Por: Vitor Necchi | 03 Junho 2017
Com a naturalidade e a esperteza próprias dos velhos viajantes, Haroldo Schistek tirou de sua bolsa um amontoado de tecido. Eram duas grossas meias que ele trouxe da Áustria, sua terra natal. Do interior de uma das peças, pegou um pote de geleia de umbu. Da outra, uma de maracujá verde. Os doces foram feitos por mulheres vinculadas a uma cooperativa situada no município de Juazeiro, na região chamada de semiárido, onde Schistek chegou em 1977 para se tornar uma referência no ativismo pela preservação da Caatinga, tema da conferência que ele proferiu na noite de quarta-feira (31/5) no ciclo de estudos Os Biomas Brasileiros: A Teia da Vida, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Depois de acomodar os potes na mesa, Schistek, que é teólogo e agrônomo, iniciou a sua fala, intitulada Bioma Caatinga: políticas de conservação/preservação e o paradigma da “Convivência com o Semiárido”. Anunciou que não falaria das belezas – difícil elencar belezas quando 48% da configuração original da região já foram destruídos e as principais árvores acabaram desmatadas ou queimadas. “Nem 20% está preservado”, lamentou.
Durante pouco mais de duas horas, com clareza e seriedade, ele apresentou as características e os problemas do único bioma exclusivamente brasileiro, com uma área de 844.453 quilômetros quadrados, o que equivale a 11% do território nacional. Essa superfície, definida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE em 2014, se confunde com o semiárido, região que mede cerca de 982.563 quilômetros quadrados.
A palavra caatinga tem origem tupi e significa mata branca. Para entender a gênese do nome, basta ficar de costas para o sol e mirar a vegetação, cujas cascas parecem brancas, por causa do efeito da luz refletida sobre a superfície seca. “Quem for para lá, não precisa levar guarda-chuva, nem capa”, brincou Schistek, idealizador do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada - IRPAA, com sede em Juazeiro, fundado em 1990. A recomendação procede. As chuvas são escassas e irregulares geográfica e temporalmente. No momento, a população enfrenta o sexto ano de seca. O agrônomo contou que, onde ele mora, choveu 91 milímetros ao ano, enquanto o esperado era em torno de 525 milímetros. “Não há cultura agrícola que resista com esses índices”, avaliou.
Mesmo com a baixa precipitação pluviométrica, o fator mais limitante na região não é a água, mas a evaporação. A comparação dos índices de Juazeiro, na Bahia, e de Berlim, na Alemanha, evidencia o problema. No município brasileiro, a média anual de precipitação é de 529 milímetros, e a de evaporação, 3.015 milímetros; na capital alemã, os números são, respectivamente, 494 milímetros e 320 milímetros. Isso impacta diretamente o índice de aridez. “Temos uma evaporação imensa o ano todo, é a característica do semiárido, e não tem como mudar”, comentou Schistek.
Quando chove, no entanto, a natureza reage, e a paisagem fica verde em uma semana. Esse fenômeno impressionante deve-se ao fato de que as espécies da região se adaptaram ao regime das chuvas. Elas produzem muitas sementes que ficam depositadas no solo seco à espera de um volume de água suficiente para deflagrar o milagre da vida, quando a superfície é rompida para dar passagem ao broto. Gramíneas, cactos, árvores – não importa o porte e o tipo, todas desenvolveram ao longo da evolução mecanismos de vencer a adversidade climática. “As plantas resistem há 9 mil anos neste clima”, observou Schistek.
Dados da organização não governamental Conservação Internacional - CI sobre a região revelam a diversidade de espécies identificadas até o momento: 932 de plantas, 187 de abelhas, 240 de peixes, 167 de répteis e anfíbios, 510 tipos diferentes de aves e 148 mamíferos. “Como 47% da área ainda não foram investigados e 80% permanecem ainda subamostrados, o número total da biodiversidade da região deve ser maior”, apostou Schistek. Ele pondera que, apesar da importância ambiental e social do bioma, não há políticas públicas suficientes para garantir sua conservação e proteção. O fato de as áreas originais remanescentes serem muito fragmentadas torna mais difícil reconstituir a caracterização natural do bioma. Conforme o ativista, do total de unidades de conservação - UCs instituídas na Caatinga, apenas 1% é área de proteção integral, e dos 13 principais tipos de vegetação reconhecidos, quatro ainda não estão representados em nenhum tipo de UC.
Schistek disse que a arqueologia começou tardiamente no Brasil, na década de 1960, portanto, ainda há muito a se estudar. A região onde hoje se estende a Caatinga era coberta, antes de 12 mil anos atrás, por uma megafauna que foi extinta. Por exemplo: o Eremotherium, um tipo de bicho-preguiça que, em pé, media cerca de 2 metros; o Smilodon, uma espécie de tigre-dentes-de-sabre; o Mastodonte, considerado um primo do elefante; e o Glyptodon e o Panochthus, tipos de tatu gigante de tamanho similar ao de um Fusca. Também havia uma cobertura vegetal que fazia uma emenda entre dois outros biomas, a Mata Atlântica e a Amazônia. Parte da Caatinga, inclusive, era formada por Mata Atlântica, tanto que na região do município de Ruy Barbosa resiste um enclave de espécies remanescentes desse bioma.
A condição climática verificada na Caatinga é antiga, e há três teorias distintas que tentam explicá-la. A primeira se refere ao surgimento da aridez na América do Sul e na África, fenômeno que teria iniciado 135 milhões de anos atrás, em consequência da separação dos continentes (Pangeia). A segunda sugere que a causa foram os últimos ciclos glaciais ocorridos durante o Quaternário (1,8 milhão de anos atrás). E a terceira, chamada Teoria dos Refúgios, foi concebida pelo geógrafo brasileiro Aziz Ab'Saber na década de 1970 e indica que o clima atual da Caatinga teria começado há 18 mil anos, durante o período chamado Último Máximo Glacial do Hemisfério Norte.
Há alguns anos, a região era chamada de Polígono da Seca, denominação ultrapassada e negativa, mas que, recentemente, voltou a ser usada por ministros de Michel Temer, evidenciando que eles não acompanham nem as pesquisas sobre o assunto realizadas no âmbito do próprio governo. Em 2005, o governo federal estabeleceu critérios técnicos para a delimitação da região do semiárido: precipitação pluviométrica média inferior a 800 milímetros por ano; índice de aridez de até 0,5 (calculado pelo balanço hídrico entre as precipitações e a evapotranspiração potencial) entre 1961 e 1990; e risco de seca maior do que 60% entre 1970 e 1990. A partir destes tópicos, toda a região foi pesquisada para delimitação do semiárido.
A Caatinga ocupa 60% da área do Nordeste, mas apenas um de cada cinco hectares protegidos da região encontra-se na Caatinga. Além disso, 80% dos parques e reservas nordestinos protegem outros biomas que não a Caatinga. A produção científica desenvolvida no Nordeste também não contribui, pois dá prioridade a outros biomas, principalmente a Mata Atlântica e habitats marinhos. “Há uma falta de consciência sobre a importância da Caatinga”, protesta Schistek, citando uma pesquisa que revelou que os pernambucanos consideram prioritária a proteção da Floresta Amazônica (50%), da Mata Atlântica (28%), do Pantanal (7%) e, por último, da Caatinga (6%).
A exploração mineral é outra ameaça à Caatinga, pois remove habitats e elimina a cobertura vegetal para o funcionamento e para abertura de estradas de maneira desorganizada. Também ocorre assoreamento de corpos d’água, o que altera o ecossistema aquático e aumenta a capacidade erosiva. A produção de lenha também gera danos expressivos ao bioma. Por ano, 2,8 mil metros quadrados da Caatinga viram lenha para abastecer principalmente olarias, padarias e reformadoras de pneus.
Para contornar essa sucessão de problemas, Schistek propõe um recaatingamento, “que é possível e barato”. Não é tarefa difícil, pois mesmo os solos mais degradados são recuperáveis. “A Caatinga tem um grande poder de regeneração”, garante. “O recaatingamento é possível e barato, quando realizado em parceria.” Os resultados aparecem em um horizonte de dez anos.
Schistek, ao tratar das possibilidades de se preservar a Caatinga e durante toda a sua apresentação, falou com intimidade de mulungu, macambira, angico, juazeiro, aroeira, caatingueira, pau-ferro, jurema preta, coroa-de-frade, mandacaru, faveleiro, umbuzeiro, bromeliáceas, umburuçu, catingueira e qualquer outra espécie que integre o bioma. Falou também da articulação da população e da necessidade de se agir no plano da educação, a partir de metodologias e materiais didáticos que reflitam a realidade local, que dialoguem com o universo vivido pelas crianças.
Ao final da palestra, Schistek distribuiu para a plateia provas de geleias produzidas com frutas da Caatinga (Foto: Vitor Necchi)
E para encerrar, o viajante que atravessou o Brasil a fim de falar da Caatinga ofereceu ao público a possibilidade de provar as duas geleias que cuidadosamente acondicionou dentro das grossas meias trazidas da Áustria. Com a mesma naturalidade que apresentou as características e os problemas da região que escolheu para viver, recomendou à moça da plateia presenteada com um dos potes: “Deixa na geladeira que dura bastante tempo”.
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Caatinga tem grande poder de regeneração - Instituto Humanitas Unisinos - IHU