Por: Vitor Necchi | 27 Outubro 2016
O Direito tem que dar conta do sofrimento causado por um evento de injustiça social, que sempre tem um local, um aqui e agora. A circunstância histórica não é passageira e determina que a injustiça não é fenômeno abstrato. A narrativa do sujeito que sofre injustiça é singular. “É preciso reconhecer que faz parte da história, nem que seja por meio de um grito”, afirmou a professora Bethania Assy, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, durante a palestra intitulada Ontologia subalterna dos direitos humanos, que proferiu no VII Colóquio da Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e Violência, Governo e Governança e V Colóquio Internacional IHU, realizado na tarde desta terça-feira 25-10, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em São Leopoldo.
A apresentação de Bethania tomou por referência suas reflexões acerca de uma epistemologia do sujeito da injustiça social articuladas no livro The subject of Injustice: Political Action, Law and Empowerment, que está no prelo pela editora Routledge. Ela afirmou que “a narrativa normativa jurídica carrega uma baixa capacidade para apreender o evento concreto de injustiça”. Assim, buscou valorizar o estatuto epistemológico da experiência factual, concreta, de injustiça, ou seja, “marginalização, morte social e invisibilidade política”. Em sua palestra, listou cinco elementos que considera uma estrutura mínima de uma epistemologia da injustiça social, que trata da experiência do evento de injustiça e de seu sujeito.
O primeiro se refere à temporalidade do fenômeno da injustiça. “A injustiça social não pode esperar. A situação concreta de injustiça está inteiramente conectada com o tempo do agora. O fenômeno concreto de injustiça opera uma noção epistemológica da temporalidade com base na urgência, em vez da historicidade progressiva teleológica”, destaca, lembrando que é fundamental distinguir tempo histórico cronológico e progressivo de tempo factual da urgência.
A espacialidade é o segundo elemento de uma epistemologia da injustiça. “O espaço do aqui e agora, do território, do local real, o lugar onde a injustiça concretamente acontece revela seus significados e sentidos”, explica Bethania. “Cada evento de injustiça social é singular e carrega uma dimensão de práxis e espacialidade em pelo menos duas implicações que se imbricam.” No primeiro plano, a fenomenologização da situação de injustiça social, são concretizadas as circunstâncias históricas, materiais e sociais, quando é “denunciada a situação de vulnerabilidade, precariedade e biopolitização da vida”. Bethania enfatizou que esse plano fenomenológico “não pode ser reduzido a um momento passageiro de mera codificação das condições de possibilidade da aplicação abstrata à situação concreta”, pois ele “carrega as próprias condições epistemológicas do evento da injustiça, irredutíveis à aplicação formal dos princípios e normativização de seus procedimentos”. No segundo plano, “na injustiça diante da lei, a materialização da experiência de injustiça é capaz de provocar deslocamentos e inscrições de novos sentidos e significados da injustiça dentro da gramática geral da justiça”. A materialidade da resistência é potencializada pelo espaço da injustiça social.
A narrativa do sujeito da injustiça configura o terceiro aspecto de uma fenomenologia da injustiça. “Cada fenômeno concreto de injustiça carrega uma zona de indiscernibilidade entre facticidade e representação normativa da linguagem”, detalha. “O evento da injustiça reivindica uma narrativa testemunhal da experiência.” Neste sentido, as narrativas abstratas de justiça precisam ser substituídas por estórias, depoimentos, relatos particulares ou coletivos de injustiça. “As narrativas das estórias daqueles que sofreram a injustiça nos permite apreender a singularidade da injúria irrepresentável como uma questão de singularidade irredutível, fora do escopo de uma expressão de uma narrativa abstrata e geral, própria das teorias principiológicas de justiça.” Bethania destaca que uma gramática da injustiça requer que se sublinhe “a força historiográfica de narrativas testemunhais dos eventos singulares, com implicações substanciais para uma abordagem sobre a justiça a partir da perspectiva das experiências concretas de injustiça”.
O quarto elemento de uma epistemologia da injustiça é o dom do amor, que é desvelado pela irrepresentabilidade das estórias singulares de sofrimento e dor irreparáveis de injustiça social. “O amor representa um imperativo urgente da injustiça. Motiva e ativa um processo ilimitado de representações, para além da mera repetição.”
Por fim, o quinto e último componente para uma epistemologia da injustiça é “o outro concreto irredutível da injustiça e a demanda infinita por responsabilidade”. A responsabilidade se desdobra em dois níveis. O primeiro se refere a como cada sujeito responde, “aqui e agora”, ao sofrimento concreto e intolerável do outro da injustiça social. “O segundo nível de responsabilidade corresponde à dimensão coletiva de como cada um de nós reage diante da injustiça, se considerarmos uma concepção não-identitária de pertencimento, ou seja, como membro de uma comunidade sem comunidade, como parte de uma identidade sem identidade.” Bethania chama isso de uma “ética política pós-identitária dos afetos (do amor), um tipo de amor que nos move a responder ao sofrimento do outro por meio de um agir político em conjunto”.
Ao tratar do papel do Direito, Bethania questionou: o que põe fim a uma situação de injustiça? O momento certo é a iminência por justiça, respondeu. E, mesmo reconhecendo os limites do Direito, reafirmou sua crença nesta prática, que ainda dá parâmetros para se buscar reparação no tempo de agora, baseado na urgência.
Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, mestre em Filosofia Política e Social pela Universidade Federal de Pernambuco, mestre e doutora em Filosofia pela New School for Social Research e tem estágio pós-doutoral na Birkbeck Law School, London University. É coordenadora adjunta da Cátedra Unesco (PUC-Rio): Direitos Humanos: Violência, Governo e Governança e do Núcleo de Direitos Humanos (PUC-Rio). Leciona na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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A urgência da reparação da injustiça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU