28 Novembro 2016
Fidel Castro, formado em instituições educativas jesuítas, rejeitou a Igreja Católica após a Revolução Cubana de 1959 e, por duas décadas, não reuniu com os bispos. Mas depois ele concedeu uma longa entrevista a um frade brasileiro, Frei Betto, e a partir de então deu-se uma proximidade maior entre a Igreja e o Estado cubano – assim como passou haver sinais tentadores de que Fidel estivesse buscando reconciliar-se com sua fé católica.
O comentário é de Austen Ivereigh, doutor em filosofia pela Universidade de Oxford, publicado por Crux, 26-11-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando Frei Betto conheceu Fidel Castro em 1980 na capital nicaraguense de Manágua, os dois tiveram uma longa conversa sobre a liberdade religiosa em Cuba. Esta conversa levou à escrita de um famoso livro, que ajudou a pavimentar o caminho para uma reaproximação entre Igreja e o Estado e, por fim, a visita do Papa João Paulo II.
O livro revelou a complexa relação de Fidel com a religião católica de sua infância, em Cuba da década de 1940, onde, quando criança, estudou com padres jesuítas espanhóis em uma escola privada de elite numa cidade ao sul da ilha, Santiago.
Frei Betto, dominicano simpatizante da Teologia da Libertação e da Revolução Cubana, disse a Fidel em Manágua que o seu Estado comunista tinha, na verdade, três opções: ele poderia ser hostil à Igreja Católica – caso em que ele simplesmente estaria favorecendo o embargo americano imposto ao país –, ele poderia ser indiferente à Igreja ou poderia postar-se em diálogo com as igrejas e outras religiões.
Fidel Castro aceitou que a terceira opção era a certa, e admitiu que não se encontrava com um bispo católico havia 16 anos. Embora o governo revolucionário nunca tivesse rompido com a Santa Sé, ele era, com efeito, um Estado confessional – oficialmente ateu.
No decurso da década de 1980, o líder conduziu lentamente a Revolução em direção ao reconhecimento da presença da Igreja Católica em Cuba, reunindo-se com bispos e permitindo, senão a liberdade religiosa, pelo menos a liberdade de culto.
Quando Frei Betto em 1985 publicou Fidel e a religião, só em Cuba vendeu 1,3 milhão de exemplares e ajudou a estabelecer um novo diálogo sobre a fé na ilha.
O livro revelava que Fidel fora profundamente marcado por uma infância católica e que havia sido criado por uma mãe fervorosa que rezava diariamente e acendia velas aos santos, bem como por tios e tias igualmente devotos.
Aos cinco anos, Fidel foi enviado a Santiago de Cuba por seu pai distante, onde estudou em uma escola dos Irmãos de La Salle (os irmãos lassalistas) e, mais tarde, com jesuítas espanhóis no prestigioso Colegio de Dolores, onde morou e que se tornou para ele numa espécie de família substituta. “Eram pessoas que tinham um grande interesse em seus alunos, em seu caráter e comportamento”, disse Fidel ao Frei Betto. “Eram rigorosos e exigentes”.
A Fidel Castro os jesuítas – pessoas “incomparavelmente superioras”, como ele os descreveu – ensinaram a ter fibra, disciplina e compromisso, traços que mais tarde lhe serviriam bem na Serra Maestra, a cordilheira que durante anos foi usada como base guerrilheira para a preparação à revolução que acabaria por derrubar o ditador Fulgencio Batista.
O livro de Frei Betto mostrou que o rompimento dele com a Igreja era essencialmente de ordem política. Ele considerava a Igreja Católica dos anos 40 e 50 uma instituição socialmente reacionária que defendia a ordem social vigente e que, aos olhos de Fidel, tolerava e justificava as grandes desigualdades e injustiças de sua época.
Contudo, os guerrilheiros que ele liderou na década de 1950 não eram, na maioria, ateus: eles até mesmo tinham um capelão, designado pelo bispo para batizar os bebês nascidos em Sierra Maestra e para enterrar os revolucionários mortos. (O Papa João XXIII inclusive autorizou o capelão, Guillermo Sardiña, a usar uma batina verde-oliva.)
Mas na medida em que a revolução se tornava ateia e comunista, e na medida em que o clero se voltava contra ela, na política binária de Fidel a Igreja era inimiga da revolução. Muito embora, como mais tarde ele insistiria, a revolução nunca fora (diferentemente, digamos, no México) antirreligiosa e nenhum sacerdote fora morto pelo Estado comunista, a repressão impingida foi brutal.
Em 1961, Fidel teve fechada sua antiga escola e os jesuítas foram expulsos do país. O clero foi reduzido a apenas 200 em toda a ilha, e frequentar a missa passou a ser visto como um ato subversivo.
A entrevista de Frei Betto paira constantemente sobre a questão da ruptura de Fidel com o catolicismo, e implicitamente indaga sobre se ele teria sido um revolucionário anticlerical caso tivesse tido a sua formação católica após o Concílio Vaticano II e [após a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano] de Medellín.
Essa pergunta nunca fica, na verdade, respondida. Mas Frei Betto demonstra um Fidel que com uma visão de Igreja essencialmente da década 1950; traz também a animação dele para com os desenvolvimentos ocorridos desde a década seguinte, sobretudo com a tentativa de aproximação da análise social marxista com o Evangelho em alguns ambientes de Teologia da Libertação.
A publicação de Fidel e a religião ajudou a superar parcialmente a profunda hostilidade entre católicos e marxistas, e fez com que os próprios cubanos iniciassem um diálogo sobre fé e revolução.
Após da queda da União Soviética, a Constituição de 1992 declarava que Cuba não era mais oficialmente um Estado ateu e a liberdade de culto foi restaurada. Nas terríveis dificuldades que se seguiram à perda de 5 bilhões de dólares em subsídios soviéticos – ironicamente os cubanos chamam isto de “o período especial” –, a Igreja tornou-se novamente uma presença significativa; o número de clérigos dobrou de tamanho.
Embora Fidel tivesse mantido a Igreja, como todas as instituições da ilha, sob forte controle (os seminários e as casas religiosas em Cuba contavam com grandes parcelas de informantes do governo), ele aos poucos veio a considerá-la um parceiro, em vez de inimiga. Porém jamais se livrou da suspeita de ser o catolicismo um rival, um organismo socialmente conservador com ambições políticas que precisavam ser mantidas em xeque.
Um desenvolvimento importante ocorreu na visita de João Paulo II em janeiro de 1998, pontífice que exortou Cuba a abrir-se ao mundo e vice-versa, pedindo democracia e direitos humanos ao mesmo tempo criticando duramente o embargo americano.
Em sua biografia papal intitulada “Testemunho de esperança: a biografia do Papa João Paulo II” [Bertrand Editora], George Weigel lembra que Fidel, nesta visita, “combinou uma deferência marcante para com o papa juntamente com uma propaganda política antiamericana contínua”, ao mesmo tempo parecendo a alguns observadores “como um homem que queria, de alguma forma, ir ao confessionário, à única pessoa no mundo a quem seu ego lhe permitiria se confessar”.
A visita foi acompanhada por gestos significativos como a libertação de 100 prisioneiros e a restauração do Natal como feriado. Mas a visita fez inicialmente pouca diferença nas relações entre a Igreja e o Estado. Foi só em 2002 que o regime finalmente convidou os 13 bispos da ilha para conversar.
Depois disso, as conversas entre a Igreja e o Estado tornaram-se muito mais fluidas e foram aceleradas a partir de 2008 com Raúl Castro. Aos poucos, a Igreja emergia como o maior agente da sociedade civil e o principal provedor social não estatal em Cuba, conquistando uma autonomia significativa apesar de controles rígidos.
Em tudo isso, a fé pessoal de Fidel permaneceu um mistério. No entanto, abundavam rumores quanto a uma reaproximação do líder com a religião que recebera na infância.
Nas vésperas da visita do Papa Bento XVI, houve rumores de que Fidel estaria procurando um retorno à Igreja. O jornal La Repubblica citou uma figura de alto escalão do Vaticano segundo o qual Fidel estava no final de suas forças e que “neste último período ele se aproximou mais da religião e de Deus”.
O jornal também citou a filha de Castro, Alina, que pareceu confirmar a informação. “Fidel se aproximou mais da religião: ele redescobriu Jesus no fim de sua vida. Isso não me surpreende porque o pai foi criado pelos jesuítas”.
Se Fidel recebeu Bento XVI em 2012, nunca foi tornado público, e não houve rumores de uma conversão quando Francisco encontrou-se com o adoentado Fidel de 89 anos em 2015 durante 40 minutos, num momento informal em que ambos claramente desfrutaram o momento – a julgar pelas fotos divulgadas pelo filho de Fidel, Alex.
Os presentes que o papa deu almejaram claramente ajudar a El Comandante a fazer as pazes com o seu passado. Enquanto o líder cubano deu a Francisco um exemplar de sua entrevista ao Frei Betto, Fidel e a religião, o papa deu a Fidel vários livros, inclusive alguns escritos pelo padre italiano Alessandro Pronzato, cujo primeiro livro (de 1965) intitula-se “As fronteiras da misericórdia”.
O papa também lhe deu um livro e um CD de homilias do padre jesuíta Amando Llorente, sacerdote espanhol que lecionou a Fidel Castro na infância na década de 1940 e que permaneceu em contato com ele mesmo depois de este ter deixado a escola. Llorente estava entre os que Fidel expulsara em 1961, e que, de Miami, revelou certa vez que o líder cubano havia dito que era um pai substituto.
Esse lado mais bondoso e vulnerável de Fidel – o filho solitário que sentia a falta do pai, que se voltava para a piedade de sua mãe enquanto dirigia-se para política revolucionária – raramente foi visto em público, mas talvez Francisco o tenha percebido.
Os presentes do papa eram textos adequados, pode-se dizer, para um homem que olhava em retrospectiva uma vida e uma carreira política caracterizadas por um gênio carismático, mas carente de misericórdia, especialmente para com aqueles que foram vistos como seus opositores.
O progresso da alma de Fidel desde então está, em geral, envolto em mistério, exceto por um artigo tentador – para não dizer divagante – que ele escrevera recentemente para o Granma, jornal comunista oficial de Cuba.
Intitulado “O destino incerto da espécie humana”, o artigo de 9 de outubro observa como “há muito mais qualidades nos princípios religiosos do que os que são unicamente políticos” e que também “muitas das obras artísticas mais inspiradas nasceram de mãos de pessoas religiosas”. Ao notar que as grandes realizações da ciência não excluem teorias do Deus que cria o universo, o artigo de Fidel reconhece a importância das religiões para a humanidade.
O texto mostra pelo menos que a religião era um tema que perpassava seus pensamentos nestes últimos momentos de sua vida.
Ele conclui dizendo que conhece bastante sobre Jesus Cristo pelo que lhe ensinaram as escolas jesuítas e lassalistas, e de como se lembra das histórias bíblicas de Adão e Eva, da Noé e a Arca, bem como “do maná que caía do céu quando pela seca ou outras causas havia escassez de alimentos”.
Eis uma história interessante a se pontuar na Bíblia, sendo um exemplo onde as necessidades do povo não foram satisfeitas pelo livre mercado nem pelo planejamento central socialista, mas pela providência de um criador benigno.
Ele acrescenta: “Tratarei de transmitir em outro momento mais algumas ideias sobre este singular problema”.
Ele jamais tentou, e a fé de suas horas finais irá provavelmente permanecer, para sempre, um mistério.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Como a fé de Fidel permaneceu um mistério até o fim - Instituto Humanitas Unisinos - IHU