27 Janeiro 2017
O projeto de um mercado global sem fronteiras, no qual as transnacionais industriais e financeiras do Ocidente ditariam as regras do comércio em benefício próprio e das grandes potências, enfrentou manifestações de ativistas a partir de 1999 e a resistência dos países em desenvolvimento e dos Brics a partir da Conferência de Cancún de 2003 e um abalo com a crise financeira de 2008. Mas nem os mais entusiasmados críticos do neoliberalismo teriam imaginado, mesmo então, o cenário de Davos em 2017.
A reportagem é de Antonio Luiz M. C. Costa, publicada por CartaCapital, 27-01-2017.
Com o Reino Unido, o mais tradicional arauto do livre-comércio, entregue ao nacionalismo, os Estados Unidos às vésperas de empossar um presidente em confronto aberto com as organizações multilaterais e a União Europeia em risco de desintegração, sobrou Xi Jinping, herdeiro da revolução maoísta e líder do maior partido comunista do planeta, para abrir os trabalhos e salvar a globalização da orfandade.
Xi prometeu manter suas fronteiras abertas, defendeu o Acordo de Paris contra a mudança climática e deu lições de liberalismo contra a guerra comercial: “O protecionismo é como se trancar em um quarto escuro: vento e chuva ficam do lado de fora, mas também a luz e o ar. Cortar os fluxos de capital, produtos e pessoas entre economias e canalizar as águas do oceano para baías e lagos isolados é impossível”. Adam Smith encontra Paulo Coelho, comentou o escritor libanês Karl Sharro.
O colunista Thomas Friedman, nos anos 1990 o mais conhecido garoto-propaganda da ordem mundial baseada nos arcos dourados do McDonald’s, brincou: “Se eu tivesse apenas lido o discurso, teria dito a vocês ‘eu não sabia que o presidente (Barack) Obama esteve aqui’”. Sintomaticamente, o McDonald’s propriamente dito, em dificuldades financeiras, acaba de vender suas operações na China a um consórcio liderado por uma estatal chinesa.
Enquanto isso, Donald Trump não se limita a ignorar Davos e as organizações internacionais. Faz questão de pisoteá-las. Na entrevista dada no domingo 15 a dois animados aduladores, o ex-ministro britânico Michael Gove e o jornalista alemão Kai Diekmann, o presidente eleito tachou a Otan de “obsoleta” em contradição com as opiniões expressas pelo secretário de Defesa por ele indicado, o general James Mattis, e falou de retirar as sanções a Moscou e aceitar a anexação da Crimeia se a Rússia aceitar reduzir o arsenal nuclear.
Ironicamente, tropas e blindados dos EUA ainda às ordens de Obama chegavam à fronteira russa na Polônia e países bálticos para reforçar a defesa europeia, no maior deslocamento do gênero desde a Guerra Fria. Talvez sem saber que outro integrante da Otan, a Turquia, preparava bombardeios conjuntos com a Rússia contra o Estado Islâmico, iniciados na terça-feira 17.
Trump também atacou a União Europeia como mero “veículo para a Alemanha”, cumprimentou o Reino Unido por deixá-la, ofereceu-lhe um acordo comercial especial, profetizou a saída de mais países, culpou a “catastrófica” política humanitária de Angela Merkel para com os refugiados e ameaçou taxar carros alemães: “Todos têm um Mercedes-Benz na frente de sua casa na Quinta Avenida, mas quantos Chevrolets se veem na Alemanha?”
É uma atitude insólita para um presidente dos Estados Unidos, mais ainda antes da posse, e mereceu respostas inusitadas dos governos europeus. Nunca se disseram tantas verdades na cena diplomática. “Os comentários de Trump sobre a Otan causaram assombro aqui – e, certamente, não só aqui”, tuitou de Bruxelas o ministro do Exterior alemão, Frank-Walter Steinmeier, em reunião com colegas e com o secretário-geral da Otan.
“No seu pensamento, o Ocidente como entidade política e normativa não existe. É uma novidade perigosa”, expressou o presidente do Comitê de Relações Exteriores do Parlamento alemão, Norbert Röttgen.
Coube ao vice-premier e ministro da Economia, Sigmar Gabriel, responder sobre a questão comercial. “A indústria automobilística dos EUA terá um rude despertar se todas as autopeças não fabricadas lá forem taxadas em 35%. Isso deixará o setor mais fraco, pior e menos competitivo.”
A quem lhe perguntou como fazer os alemães comprarem mais carros estadunidenses, retrucou: “Façam carros melhores”. Aos comentários sobre a política de imigração alemã, a resposta foi ainda mais dura: a crise dos refugiados “foi resultado da política intervencionista fracassada dos Estados Unidos, especialmente a Guerra do Iraque”.
François Hollande, mesmo sem ser citado, também saiu em defesa do projeto europeu e de Merkel. “A Europa não precisa de conselhos de fora para saber o que fazer. Compartilhamos por muito tempo a mesma concepção de direito de asilo para quem foge de perseguições e conflitos e esse princípio é um dos que fundaram a nação americana”.
E ironizou a insegurança dos estadunidenses sobre a própria competitividade: “A maior potência do mundo deveria ter mais autoconfiança. Se começa a ter medo de si mesma e do mundo, como será capaz de influenciar e atrair?” Seu chanceler, Jean-Marc Ayrault, complementou: “Melhor resposta à entrevista do presidente dos Estados Unidos é a União Europeia se unir em bloco”.
Esse tom lembra menos um debate entre aliados do que as acusações e alfinetadas entre John Kennedy e Nikita Kruchev na Guerra Fria e não difere tanto da linguagem de Pequim. Após as ameaças de Trump de reconhecer Taiwan se a China não fizesse concessões comerciais e cambiais, o governo chinês advertiu com “medidas fortes para acelerar a reunificação” e sobre a sugestão do presidente eleito de bloquear o abastecimento e militarização das ilhas ocupadas pelos chineses no Mar do Sul da China, avisou que isso seria a guerra, nada menos.
É de se perguntar se ao menos o governo de Taipé ficou satisfeito. De que vale o reconhecimento de um suposto protetor se este pode vendê-lo em troca de um desconto na taxa de câmbio ou na tarifa alfandegária? Trocar questões de princípio e legitimidade por negócios de bazar sequer é Realpolitik, é tentativa amadorística de parecer malandro.
Mesmo assim, caso se insista em tomar as atitudes de Trump como parte de uma estratégia e não mera continuação do marketing eleitoral, seria de se especular sobre um projeto de aliança com a Rússia (e talvez a Índia) contra a China (e talvez o Paquistão) para rachar o bloco eurasiático em formação, substanciado em organizações como o Brics e o Pacto de Xangai.
Uma inversão do que fez Richard Nixon ao se aliar à China maoísta contra a União Soviética. Mas seria de perguntar se combinou mesmo com os russos. Em 1972, a rivalidade sino-soviética beirava o confronto armado, enquanto hoje não há atritos sérios entre Pequim e Moscou.
Também não parece provável que Vladimir Putin sacrifique o Irã, ameaçado por Trump, mesmo se este parece disposto a abandonar alianças com nações asiáticas e europeias orientais nas quais os EUA e seus parceiros investiram por décadas.
Se algo como esse plano existe, não é difícil ver como o desmantelamento da União Europeia é parte dele. Na Europa
Ocidental, o confronto com a Rússia não é uma prioridade geopolítica. Seus governos entraram nesse jogo em parte por fidelidade aos EUA, em parte por solidariedade com os europeus orientais e, no caso do Reino Unido e França, em parte por oportunidades de ganhos colaterais para suas indústrias bélica e petrolífera.
Muitos deles, notadamente a Alemanha, prefeririam que nada tivesse acontecido na Líbia, Ucrânia e Síria e pudessem importar gás e exportar máquinas para os russos em z. Os partidos populistas de ultradireita (ou ultracentro, no caso de Beppe Grillo e seu Movimento Cinco Estrelas), que Trump gostaria de ver no poder, são fãs assumidos de Putin, e até François Fillon, o candidato conservador à Presidência da França, gostaria de um melhor relacionamento com Moscou.
Entretanto, os nacionalistas conservadores da Polônia, Tchéquia, Romênia e países bálticos não esquecem as décadas de ocupação soviética e não querem ver os russos nem pintados. Não é difícil ver como uma aproximação entre Washington e Moscou aumentaria a discórdia em Bruxelas, antes mesmo de uma Marine Le Pen ou Frauke Petry chegar ao poder.
Por enquanto, a comichão por discórdia do presidente eleito precisa se satisfazer com Theresa May e seu Reino cada vez menos Unido. Ela foi uma das vozes conservadoras a defender o “sim” à União Europeia no referendo.
Após o resultado negativo, abraçou o “não” para assegurar a lealdade do partido e o apoio da onda populista, mas com a expectativa aparente de um “Brexit suave” com o qual pudesse se livrar dos ônus de pertencer à Europa sem abrir mão dos bônus.
Na terça-feira 17, por fim convencida da impossibilidade de guardar o bolo depois de comê-lo, definiu como prioridades
restringir a imigração e livrar-se das leis europeias, mesmo à custa do livre acesso dos bancos, indústrias e migrantes britânicos ao continente. Foi festejada por uma erupção de chauvinismo nacionalista.
A outrora sóbria BBC juntou-se aos tabloides conservadores para garantir que a Europa sofrerá mais que os britânicos. “O continente está isolado”, como diriam as manchetes vitorianas. Menos triunfalista, o trumpiano chanceler Boris Johnson acusou o presidente francês, que advertiu sobre a restauração de tarifas alfandegárias entre o Reino Unido e seu país, de se portar como comandante nazista de campo de concentração e querer “surrar quem tenta fugir da União Europeia, como em um filme da Segunda Guerra Mundial”.
Ambos os lados têm a perder, é verdade, mas fora do palco os líderes britânicos devem saber que numa colisão entre o Range Rover britânico e o Scania europeu, dificilmente o primeiro levará a melhor. Por isso, tentam agarrar-se ao acordo comercial sugerido por Trump como uma tábua de salvação, mas este reduziria a uma piada a supostamente reconquistada “independência” britânica.
Os EUA exigirão a revogação de normas sociais, ambientais e de proteção ao consumidor que contrariem suas transnacionais e Londres, que teve participação real nas decisões de Bruxelas, não pode esperar influenciar Washington da mesma maneira. Estará em posição análoga à do México, exceto que o Atlântico dispensa a construção de um muro. Em todo caso, não tem como se casar com os Estados Unidos até concluir o divórcio com a Europa, processo que deve levar dois anos.
Enquanto isso, o ainda secretário de Estado John Kerry, ao falar em Davos sobre a possibilidade de Trump romper o acordo com o Irã, provocava risos da plateia ao sair-se com “vai dar dor de cabeça por um ano, dois anos, coisa assim, enquanto esse governo estiver lá”. Um lembrete de que sequer a estabilidade política dos EUA pode ser dada como garantida.
O relatório do espião Christopher Steele sobre as peripécias de Trump e sua equipe do outro lado da antiga Cortina de Ferro é de credibilidade discutível, mas sua elaboração e divulgação mostram haver forças importantes nos dois partidos e nos serviços de inteligência dispostas a aproveitar a primeira oportunidade de abreviar essa experiência de governo. E por mais que se desaprove Trump, a crise de legitimidade e o acirramento da polarização ideológica que se podem esperar de uma tentativa de depô-lo talvez piorem a situação.
As condições que criaram o pandemônio continuam a se acentuar: em 2016, pela primeira vez, a soma das fortunas dos 1% mais ricos superou a dos demais 99% da humanidade e a dos oito indivíduos mais ricos, a de metade do restante do planeta.
Das sumidades de Davos, que nem quando a economia parecia mais previsível e os líderes mundiais menos insensatos não davam mostras de compreender a realidade, não se pode hoje esperar análises e soluções inteligentes agora que esta virou de pernas para o ar. Do País das Maravilhas, Alice passou ao mundo atrás do espelho.
Se há algo de bom no quadro atual, é a vaga possibilidade de a implosão do pensamento único neoliberal abrir espaço à formulação e experimentação de novas ideias a partir dos setores contestadores hoje menosprezados como “populismo de esquerda”, mas, por enquanto, o irracionalismo e a ignorância são donos do cenário.
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Em Davos, o consenso neoliberal fica de pernas para o ar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU