14 Mai 2014
Em primeiro lugar, parabéns para Grant Gallicho e Matthew Boudway da revista Commonweal por terem conseguido uma entrevista em profundidade com o cardeal Walter Kasper e, o que é mais importante, por terem feito a sua lição de casa e realmente terem feito perguntas inteligentes e bem preparadas. Em segundo lugar, parabéns para o cardeal Kasper por convidar a todos nós a pensar mais profundamente e com mais nuance sobre uma série de questões. Quer concordemos ou não com todas as suas conclusões ou percepções, trata-se de uma mente poderosa e fiel.
A reportagem é de Michael Sean Winters, publicada no sítio National Catholic Reporter, 08-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A entrevista, sem dúvida, irá gerar muitos comentários. Aqui estão alguns pontos de destaque para mim. Gallicho e Boudway perguntaram ao cardeal sobre a prática da Igreja Ortodoxa. Eis a passagem relevante:
Commonweal – O senhor também fala da diferença entre o princípio ortodoxo oriental da oikonomia e o princípio ocidental da epiqueia. Poderia explicar a diferença entre eles e por que eles são importantes em questões como a forma pela qual a Igreja trata os católicos divorciados e em segunda união?
Kasper – Os ortodoxos têm o princípio da oikonomia, que lhes permite, em casos concretos, dispensar, como os católicos diriam, o primeiro matrimônio e permite um segundo na Igreja. Mas eles não consideram o segundo matrimônio como um sacramento. Isso é importante. Eles fazem essa distinção – se as pessoas a fazem, é outra questão. Eu não estou certo de que possamos adaptar essa tradição à nossa, mas temos elementos semelhantes. A epiqueia diz que uma regra geral deve ser aplicada a uma situação particular – muitas vezes complexa –, levando em consideração todas as circunstâncias. Falamos de jurisprudência, não de jurisciência. O jurista deve aplicar a regra geral, levando em conta todas as circunstâncias. Para os grandes canonistas da Idade Média, a epikaia era a justiça adoçada com misericórdia. Podemos começar por aí. Temos os nossos próprios recursos para encontrar uma solução.
Um dos aspectos menos comentados de toda a discussão sobre o divórcio e o recasamento é que, antes de o Código de Direito Canônico de 1917 ser adotado pela Igreja universal, nos Estados Unidos e em muitos outros países, o pároco lidava com a questão.
Na verdade, havia muito menos casos de divórcio na época, embora o abandono do cônjuge em comunidades imigrantes não era desconhecido. Era um procedimento canônico, de fato, mas, sem dúvida, o fato de um pároco lidar com pessoas que ele conhecia trazia esse elemento pastoral para a situação de uma forma que um canonista, em um tribunal, lidando com uma pilha de papéis, não consegue.
E, na verdade, muitos poucos desses pastores tinha uma extensa formação em direito canônico. Mas, por causa de toda essas garantias, eu suspeito que o sistema era melhor para evitar o que Kasper chama aqui de "jurisciência" e para exercer, ao contrário, a jurisprudência.
A questão e resposta seguintes também são ilustrativas. Aqui está o texto:
Commonweal – Até recentemente, o senhor era o presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Como essa questão pode se encaixar nas relações ecumênicas em curso com a Ortodoxia oriental? Se houvesse uma mudança na forma como a Igreja Católica Romana lida com os católicos recasados, isso facilitaria – ou ao menos facilitaria um pouco – a reaproximação entre o Oriente e o Ocidente? Ou não facilitaria em nada?
Kasper – Facilitaria. Eles têm essa tradição antiga, e a sua tradição nunca foi condenada por um concílio ecumênico. O Concílio de Trento condenou a posição de Lutero, mas não discutiu a posição ortodoxa. O concílio formulou o problema da indissolubilidade de um modo muito cauteloso, porque Veneza tinha algumas ilhas que eram ortodoxas, mas sob a hierarquia latina. Eles não queriam perder essas ilhas. Então, nós não falamos sobre esse problema. Tivemos problemas mais fundamentais com os ortodoxos. Mas, se pudéssemos encontrar uma nova solução com base na nossa própria tradição ocidental, eu realmente acho que seria mais fácil encontrar uma solução concreta para o nosso problema com os ortodoxos.
A primeira coisa que salta aos olhos é que, na terceira frase da sua resposta, Kasper se refere a "o concílio" e não se refere ao Vaticano II, mas sim a Trento. Nós, que ainda vivemos naquele que pode apropriadamente ser chamado de "período pós-conciliar", precisamos sempre ser lembrados de que houve concílios antes do Vaticano II e, em muitos aspectos, a reticência dos concílios anteriores sobre certas questões, a sua abordagem "muito cautelosa" a certas questões teológicas é algo que deve ser admirado.
Eu estava discutindo toda essa questão dos divorciados e da segunda união e a maneira diferente com que os ortodoxos lidam com isso com um amigo padre muito conservador. E ele me disse uma coisa interessante. "Se eu perguntar a um teólogo ortodoxo", disse ele, "se eu sou um padre validamente ordenado, o teólogo vai responder apenas que eu não sou um padre da Igreja Ortodoxa. Quando pressionado, o teólogo ortodoxo irá se recusar a responder a minha pergunta sobre a validade das minhas ordens. Eles não acreditam que é certo colocar limites e proscrições excessivos sobre a ação da graça de Deus".
Essa foi uma intuição-chave. Há muito, muito mesmo a admirar na nossa propensão ocidental ao pensamento jurídico, mas isso às vezes pode nos levar a fazer perguntas que não cabe à Igreja fazer, muito menos responder.
A segunda coisa que me chamou a atenção é a consciência de Kasper e a falta de perturbação diante da forma que as contingências não teológicas afetam o raciocínio teológico: "(…) porque Veneza tinha algumas ilhas". O Senhor trabalha de formas misteriosas.
A terceira coisa que merece atenção é a percepção de que a abordagem a essas questões não é realizada em um vácuo. É inteiramente apropriado considerar que impacto essas deliberações sobre a forma de lidar com a indissolubilidade do matrimônio em uma cultura em que metade de todos os casamentos se dissolvem terá sobre o ecumenismo, assim como aqueles que pressionam pelos direitos gays na Igreja devem se perguntar se tal pressão apresentará o risco de dividir a Igreja no rico Ocidente da Igreja mais tradicional do Sul global.
Claro, os comentários-chave de Kasper que vão aquecer os corações dos católicos liberais são as suas várias insistências sobre a necessidade de fazer a pergunta: onde está a misericórdia pelas pessoas nessa situação? Essa é uma pergunta que os cristãos sempre devem estar preparados para fazer. Sempre é uma questão relevante.
Mas, antes que essa linha de pensamento nos leve a uma suspeita geral e não específica de legalismo e a preocupações canônicas mais gerais, modifiquemos um pouco a pergunta: onde está a misericórdia para com os padres que abusaram sexualmente de menores? Certamente, o sacrifício de Deus no Calvário os redime também, não?
Também não é suficiente observar que, se a Igreja mostra misericórdia para com os padres que abusaram de menores, a Igreja comete uma injustiça tanto para com as vítimas do abuso sexual clerical, quanto para com os 95% dos padres que nunca tocaram em um menor de forma inapropriada.
Não, devemos enfrentar a questão de frente, e não é uma questão fácil. É uma estranha forma de misericórdia aquela que permite que um padre que abusou de uma criança volte a um estilo de vida que continue lhe dando um tipo de acesso único às vidas íntimas de outras pessoas, em que a tentação de cometer o pecado e o crime se manifestará novamente. É como colocar uma garrafa de uísque aberta na frente de alguém que está lutando para se manter sóbrio.
Confesso que não estou inteiramente satisfeito com essa resposta, mas, como eu digo, é o melhor que eu consegui. O ponto maior é esse. Sim, sempre devemos perguntar como podemos ser veículos da misericórdia de Deus, mas equilibrar misericórdia com justiça, como o cardeal Kasper sugere, não pode ser uma cortina de fumaça para a lassidão.
Da mesma forma, ao ouvir alguns comentaristas criticarem duramente o cardeal Kasper por abordar a aproximação da Igreja à questão do divórcio e do recasamento, tem-se a suspeita de que eles sentem algum tipo de emoção ao aparentarem ser rigoristas. O rigor deve ser evitado tanto quanto a lassidão.
Essa discussão sobre o divórcio e o recasamento vai continuar, e é muito salutar ver a discussão sendo realizada a céu aberto, com cardeais sem medo de se contradizerem. Emociona-me ver dois jornalistas não ordenados tendo uma conversa profunda e penetrante com um cardeal do Vaticano.
E o fato de que, sob a liderança de Francisco, essa questão terá menos a ver com o funcionamento interno do Vaticano e mais com os processos sinodais seguintes é algo que abre um capítulo verdadeiramente novo na vida do período pós-conciliar. Estes são tempos empolgantes, e o nível mais profundo de empolgação vem do sentimento de que o Espírito está se movendo.
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Misericórdia ou justiça? Nova entrevista com o cardeal Kasper levanta debate nos EUA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU