26 Janeiro 2017
“O resultado das últimas eleições nos Estados Unidos é a demonstração mais evidente de que, sem nos dar conta do que estamos fazendo, na realidade temos deixado em pedacinhos a “cultura da igualdade”. E, em seu lugar, estamos introduzindo a ‘cultura da desigualdade’”, escreve o teólogo espanhol José María Castillo, que também adverte: “Não sejamos ingênuos. O caso Trump não é assunto de direitas ou de esquerdas. Trata-se de algo muito mais profundo. É somente o exemplo eloquente de um futuro que nem sabemos onde tem suas raízes, nem podemos saber para onde nos conduz”. O artigo é publicado por Religión Digital, 24-01-2017. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Sabemos que o Papa Francisco disse: “Não gosto de me antecipar aos acontecimentos. Veremos o que Trump irá fazer. Mais uma vez, este papa foi discreto e prudente. Não sejamos “profetas de desgraças”, como sabiamente nos advertiu João XXIII. E assim deve ser. O que ocorre é que o recém-empossado presidente dos Estados Unidos da América já deu a cara suficientemente para deixar claro ao mundo inteiro não o que irá fazer, mas o que já fez.
E o que fez foi colocar em evidência que quase a metade dos norte-americanos – os milhões de eleitores que escolheram Trump – renunciaram (na prática, já que não sabemos se, em teoria, eram conscientes do que faziam) ao “princípio determinante” que inspirou a proclamação da Independência dos Estados Unidos, em 1º de julho de 1776.
Isto quer dizer que, vários anos antes das Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Assembleia Francesa de 26 de agosto de 1789, já nos Estados Unidos se fez a primeira formulação dos direitos do homem. O princípio de igualdade e de participação dos cidadãos ficou assim formulado, em embrião, mas também como ideal de uma nova sociedade e uma nova cultura. Foi o passo decisivo da sociedade submetida ao soberano à sociedade igualitária e democrática.
O que muita gente não sabe é que, nesta mudança, teve um papel importante o influxo positivo da religião. O conhecido estudo de Georg Jellinek, de 1895, apontou isto com clareza.
A ideia democrática, base da constituição da Igreja reformada, se desenvolveu em fins do século XVI na Inglaterra, e isto em primeiro lugar por obra de Roberto Brown e seus adeptos. Para este grupo, a Igreja devia se identificar com a Comunidade em uma comunhão de crentes, mediante um pacto com Deus e submetidos a Cristo. Além disso, reconheciam como norma diretora a Vontade da associação, ou seja, da maioria.
Assim, eram estabelecidas as bases de um ideal de igualdade em dignidade e direitos, que alcançaria sua plena formulação na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948. Desta forma, começou a se implantar, na sociedade moderna, o ideal da “cultura da igualdade”.
Levando em conta isto, o resultado das últimas eleições nos Estados Unidos é a demonstração mais evidente de que, sem nos dar conta do que estamos fazendo, na realidade temos deixado em pedacinhos a “cultura da igualdade”. E, em seu lugar, estamos introduzindo a “cultura da desigualdade”. O que significa o mesmo que dizer: se impôs, novamente, “a lei do mais forte”.
O Papa tem razão – insisto nisso – ao aconselhar discrição e vamos aguardar. Contudo, há coisas que não admitem espera. Há apenas alguns anos, a conhecida historiadora de Antiguidade, María Daraki, disse o seguinte: “A civilização nasceu sob a forma de um grande impulso histórico das técnicas. Coisa que pode confortar a fé do século das grandes realizações tecnológicas. Mas, este enorme salto adiante na história das técnicas provocou a primeira aparição de traços conhecidos desde a antiguidade: acirramento profundo das desigualdades econômicas, hierarquia social vertical, poder despótico.
Sendo assim as coisas, o fato é que, segundo a mesma María Daraky, o processo do qual surge a civilização demonstra que a evolução tecnológica e a evolução social podem se dissociar e, o que é mais grave, podem crescer em direções opostas: a “evolução tecnológica” como progresso, a “evolução social” como degradação.
E assim aconteceu. Até desembocar em um processo imparável de decomposição social que certamente, há alguns anos, não poderíamos imaginar. Por uma razão que se compreende na sequência. A tecnologia cresce de uma maneira imparável. Ninguém coloca em dúvida que o crescimento tecnológico nos traz incontáveis benefícios.
Mas, o que não advertimos é que o progresso tecnológico saiu de nossas mãos e já é imparável. Nem sabemos para onde vai, pois cresce em maior velocidade que o que dá de si a capacidade humana. Com uma consequência que dá medo: o crescimento tecnológico é inseparável do crescimento econômico. Ambos são como vasos comunicantes.
Isto significa dizer que o crescimento tecnológico é dirigido e controlado pelos magnatas da economia. Sendo assim, o presente e o futuro do mundo inteiro, ou seja, de todos nós, estão nas mãos de um número reduzido de magnatas, os grandes poderosos que manipulam a economia mundial. Tendo em conta que a paixão pelo dinheiro é mais forte e determinante que os melhores desejos de justiça, igualdade e fraternidade.
Não sejamos ingênuos. O caso Trump não é assunto de direitas ou de esquerdas. Trata-se de algo muito mais profundo. É somente o exemplo eloquente de um futuro que nem sabemos onde tem suas raízes, nem podemos saber para onde nos conduz.
Neste momento e nesta situação, atrevo-me a dizer que só o Evangelho de Jesus e a força de seu “projeto de vida” poderão potencializar a aspiração de justiça e igualdade que nos parece um sonho ou uma utopia. Certamente por isto, é naquilo que o Papa Francisco centrou seu ideal de vida e sua mensagem que está a força de atração que este homem simples exerce no mundo, sobretudo no mundo dos que mais sofrem e menos meios possuem para continuar vivendo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Temos deixado em pedacinhos a cultura da igualdade”. Artigo de José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU