11 Janeiro 2017
Em seus 76 anos de vida, Raimundo Pinheiro Melo suportou inúmeras estiagens prolongadas decorrentes das secas no Nordeste do Brasil. Ele se lembra de todas desde a de 1958. “A pior foi em 1982 e 1983, a única vez que secou o rio”, em cuja proximidade vive desde 1962. “Também foi muito ruim em 1993”, contou à IPS, porque ainda não existia o Bolsa Família nem a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), que contribuem para uma convivência menos traumática com secas como a atual, que já dura cinco anos.
A reportagem é de Mario Osava, publicada por Envolverde, 09-01-2017.
Por meio do Bolsa Família, o governo federal ajuda com dinheiro 13,8 milhões de famílias pobres no Brasil, metade delas no Nordeste. A ASA é uma rede de três mil organizações sociais que promove a coleta de água de chuva, bem como técnicas e conhecimentos para uma vida rural adequada ao clima de chuvas irregulares na ecorregião do semiárido nordestino.
Para Mundinho, como Raimundo é conhecido por todos, e seus vizinhos, a água não é tão escassa devido à proximidade do rio Apodi, que, mesmo quando seca, ainda conserva água para ser extraída nas cacimbas, buracos feitos no leito do rio ou em sua margem. Além do esforço para conseguir água na zona alta onde vive, em uma área rural de Apodi, município do Rio Grande do Norte, ele se dedica a outra tarefa vital para a sustentabilidade do modo de vida camponês no interior semiárido do Nordeste, conhecido tradicionalmente como sertão.
Mundinho é um guardião de sementes crioulas, ou tradicionais. Armazena em garrafas e pequenos barris de plástico sementes de milho, feijões, sorgo, melancia e outras espécies de cultivo local, em uma pequena instalação construída ao lado de sua casa, em meio a uma terra atualmente arenosa e de vegetação seca. Mais de mil dessas casas, ou bancos de sementes, compõem, com a participação de 20 mil famílias, a rede organizada pela ASA para preservar o patrimônio genético e a diversidade dos cultivos adaptados ao clima e ao solo semiárido nordestino.
Guardar sementes é uma velha tradição camponesa, que foi deixada de lado durante a modernização agrícola na chamada revolução verde, iniciada na metade do século passado, e que incluiu uma “ofensiva das empresas produtoras de sementes que diziam ser melhoradas” e das quais os agricultores passaram a depender, recordou à IPS Antônio Gomes Barbosa, coordenador do Programa de Sementes Crioulas da ASA.
Sementes crioulas armazenadas em garrafas plásticas reutilizadas, em uma construção especial erguida em sua propriedade por Raimundo Pinheiro de Melo, um orgulhoso guardião dessas sementes, que colaboram para a segurança alimentar no semiárido do Nordeste brasileiro, em meio a uma seca que já dura mais de cinco anos Foto: Mario Osava/IPS
A estratégia adotada em 2007, de disseminar tecnologias para armazenar água para a produção, buscando a segurança alimentar, levou a ASA a visualizar a necessidade de os pequenos agricultores disporem sempre de sementes, explicou Barbosa, sociólogo de formação. Um estudo com 12.800 famílias revelou que o “semiárido tem a maior variedade de sementes de espécies alimentares e medicinais do Brasil”, destacando uma região em que vivem mais de 25 milhões dos 56 milhões de habitantes no Nordeste, em um país com população de 208 milhões de pessoas.
Barbosa acrescentou que para isso contribuíram a herança familiar e comunitária de sementes armazenadas e “um intenso intercâmbio, promovido por emigrantes que retornaram ao semiárido trazendo sementes de São Paulo e do centro-leste” do país, onde viveram. O que a ASA fez foi identificar os bancos de sementes existentes, articulá-las e promover sua multiplicação, como forma de resgatar, preservar, ampliar existências e distribuir as sementes crioulas, detalhou.
Antônia de Souza Oliveira, ou Antonieta, como é mais conhecida, participa do banco de sementes número 639 nos registros da ASA, na comunidade Milagre, com 28 famílias assentadas na meseta de Apodi, que é cortada pelo rio de mesmo nome. É um banco comunitário, que “conta com 17 guardiões e existências principalmente de sementes de milho, feijões e sorgo”, acrescentou.
A forte presença feminina nas atividades desse assentamento levou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) a escolher Milagre para inaugurar uma linha de crédito para mulheres do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. Um caso exemplar, destacado pela ASA, é o banco de sementes de Tabuleiro Grande, outro assentamento rural de Apodi. Ali, uma iniciativa familiar acumula sementes de 450 variedades de milho, feijões, outras leguminosas e ervas. Antônio Rodrigues do Rosário, de 59 anos, encabeça a quarta geração que mantém esse “banco familiar”.
O movimento de sementes crioulas se contrapõe à lógica da revolução verde, em que as sementes são distribuídas pelo Estado ou vendidas por grandes empresas especializadas, “em grande quantidade, mas pouca variedade”, e a partir de uma produção central. “Não precisamos dessa distribuição, mas de iniciativas locais, com cada território resgatando suas sementes locais, com grande diversidade e disseminação”, pontuou Barbosa.
Trata-se de conhecimento acumulado pelas famílias, com experiências de adaptação a cada localidade, solo e clima, ao tipo de produção desejada e à resistência às pragas. Barbosa observou que, por exemplo, “muitas variedades de milho atendem a diferentes necessidades, uma pode produzir mais palha para alimentar os animais, outra o grão para os humanos”. E acrescentou que “o quintal das casas é um laboratório familiar, onde são feitos experimentos, melhorias genéticas, testadas resistência e produtividade. É onde a mulher mais participa, inclusive ensinando os filhos”.
“Na grande seca de 1982 e 1983, uma variedade de batata de crescimento rápido, que em 60 dias foi reproduzida e guardada por uma avó, salvou muitas vidas”, apontou Barbosa. A permuta de materiais e conhecimentos também faz parte importante da história das sementes crioulas. Ocorre dentro da própria comunidade e nas relações com o exterior. A ASA procura intensificar esse intercâmbio promovendo contatos entre camponeses de diferentes áreas.
“As sementes crioulas são o principal foco de resistência às imposições do mercado. Trata-se de superar a dependência em relação aos grandes fornecedores”, afirmou o coordenador do setor da ASA. A mudança climática aumenta a importância das sementes do semiárido. “Não há veneno agrícola para combater o aumento da temperatura”, ironizou.
O Programa de Sementes do Semiárido comprovou uma “grande capacidade criativa e de experimentação” dos agricultores familiares do Nordeste, ressaltou Barbosa em um diálogo com a IPS, no município próximo de Mossoró. Além disso, existe a tendência à autonomia. “O agricultor segue sua própria experiência, mais do que a orientação do agrônomo, porque escolhe o que é mais seguro para ele”.
Porém, duas ameaças preocupam o movimento referente às sementes da ASA. Uma é a “erosão genética”, que pode ser provocada pela atual seca, que em algumas áreas já dura sete anos. As chuvas isoladas induzem os camponeses a plantar. Sabendo da possibilidade de perder a colheita, nunca usam todas as sementes, mas as vai perdendo pouco a pouco, diante de cada chuva enganosa, com o risco de reduzir suas existências.
Outra ameaça são os transgênicos, rejeitados pelos agricultores vinculados à ASA. Foi comprovada a presença de milho geneticamente modificado em algumas plantações do Estado da Paraíba, que se suspeita ocorre devido ao contágio de sementes trazidas de outras regiões.
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Sementes tradicionais alimentam semiárido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU