23 Janeiro 2017
Os depoimentos abaixo são publicados por Página/12, 21-01-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Ernesto Semán, professor de história na Universidade de Richmond
A última coisa que Trump imagina, antes e depois das eleições, é uma mudança profunda. O que parece ter construído, e seu discurso de posse confirma, é uma vasta aliança social e política, porém precária, a partir da qual irá renovar (e não alterar) a legitimidade de alguns elementos centrais da sociedade norte-americana: a distribuição desigual de renda a nível social; a percepção de fortes hierarquias de ordem, especialmente, mas não estritamente, raciais; e a influência maciça do dinheiro como o elemento decisivo no processo político. É um projeto extremamente conservador, mas que inclui muitos aspectos do olhar econômico liberal que dominou a gestão de Obama. Minha impressão, visto o discurso, é que as tensões se concentrarão, especialmente no começo do mandato, entre ele e o Partido Republicano, e as chances que ele tenha de manter essa vasta aliança social e ao mesmo tempo implementar as reformas que ele imagina.
Quanto à frase dita por Trump sobre o quão oneroso é para os Estados Unidos "subsidiar exércitos de outros países", ela deve ser relida quando terminarem as eleições na França e na Alemanha, para que os Estados Unidos vejam qual é a sua margem para manobra. De qualquer forma, as relações com a Rússia demandavam dos Estados Unidos uma reacomodação do papel (e do orçamento) da OTAN, independente do presidente. Hillary Clinton também tinha planos (um pouco diferentes) sobre o assunto.
Trump tem sido muito eficaz em detectar o momento político que lhe oportuniza ser líder: o simples ato de denunciar as elites como oligarquias, ou seja, como um grupo que detém o poder de alguma forma ilegítima e sem a capacidade de representar um interesse geral presumível, demonstra isso. Ele se ergue, muito simbolicamente, enfrentando isso, contra candidatos republicanos e contra Hillary Clinton, que despendem muito mais dinheiro do que ele. Ler o clima geral é provavelmente a chave para a política democrática, além de ser o que o Partido Democrata mais teve dificuldades de enxergar: a enorme demanda por alguém que pudesse denunciar aqueles que gerenciam o destino do país. Utilizando desse fundamento, Trump tenta reconverter em novas bases a legitimidade de muitas das políticas que esses grupos representam. O nacionalismo, nesse sentido, é também uma forma de aproximar a população do processo de tomada de decisões sobre assuntos que lhes dizem respeito.
A recuperação da produtividade que ele anunciou, por outro lado, parece bastante possível. Também é muito possível (quase necessário) intensificar a produtividade da economia norte-americana aumentando a desigualdade, ou seja, que a base do problema, que fez Trump emergir, continue existindo.
Contra tanta raiva existente sobre o populismo de Trump, pela forma em que supostamente ataca a institucionalidade e a continuidade da gestão, deveríamos recordar que tanto a sua campanha quanto o seu governo, que começou ontem, estão justamente construídas sobre instituições ancestralmente liberais e a continuidade mais profunda das elites norte-americanas, começando pelo elogio à riqueza e à primazia dos direitos de propriedade privada sobre qualquer outro elemento da vida social.
Ernesto Calvo, professor de Ciência Política na Universidade de Maryland
Os Estados Unidos são hoje um país profundamente dividido. Dividido de maneira econômica, social, política e territorial. Nas últimas três décadas, os recursos econômicos das suas elites e, portanto, a influência política das mesmas, aumentou exorbitantemente. Ao mesmo tempo, as classes médias e baixas viram sua renda estagnar e sua participação econômica no produto bruto retroceder. A "política de ressentimento", como tem sido chamada, tem tanto bases econômicas, quanto políticas e culturais. Suas bases estão construídas com a desigualdade econômica que tomou de assalto os Estados Unidos a partir dos anos 80.
Nos últimos trinta anos vimos também progressos significativos no que é chamado de "política da identidade". Os direitos dos latinos, a comunidade afro-americana, os imigrantes recentes, a comunidade LGBT, todos ganharam um espaço cultural sem precedentes. Mesmo que a economia seja cada vez mais desigual, a inclusão social e cultural tem enchido de otimismo as comunidades historicamente relegadas. Enquanto o presente é dos ultra-ricos, o futuro foi prometido a um Estados Unidos diverso, multicultural e cosmopolita. O tronco do Trumpismo nos Estados Unidos, portanto, tem suas bases sociais no ressentimento contra a crescente inclusão cultural das minorias.
Nos últimos trinta anos, temos visto também uma crescente diferenciação territorial dos eleitores. O sul e o centro do país estão cada vez mais republicanos. O nordeste e o oeste, comprometidamente democratas. Enquanto a riqueza é concentrada de maneira desmedida pelos ultra-ricos, particularmente sobre as suas costas, as mesmas costas com maior diversidade social e cultural, o sul profundo e o centro-oeste se empobrecem social, cultural e politicamente. Eles são a representação de um passado em que ambas as costas querem se fazer de mortos. Estes distritos do sul e do centro-oeste são os que dão a Trump uma agenda política. Eles são a sua cabeça.
Há 150 anos, Abraham Lincoln pronunciava um de seus discursos mais famosos, que afirmava que "uma casa dividida contra si mesma não poderia perdurar." O equilíbrio de poder entre o sul escravista e o norte "livre" havia atingido o seu ponto de ruptura constitucional. Em 1856, tanto o sul quanto o norte sabiam que o futuro pertencia a uma nação escravista ou a uma nação sem escravos. A crise que divide hoje os Estados Unidos está longe de ter essa profundidade constitucional, mas é igualmente insustentável. O trumpismo, assim como o cesarismo em Gramsci, promete uma revolução cultural para manter a desigualdade e, simultaneamente, devolver aos eleitores brancos o seu status cultural que fora perdido. Não lhes promete dinheiro, mas respeito, o qual será redistribuído a partir das minorias norte-americanas.
Gabriel Puricelli, Analista Internacional do Laboratório de Políticas Públicas
Após o discurso de ontem, se ele fosse membro da OTAN, estaria muito preocupado. Ninguém menos do que o presidente dos EUA disse que seu país está jogando fora dinheiro para proteger outros países que não retornam nada em troca. As consequências podem ser complicadas para a União Europeia, que se esvaece com o Brexit e enfrenta eleições, nas quais o projeto político dos partidos democratas liberais e socialdemocratas, vigente desde o pós- guerra, pode cambalear. Os aliados dos EUA deveriam estar preocupados com a possibilidade de serem abandonados, e aqueles que não são aliados, deveriam estar preparados para lidar com um governo que não terá vontade de administrar tensões de maneira política assim como todos os presidentes desde Richard Nixon em diante tiveram. No caso da China, ontem ficou claro que as tensões bélicas no Mar da China Meridional e no Estreito de Taiwan crescem, particularmente, a níveis de alerta quase vermelho, embora não creia que isso tenha consequências globais.
Trump expôs ontem um discurso tão radical quanto o que utilizou para a campanha. Ele mostrou que não tem nenhum incentivo para moderá-lo, apesar das muitas manifestações de desejo que, nesse sentido, foram expressas a partir de seu triunfo. Ele não atenuou o tom em nenhum aspecto, nem no protecionismo, nem na xenofobia, nem no que diz respeito aos ataques contra as referências dos direitos civis. Demonstrou que não lhe importa nada as reações que provoca. O caso mais eloquente foi quando disse que acabou o momento dos políticos "sem ação", ou seja, que têm atitude de pura conversa fiada, em referência direta à polêmica mantida com o ativista afro-americano e senador da Geórgia, John Lewis.
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As convicções na porta da Casa Branca. Três especialistas opinam sobre o discurso de Trump - Instituto Humanitas Unisinos - IHU