24 Outubro 2017
Por mais incomum que seja, os privilégios paulino e petrino demonstram a tensão entre a Tradição real da Igreja e a leitura estreita que os rigoristas fazem do Evangelho.
O artigo é de Mathew Boudway, publicado por La Croix International, 21-10-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Em um breve comentário publicado no sítio eletrônico Catholic Thing, o Pe. Gerald E. Murray rebate Cathleen Kaveny e Pe. Anthony Spadaro, SJ, por contradizerem o “significado claro” do ensinamento de Cristo sobre o divórcio e o matrimônio em um congresso recente sobre Amoris Laetitia.
Murray, canonista, vem criticando Amoris Laetitia desde a sua publicação, e a crítica que fez de Kaveny e Spadaro é, de fato, apenas uma extensão desta sua crítica anterior ao Papa Francisco e ao Cardeal Walter Kasper. Em resposta à afirmação de Kaveny, segundo a qual “não precisamos perturbar o ensinamento de Jesus a fim de aperfeiçoá-lo e desenvolvê-lo”, Murray escreve:
O ensinamento de Jesus não pode ser desestabilizado (...) mas pode ser ignorado ou falsificado. A admissão de parceiros invalidamente casados à Sagrada Comunhão não é um aperfeiçoamento ou desenvolvimento deste ensinamento, é uma traição. Pode-se alegar estar-se mantendo um ensinamento aperfeiçoando-o e desenvolvendo-o de um modo que altere totalmente o seu significado, mas tal alegação é falsa.
Ou o adultério está sempre errado, ou nunca está errado. Não pode haver um meio-termo. Aperfeiçoar algumas formas de adultério como não adultério é um crime contra o significado claro das palavras de Cristo. É uma ilusão que endossa a imoralidade e que poderá ter o efeito de destruir a unidade da fé ensinada pela Igreja.
Murray indigna-se com a declaração de Spadaro, de que “Já não é possível julgar as pessoas com base em uma norma que está acima de todos”. Murray chama isto de “uma contradição direta de como a Igreja sempre entendeu o ensinamento de Cristo”.
Para ele, julgar as pessoas com base em normas “que se põem acima de todos” é o que caracteriza a Igreja. É, se preferirmos, a noção definidora católica sem a qual a fé torna-se incoerente e irrelevante.
“É horrível”, escreve ele, “sugerir que o ensinamento de Cristo não deveria mais ser pregado em seu sentido pleno como ensinado desde o começo da Igreja (...) Recordo mais uma vez do título do livro do Cardeal Sarah ‘Deus ou Nada’. É isso o que vem acontecendo na medida em que experienciamos, com tristeza, esta crise crescente a respeito do significado da verdade divina sobre o matrimônio, o divórcio, o adultério e a Sagrada Comunhão”.
Por que a atual controvérsia sobre a disciplina sacramental, relegada a uma nota de rodapé em Amoris Laetitia, lembrou Murray do título ‘Deus ou Nada’? Por que “não pode haver um meio-termo”: de um lado, há Deus e Sua Santa Igreja e o código de conduta imutável dela, enraizado no Evangelho e apresentado, sem ambiguidades, no Direito Canônico. De outro lado – o das pessoas como Kaveny e Spadaro –, existe o Nada, um abismo de traição e engano apresentado, de modo sedutor, como misericórdia.
A postura de Murray possui o apelo inegável da clareza e simplicidade. O tom é o de alguém sóbrio e direto, a insistir em uma verdade inconveniente. Este tom é retoricamente eficaz porque a maioria de nós, quer nos chamemos progressistas, quer nos chamemos conservadores, se tornou suspeito de todo e qualquer argumento teológico aparentemente destinado a tornar o cristianismo tão fácil e inofensivo quanto possível.
Murray é mais suspeito de todos. Ele exige respostas claras e não demora em detectar todo e qualquer equívoco que tente se passar por válido: “Ou o adultério está sempre errado, ou nunca está errado (…) Aperfeiçoar algumas formas de adultério como não adultério é um crime contra o significado claro das palavras de Cristo”.
Na verdade, essa estratégia, declaração sem sentido, é, de fato, não mais que uma pergunta equivocada (o significado de “adultério” é precisamente o que está em disputa), mas deixemos isto de lado. Deixemos de lado também a questão sobre se o próprio Cristo fez uma exceção à proibição contra o matrimônio (como ele, no mínimo, parece fazer no Evangelho de S. Mateus).
Para fins de argumentação, concordemos que não pode haver um meio-termo e que o ensinamento dominical sobre o divórcio e o matrimônio é tão óbvio e severo quanto insiste Murray: todos os matrimônios válidos são indissolúveis, e todo aquele, casado de modo válido, celebrar um segundo matrimônio é culpado do pecado mortal de adultério. Segue-se que nenhum católico que se casou pela segunda vez, a menos que viva com a segunda esposa como “irmão e irmã”, pode receber a Comunhão. Simples assim.
Exceto que, na história real da Igreja Católica, isto não acontece. O Direito Canônico – em especial, o cânon 1143 – afirma que “O matrimônio celebrado entre duas partes não batizadas dissolve-se pelo privilégio paulino em favor da fé da parte que recebeu o batismo, pelo mesmo fato de esta parte contrair novo matrimônio, contanto que a parte não batizada se afaste”.
Em outras palavras, um convertido está livre para voltar a se casar na medida em que o primeiro cônjuge não batizado saia fora do caminho. Observemos que isto é verdadeiro quer ou não o primeiro matrimônio tenha sido válido. Seguindo a mesma lógica, aquilo que costumava ser chamado de Privilégio Petrino permite a um papa dissolver um matrimônio válido entre uma pessoa batizada e uma pessoa não batizada de forma que o primeiro possa se casar com um outro cristão.
Como canonista, o Pe. Murray obviamente tem ciência destas exceções à regra geral da Igreja de que todos os matrimônios válidos (sacramentais ou não) são indissolúveis. E ele deve também estar ciente da história vulnerável destas exceções, que remonta às instruções de S. Paulo em 1 Coríntios 7,15: “Se o não cristão quiser separar-se, que se separe. Nesse caso, o irmão ou irmã não estão vinculados, pois foi para viver em paz que Deus nos chamou”.
Se o Pe. Murray está certo sobre o “significado pleno das palavras de Cristo”, então a Igreja Católica adotou uma categoria estreita de adultério durante grande parte de sua história. Por que isso não o preocupa? Ou o preocupa? Até onde sei, nem ele nem qualquer
outro dos críticos proeminentes de Amoris Laetitia se pronunciaram contra os privilégios paulino e petrino.
Talvez isso aconteça porque consideram estas duas exceções tão raras quanto insignificantes. Nesse caso, vale salientar que o tipo de exceções que Kasper e Francisco parecem estar propondo poderia também ser bem raro. (Nenhum dos dois alguma vez sugeriu que todos os católicos divorciados e recasados se sintam livres para receber a Comunhão.)
Por mais incomum que seja, os privilégios paulino e petrino demonstram a tensão entre a Tradição real da Igreja e a leitura estreita que os rigoristas fazem do Evangelho, que finge não admitir exceções. Logicamente, até mesmo uma exceção real é demais para a posição deles.
Se forem honestos, ou eles condenarão estes privilégios consagrados, ou irão parar de fingir que as exceções pastorais sugeridas em Amoris Laetitia são uma ruptura sem precedentes para com a Tradição católica.
Como diria o Pe. Murray, não pode haver um meio-termo.
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Privilégios desagradáveis: Uma pergunta aos críticos de Amoris Laetitia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU