27 Outubro 2016
Mantendo uma corajosa promessa de alguns anos atrás, a editora Claudiana finalmente traduziu e publicou a mais recente e já famosa biografia de Lutero produzida pela cultura alemã: Martin Lutero. Ribelle in un’epoca di cambiamenti radicali [Martinho Lutero. Rebelde em uma época de mudanças radicais] [1], de Heinz Schilling, publicada na Alemanha em 2012, que já saiu na quarta edição e foi traduzida em muitos países.
O comentário é de Carlo Papini, ex-diretor da editora italiana Claudiana e doutor honoris causa em Teologia pela Faculdade Valdense de Teologia, de Roma. A resenha foi publicada no sítio Riforma.it, 25-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O nosso professor de história na Faculdade Valdense de Teologia de Roma definiu-lhe: "Um panorama fascinante sobre a vida de Lutero, [que] relança uma interpretação dele como figura-chave na história da reivindicação da liberdade de consciência" [2].
O autor é um renomado historiador alemão, ex-presidente do Verein für Reformationsgeschichte e editor do Archiv für Reformationsgeschichte (para a História da Reforma). Schilling baseia a sua obra em uma vastíssima bibliografia (31 páginas!) e um conhecimento realmente incomum dos escritos de Lutero e dos Discursos à Mesa, que ele cita muitas vezes apropriadamente confirmando as suas descrições.
Também é muito aprofundado o seu conhecimento do mundo político-social e do ambiente cultural da época em que aparece o "meteoro" Martinho Lutero. Ele se considera um historiador independente que faz questão de se diferenciar dos historiadores confessionais, que ele define como "evangélicos". De fato, a sua obra é o que de menos apologético se possa imaginar.
Para ele, a herança que Lutero deixou à modernidade é "a redescoberta da religião e da fé como forças autônomas para o indivíduo e para a sociedade". E acrescenta: "Lutero transformou a generalizada secularização da religião em uma presença fundamental da religião no mundo. O lugar mais importante e principal da fé e da atividade por ela gerada [...] foi a cotidianidade do mundo. Aqui, o cristão individual, assim como a cristandade como um todo, deviam viver a religião e demonstrar a própria fé" (pp. 547-548).
A descrição da vida e da obra de Lutero é particularmente rica em detalhes. Mesmo aqueles que já leram as biografias anteriores de Lutero podem encontrar na obra de Schilling "elementos talvez não ignorados, mas, mesmo assim, muitas vezes deixados de lado" (L. Vogel). Quero indicar alguns.
Muitas vezes, nos perguntamos: por que Lutero escreveu o "duro livreto" contra os camponeses violentos no dia 6 de maio de 1525, quando já tinha se desencadeado a repressão por parte dos príncipes? Não teria sido melhor se ele tivesse se abstido de tomar posição e evitado incitar à violência aqueles que ele realmente não precisava?
Agora, ficamos sabendo com Schilling que Lutero tinha sido informado de que os príncipes da Saxônia hesitavam: Frederico, o Sábio, no leito de morte, tinha exortado "a procurar todos os caminhos com bondade"; o duque João ainda apontava para a negociação, e os condes de Mansfeld pareciam temporizar. Lutero temia que Satanás (Thomas Müntzer) pudesse triunfar sobre o Evangelho recém-descoberto e incitou os príncipes à repressão com as duríssimas palavras que lhe seriam repreendidas por toda a vida.
Um segundo caso é o empenho pessoal de Lutero pela disciplina eclesiástica na Igreja, confirmada pelo episódio (raramente citado) da excomunhão contra a suprema autoridade militar e juiz da corte em Wittenberg, Hans von Metzsch, pela sua vida moralmente escandalosa. Para esse fim, Lutero não pensou em criar um órgão especial (como faria Calvino em Genebra), mas "se valeu novamente da força da palavra pregada e da referência à autoridade secular" (L. Vogel).
Outro aspecto muito positivo da biografia de Schilling é o aprofundamento da concepção luterana sobre a relação entre Igreja e poder temporal: a doutrina dos dois reinos com que Deus governa o mundo. É notável a intuição política de Lutero que consistiu em se apoiar no crescente poder dos Estados territoriais.
Seria possível continuar longamente enumerando as muitas qualidades dessa vasta obra que, no entanto – como qualquer obra humana –, não está isenta de alguns defeitos.
O primeiro é o pouco interesse pelo pensamento teológico de Lutero. Não se fala da sua theologia crucis e da sua evolução ao longo dos anos. Felizmente, a Claudiana está prestes a publicar um "clássico" alemão nessa matéria: "A teologia de Martinho Lutero", de Oswald Bayer, que poderá oportunamente integrar essa biografia.
Outro aspecto criticável é a insistência sobre o Lutero "rebelde" desde o título. Mas rebelde a quem ou a quê? Sergio Rostagno tem razão quando escreve: "Não está claro em que base se pode definir como rebelde um professor que expõe as próprias teorias em polêmica com outros professores e luta pelas próprias ideias" [3].
A insistência na rebeldia de Lutero colore também alguns episódios muito discutidos da sua vida: veja-se o propósito da sua viagem a Roma, onde – de acordo com Schilling – Lutero teria apoiado a posição dos conventos agostinianos rebeldes contra a vontade unitária do prior Staupitz, enquanto, ao contrário, de acordo com uma interpretação mais credenciada, Lutero teria apoiado em Roma a tese do seu afeiçoadíssimo prior.
A caracterização de Lutero como "profeta" desde os primeiros tempos da sua luta, isto é, a sua autoconsciência de ser chamado por Deus para uma batalha final em favor do Evangelho contra Satanás, também deveria ser bastante atenuada. Outros biógrafos demonstram que somente a partir de 1530 é que Lutero expressou essa autoconsciência, enquanto, antes, ele estava na difícil busca do seu caminho.
A esse respeito, Schilling defende que, em outubro de 1517, Lutero teria imediatamente feito o seu tipógrafo imprimir as 95 teses sobre as indulgências "em forma de cartaz" para comunicá-lo ao público (p. 136). Na realidade, "até o dia de hoje não existe uma prova dirimente dessa impressão" (L. Vogel).
Deve-se criticar também a sua tendência de defender que muitas ideias ou reformas de Lutero – por exemplo, o sacerdócio comum dos fiéis – já haviam sido implementadas em ambiente católico (na Devotio moderna). E acrescenta, citando Oberman: "Nem a ‘ascese intramundana’, nem a chamada ética do trabalho protestante que a acompanha eram novas" (p. 22). Entre os chamados "precursores" de Lutero, ele chega a incluir até mesmo a Ordem dos Teatinos, fundada em Roma em 1524 pelo prelado veneziano Gaetano da Thiene, "um grupo de clérigos e de leigos de alta cultura que [...] buscavam formas de existência cristã novas, vivas e sinceras [...], haviam elevado o Evangelho a critério de vida e que pode, portanto, ser considerado como um ‘evangelismo’ italiano" (p. 129)! Uma pena, porém, que a alma desses supostos "precursores" de Lutero fossem aquele bispo Gian Pietro Carafa, que, mais tarde, se tornaria o Papa Paulo IV, o papa inquisidor mais hostil aos protestantes, que encheu as suas prisões de simpatizantes do Evangelho.
Pequenos apontamentos críticos necessários, mas que, certamente, não diminuem o valor de uma grande e bela biografia.
1. H. Schilling. Martin Lutero. Ribelle in un’epoca di cambiamenti radicali. Turim: Claudiana, 2016, 608 páginas.
2. L. Vogel. Studio critico in Protestantesimo, vol. 69/4, 2014, p. 391.
2. S. Rostagno. Doctor Martinus. Turim: Claudiana, 2015, p. 35, nota 4.
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Lutero "rebelde" e "profeta"? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU