das muitas manifestações naquela localidade.
Discutíamos sobre isso: que efeito poderiam ter, sobre as decisões políticas, manifestações como as que estávamos animando? Afinal, no Ocidente, a nossa crítica era dirigida apenas aos nossos governos que acataram as exigências dos estadunidenses; e isso jogava sobre a gente a acusação de unilateralismo. Nós nos recriminávamos de deixar em paz a União Soviética. Como sair disso?
Assim surgiu a ideia de uma iniciativa popular que encontrasse uma forma de encaminhar pedido idêntico (desmontar e não instalar) para ambas as partes. As quais só tinham um ponto de contato físico: Genebra, onde estavam se realizando as negociações sobre os euromísseis.
Lancei a ideia no comício final em Comiso; depois foram necessários tempo e sabedoria para construir a reunião e para prepará-la. Coisa que fizemos através da organização de uma marcha de Palermo a Genebra, que aconteceu na primavera de 1983.
Na cidade suíça nos apresentamos aos dois interlocutores como uma "delegação italiana" realmente representativa que, exceto pelas ACLI (associação cristã dos trabalhadores italianos) que lideravam o todo, incluía desde os movimentos "Comunhão e Libertação" até o Partido Comunista. O grupo alicerçava-se em um texto que apoiava enfaticamente o direito/dever dos povos de exigir a paz e, portanto, pedir que a Europa fosse libertada do pesadelo dos euromísseis.
No encontro com os soviéticos nos impressionou o embaraço de seu chefe de delegação quando teve que responder à pergunta de como da URSS não vinham notícias de eventos semelhantes aos que aconteciam no Ocidente. Ele nos administrou a resposta canônica de que na URSS todo o partido defendia a paz e, portanto, não era necessário que as pessoas se mobilizassem; mas sabia não estar sendo convincente.
Do encontro com os norte-americanos tiramos uma verdadeira pérola. Dirigimos uma questão bastante intrigante ao general Burn, que substituía o diplomata Nitze como chefe da Delegação: “Em sua opinião, uma guerra nuclear limitada é possível?". E a resposta foi: "Claro que é possível. Mas nessa guerra eu não gostaria de participar".
Anos mais tarde, em 1988, aconteceu-me de encontrar novamente o general Burns, durante uma audiência do Senado sobre a resolução do problema dos mísseis, com o acordo Rejkiawik entre Reagan e Gorbachev. Concordamos que o desenvolvimento lógico daquela afirmação comportava a eliminação total e definitiva dos armamentos nucleares.
Por enquanto havia um promissor primeiro passo: a destruição dos vetores incriminados, dos quais me coube um fragmento que conservo em cima da mesa: é um pedaço de SS22 soviético destruído no Cazaquistão, em 1 de Agosto de 1988. Parecia naqueles dias que o processo de desarmamento seria irreversível. Parecia...
No entanto, trinta anos depois, estamos novamente lidando com o pesadelo nuclear. A explicação menos sofisticada é que houve uma desatenção gradual sobre o problema, resultando em um desinteresse substancial e um crescente distanciamento entre as declarações éticas e políticas e os comportamentos práticos.
Na verdade, o número de potências nucleares cresceu e foi anulado o compromisso de conter a área dos detentores de ogivas nucleares como fator de controle do risco.
Além disso, hoje, a chegada ao poder de figuras portadoras de doutrinas alicerçadas em relações de força, enfraqueceu a influência de todos que valorizavam as experiências acumuladas como argumentos para edificar e firmar uma paz estável.
Certamente, existem hoje ambientes militares, e não só, que consideram como fisiológica uma opção nuclear. E não recuam - é de se presumir - mesmo diante da perspectiva de um milhão de mortes, que ocultam com o clamor dos gritos de guerra.
Para ser sincero, algum sintoma preocupante já pairava no ar, mesmo nos tempos de calmaria aparente. No final dos anos 1980 encontrei em um jornal a notícia de um exercício militar da OTAN em que era simulado o uso de armas nucleares. Imediatamente me ocorreu de encaminhar um questionamento parlamentar a respeito para o Ministro da Defesa para saber se tinha sido feita uma estimativa sobre as perdas militares e civis. Não recebi nenhuma resposta formal. Apenas me foi lembrado que se tratava de arcana imperii.
E hoje? Existe uma profunda contradição entre as resoluções da ONU que declaram imorais as armas nucleares e as consideram "um ilegítimo instrumento de guerra" e o comportamento dos governos dos países detentores de potencial atômico. Tudo isso é agravado quando a sua representação é confiada a sujeitos que se qualificam por sua gritante falta de bom senso.
É por isso que, no clima de incerteza e de medo que paira sobre o destino do homem, o significado das palavras do Papa Francisco (discurso de 10 de novembro em uma conferência sobre o tema) não pode ser mitigado ou contornado.
"Deve ser condenada com firmeza - disse Francisco sobre armas nucleares - a ameaça de seu uso, bem como a sua própria posse, justamente porque a sua existência é funcional a uma lógica de medo que não afeta apenas as partes em conflito, mas todo o gênero humano". E ele relançou o conceito de desenvolvimento como um fator de paz, defendendo que "um progresso efetivo e inclusivo pode tornar viável a utopia de um mundo livre de mortais instrumentos ofensivos". Em outras palavras: vamos começar a promover o desenvolvimento, o resto virá como consequência. Não é certo? Mas, para sabê-lo, é preciso tentar.
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Conflito nuclear: coisas de louco à frente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU