09 Mai 2017
Sob a lógica capitalista, todo avanço tecnológico produz desemprego e submissão. Um novo projeto emancipatório precisa exigir o contrário: redução substantiva da jornada, sem diminuição de salários, escreve Esteban Mercatante em artigo publicado por Ideas de Izquierda e reproduzido por OutrasPalavras, 08-05-2017. A tradução é de Inês Castilho.
Eis o artigo.
Os avanços da robotização e da inteligência artificial, nos últimos anos, deram novo vigor à reflexão sobre o “fim do trabalho”. Quase toda semana surgem na mídia notícias sobre os milhões (ou mesmo dezenas de milhões) de empregos que desaparecerão nos pŕoximos anos como consequência desse avanço. Os fantasmas sobre o fim do trabalho vêm de antes – em 1995 saiu o livro de Jeremy Rifkin O fim do trabalho e já nos anos 80 o teórico crítico André Gorz apontou as mutações no mundo da produção que colocavam em crise o papel do trabalho.
Mas agora, tornaram-se uma perspectiva mais próxima, ou ao menos assim parecia, dados os prognósticos mais alarmistas. No ano passado, o Fórum Econômico Mundial, que se reúne todos os janeiros em Davos, apresentou estimativas que projetam uma queda dramática da quantidade de assalariados em consequência da introdução de novas tecnologias. Todos esses estudos têm muito de alarmistas; como mostra Paula Bach neste dossiê, a ameaça da robotização mostra-se exagerada à luz das tendências atuais de acumulação de capital. Michel Husson expõe conclusões semelhantes em O grande “bluff” da robotização. Por outro lado, a crise mundial desencadeada pela queda do Lehman Brothers, que teve seus efeitos mais duradouros nas economias mais ricas da Europa e dos EUA, complicou ainda mais o panorama do emprego. Mesmo nos EUA, o país capitalista onde o emprego mais se recuperou mais desde a quebra de 2008, os empregos criados são principalmente nos setores de serviços e de comércio, mal remunerados.
Nesse contexto, colocar em discussão a redução da jornada de trabalho para 6 horas pareceria mais que razoável. O volume de trabalho humano a realizar diminui, tanto por fatores estruturais de longo prazo – a crescente automação dos processos produtivos faz com que se possa produzir o mesmo com menos tempo de trabalho – como por razões mais conjunturais (o fraco crescimento que parece ter chegado para ficar nas economias mais ricas). Por que não repartir o trabalho social por todas as mãos disponíveis?
Um projeto como este não é do agrado do exército de especialistas advogados da “modernização” das relações de trabalho para favorecer os lucros empresariais. Sua rejeição é lógica: a questão do tempo de trabalho na sociedade capitalista não é algo que possa ser vista de forma ligeira. Por mais empenho que a economia mainstream tenha colocado nos últimos 150 anos para refutar Karl Marx e economistas clássicos como David Ricardo e Adam Smith, que reconheciam no trabalho a única fonte de valor – e portanto de lucro – na hora da verdade os donos dos meios de produção e seus gerentes sabem que cada segundo conta. Obter mais trabalho pelo salário que se paga é uma das chaves para elevar a taxa de rentabilidade.
Não surpreende portanto que, apesar das possibilidades técnicas apresentadas pelo aumento da produtividade, trabalhe-se tanto, no século XXI – ou mais – que no século XX. Por exemplo, nos EUA a produtividade duplicou entre 1979 e 2016, segundo o Escritório de Estatísticas de Trabalho (e triplicou desde 1957). No entanto, se no começo deste período as horas semanais trabalhadas na ocupação principal nos EUA eram de 37,8, em 2016 foram de 38,6. Trabalha-se mais, e não menos, que há 40 anos.
A situação não é muito diferente em outros países. Na França, que em 2000 introduziu a semana de 35 horas de trabalho, estas já quase não se aplicam. O ataque começou cedo, em 2003, com a lei Fillon (elaborada pelo então ministro François Fillon, candidato da direita nas recentes eleições presidenciais), que ampliou as horas extras possíveis de 130 a 200 no ano, e manteve a possibilidade de que as empresas imponham horas extras. Em 2015-2016 a lei Macron (candidato “independente” eleito presidente nestas eleições) estabeleceu a obrigação de trabalhar domingo no comércio, igualou o trabalho noturno com o trabalho feito à tarde e estendeu o tempo da jornada de trabalho para 12 horas diárias e 60 semanais. A decisão posterior do Senado, de reintroduzir as 39 horas, no lugar de 35, foi mais um passo no caminho de eliminar todas as barreiras legais à liberdade dos empresários para explorar o trabalho. Segundo o Eurostat, na França trabalha-se 40,5 horas por semana. O hoje abatido ex-candidato Fillon quer mudar para 39 horas semanais, mas pagar somente 37, “para ganhar competitividade”.
Na Alemanha, apelando à chantagem da deslocalização do trabalho para o Leste, a Siemens impôs em abril de 2004 aos trabalhadores da fábrica em Bocholt um acordo considerado “uma ruptura de época na história econômica da República Federal”: a volta de 35 para 40 horas sem nenhum tipo de aumento dos salários. No mesmo ano, a Opel obrigou os trabalhadores e o sindicato a concordar com uma semana de trabalho de 47 horas em troca de uma promessa – descumprida – de não despedir. As estatísticas falam por si mesmas: na Alemanha, a proporção de trabalhadores do sexo masculino que trabalham entre 35 e 39 horas caiu de 55% em 1995 para 24,5% em 2015; a proporção dos que trabalham 40 horas ou mais aumentou no mesmo período de 41% a 64%. Considerando-se o total de trabalhadores, homens e mulheres, a primeira categoria caiu de 45% para 20,8%, enquanto o segundo aumentou de 32, 7% para 46%.
Sem dúvida, as relações de trabalho atuais não se ajustam às necessidades das empresas que apontam para uma maior “flexibilidade”, sempre entendida como menos direitos para os trabalhadores e menos obrigações para os empregadores. Hoje, uma das principais contestações à tradicional jornada de 8 horas vem da parte das próprias empresas. E não precisamente porque busquem liberar os assalariados da pesada carga do trabalho.
Além disso, a própria relação salarial está sendo reformulada. Corporações como Uber constróem grandes redes contando com uma folha de pagamento mínima, enquanto o serviço que define a empresa é realizado por trabalhadores “independentes”. Isso, que vem sendo chamado de “economia gig”, vem acompanhado de novas técnicas de persuasão ou coerção para arrancar mais trabalho desses trabalhadores independentes. “Mostramos aos motoristas áreas de alta demanda ou os incentivamos para que dirijam mais”, admite um porta-voz do Uber [1].
No caso da Amazon, uma investigação da BBC mostrou que os motoristas encarregados de distribuir seus produtos na Grã Bretanha eram forçados a trabalhar 11 horas ou mais, e inclusive fazer suas necessidades dentro de seus veículos para poder cumprir as exigentes metas de entregas da empresa, que podiam chegar até a 200 pacotes diários. Mesmo assim, apesar disso, em muitos casos, o rendimento mal equivalia a um salário mínimo, já que era preciso arcar com os custos do aluguel do veículo (ou de sua manutenção, se próprio) e seguro [2]. Sim, é a mesma Amazon que inaugurou um local sem caixas em Seattle, mostrando aquí uma face bem menos amável e de vanguarda: o da economia “gig” como mais um salto na extensão do “precariado”. Que têm em comum uma caso e outro, e os de muitíssimas empresas semelhantes em todo o mundo? O fato de seus “colaboradores” terem contratos independentes, que carecem da maioria das proteções associadas com o emprego.
Há também outras propostas de mudanças na jornada. Carlos Slim, o magnata mexicano das telecomunicações, colocou que seu método para “repartir” o trabalho: jornadas de 3 dias por semana… 11 hors por dia! Em troca, “as pessoas se aposentadoria aos 75”. Trabalhar menos dias, ainda que em jornadas intermináveis… e por muito mais tempo de vida. Uma proposta que, ao menos neste último aspecto, pode ser do agrado de governos como o de Mauricio Macri, na Argentina, ou Michel Temer, no Brasil, empenhados em aumentar a idade da aposentadoria, estendendo-a até 65 anos para homens e mulheres.
Se fosse necessários ainda mais indicadores de que algo está ocorrendo – e algo tem de mudar – com a jornada de trabalho, há os múltiplos casos de empresas que começaram a cortar a jornada, apesar de que cada minuto de trabalho que sacrificam é um “custo de oportunidade” para os empresários. Fazem-no, obviamente, não por qualquer vocação caritativa mas contando em conseguir, em troca, maior produtividade durante o tempo que seus empregados estão no trabalho. A Suécia colocou em prova uma iniciativa no setor público da assistência aos idosos, onde se reduziu a jornada para 30 horas semanais (6 horas diárias). Segundo a avaliação realizada, as enfermeiras declararam-se mais felizes, melhor remuneradas (é como se se pagasse 33 % a mais a hora de trabalho) e sua produtividade aumentou. Ainda que seu trabalho tenha custado mais caro — e isso acabou determinando no início deste ano o abandono desta experiência — o cuidado dos pacientes melhorou, já que as enfermeiras se cansavam menos.
A possibilidade de ganhar em produtividade é o que impulsiona muitas empresas a também experimentar com a redução da jornada de trabalho, embora se trate de experimentos limitados. A Toyota (em sua filial sueca) é uma das empresa que o fez, assim como várias do setor de tecnologia. Na maioria dos casos, seguindo a tendência que analisamos acima, a outra face da redução do tempo passado no trabalho é o aproveitamento da maior conectividade para fazer com que os empregados continuem realizando tarefas fora do horário de trabalho.
Embora isoladas e sem marcar nenhuma tendência geral, como vimos, essas experiências desmentem a ideia de que seja impossível avançar com direção à redução da jornada de trabalho. Mostram também que, se depender do capital, isso só poderá ocorrer em troca de maior produtividade (intensidade do trabalho) e sem permitir – ao menos não inteiramente – que os desempregados possam voltar a obter um trabalho, já que se tentará compensar qualquer redução da jornada com maior produtividade. Fazê-lo de outro modo — ou seja, reduzir a jornada assegurando que todos possam trabalhar e receber um salário digno — implica afetar os lucros,para assegurar o emprego.
Em 1930, um ano após o início da Grande Depressão, o lorde John Maynard Keynes publicou As perspectivas econômicas para nossos netos, um texto em que, apesar do presente penoso, mostrava-se confiante sobre as perspectivas futuras, que ofereceriam desenvolvimento da produtividade. “Poderia predizer que o nível de vida nos países avançados será, dentro de cem anos, de quatro a oito vezes mais alto do que é hoje”. Considerando essa perspectiva, confiava em que “turnos de três horas ou semanas de trabalho de quinze horas” seriam mais que suficientes para satisfazer as necessidades econômicas. Como já vimos, o aumento da produtividade deu razão a Keynes na maior parte dos países ricos, mas não ocorreu o mesmo com as horas trabalhadas.
As possibilidades criadas pelo desenvolvimento da técnica, nas mãos do capital, convertem-se num pesadelo para os trabalhadores. O auge das comunicações e o barateamento dos custos de transporte das últimas décadas não reduziram as horas de trabalho nos países industrializados — apenas diminuíram a quantidade de trabalhadores ocupados. Em parte, isso se deu devido à automação, e em parte porque os empregos foram relocalizados nos países onde a força de trabalho é mais barata e onde também se pode fazer com que se trabalhe mais horas. A degradação subsequente das condições de emprego operou ainda mais em favor do capital, que pode impor em todo o mundo uma “arbitragem trabalhista”, fazendo com que os trabalhadores dos diferentes países compitam entre si, cedendo em condições de trabalho e remuneração para assegurar o emprego, numa verdadeira “corrida em direção ao abismo” [3].
As forças produtivas hoje disponíveis permitiriam amplamente oferecer a toda a humanidade o acesso aos bens e serviços fundamentais, ao mesmo tempo que reduzir para milhares de milhões de homens e mulheres a carga de trabalho. Mas isso se choca com as relações de produção capitalistas, que dependem da exploração da força de trabalho, arrancando dela o sobretrabalho/ trabalho excedente para assegurar o lucro, que motor desta sociedade.
Projetar a redução da jornada de trabalho mediante a partilha das horas de trabalho entre todas as mãos disponíveis, sem afetar o salário (garantido para todos os ocupados uma renda digna), significa colocar na mesa que o aumento ou “flexibilização” da jornada não são as únicas alternativas. Elas, além disso, nunca serviram para que o emprego cresça significativamente (e em muitos casos, nem sequer para que deixe de cair); somente conseguem degradar a qualidade dos empregos existentes. Tampouco passa, como foi proposto em diversas modalidades, pela ilusão de que o Estado assegure uma renda universal tanto para os que estão empregados como para os que não estão. Trata-se de colocar em questão como se produz e como se repartem os frutos dessa produção.
Reduzir esta jornada significaria, além disso, desnaturalizar o “exército industrial de reserva”, termo com que Marx caracteriza o papel desempenhado pela força de trabalho desempregada ou semiempregada. Sua existência é o que permite que os mecanismos de mercado operem no que diz respeito aos salários, de forma favorável ao capital, limitando o crescimento dos salários nos momentos de auge e facilitando a queda dos mesmos em tempos de crise.
(…)
Não se trata aqui do choque “normal” de interesses materiais opostos. Trata-se de preservar o proletariado da decadência, da desmoralização e da ruína. Trata-se da vida e da morte da classe criadora e, por isso mesmo, do futuro da humanidade. Se o capitalismo é incapaz de satisfazer as reivindicações que surgem dos males engendrados por ele mesmo, só lhe resta morrer. A “possibilidade” ou a “impossibilidade” de realizar as reivindicações é, neste caso, uma questão de relação de forças que só pode ser solucionada pela luta. Sobre a base desta luta, quaisquer que sejam os êxitos práticos imediatos, os trabalhadores compreenderão, na melhor forma, a necessidade de acabar com a escravidão capitalista.
A proposta de trabalhar menos horas para que todos trabalhem, sem afetar os salários, coloca em questão a naturalização do “direito” do empresariado de dispor da força de trabalho como bem entende, em função de ampliar seus lucros, enquanto esse privilégio promove uma progressiva deterioração para uma faixa de assalariados. Trata-se de um projeto que só poderia realizar-se integralmente por um governo de trabalhadores que se proponha superar – em nível internacional – esse sistema baseado na exploração social. Se o capitalismo criou esta possibilidade – a de reduzir o tempo necessário para assegurar a reprodução dos bens socialmente necessários – mas se isso só pode ser feito questionando os mecanismo de exploração que sustentam este sistema, “só lhe resta morrer”, para abrir caminho para uma organização da produção articulada não em função do lucro privado, mas das necessidades sociais.
Notas
[1] Noam Scheiber, “Os truques psicológicos da Uber para que seus motoristas trabalhem mais”, The New Times, edição em espanhol, 6/4/2017.
[2] “Amazon drivers ‘work illegal hours’”, BBC, 11/06/16.
[3] Esteban Mercatante, “Uma corrida até o abismo”, IdZ 30, junho 2016.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Trabalhar seis horas, desejo impossível? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU