Por: André | 09 Mai 2016
“Na questão da indissolubilidade do matrimônio, não se pode aduzir ‘a constante tradição da Igreja’. Pela simples razão de que essa ‘tradição constante’ não existiu”, escreve o teólogo José María Castillo, em artigo publicado por Religión Digital, 06-05-2016. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Como é do conhecimento de todos, o cardeal Gerhard Ludwig Müller, prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, disse recentemente, em Madri e Oviedo, que os divorciados recasados estão excomungados. Mas, dado que esta excomunhão não consta no Código de Direito Canônico em vigor, o cardeal precisou sua afirmação fazendo uma distinção entre uma “excomunhão canônica” (que não seria o caso dos divorciados recasados) e uma “excomunhão sacramental”, que consistiria em negar a eucaristia aos divorciados “que vivem uma nova união”. Dessa maneira, o cardeal afirmou exatamente o contrário do que disse o Papa Francisco em sua exortação apostólica Amoris Laetitia (n. 243).
O cardeal Müller, para justificar seu enfrentamento com o papa, disse (segundo informam os meios de comunicação) que ele não é “uma cópia servil do Pontífice, mas (que está no cargo em que está) para servir com sua cabeça”.
Como é lógico, ao fazer esta afirmação – se é que efetivamente Gerhard L. Müller disse o que acabo de dizer – este cardeal não se opõe apenas ao papa, mas também ao Concílio Vaticano II, que expressamente afirma que os bispos, “junto com o seu Chefe, o Romano Pontífice, e nunca sem ele”, são sujeito de suprema potestade na Igreja (LG 22, 3). Do que se segue inevitavelmente que os católicos se veem obrigados, a partir de agora, a organizar as suas crenças e as nossas condutas, não apenas pelo que ensina a Sagrada Escritura, a Tradição e o Magistério, mas também pelo nos diz a cabeça do cardeal Müller.
Confesso sinceramente que tenho dificuldades de acreditar e aceitar que um cardeal da Igreja, que ocupa um cargo de tanta responsabilidade, tenha disto estas coisas. Sobretudo, se tivermos em conta que, em todo este assunto, o que está em jogo é a felicidade ou a desgraça de milhares de famílias, que, por causa de situações muito difíceis e muitas vezes sem culpa de ninguém, têm que suporta danos irreparáveis que se seguem na maioria destes casos.
Além disso, a tudo o que é dito, é importante acrescentar que, na questão da indissolubilidade do matrimônio, não se pode aduzir “a constante tradição da Igreja”. Pela simples razão de que essa “tradição constante” não existiu. Em qualquer estudo, bem documentado, de teologia dos sacramentos, nos é dito que, nos primeiros séculos da Igreja, os cristãos seguiam as próprias condições e usos, no que diz respeito ao casamento, que o entorno pagão. E sabe-se com segurança que esta situação durou assim, pelo menos, até o século IV (J. Duss-Von Werdt, Myst. Sal. IV/2, 411).
Sabemos, com efeito, que no Egito, no século III, alguns bispos permitiam às mulheres que casassem novamente, mesmo ainda vivendo seu marido anterior. Como também é conhecido que Orígenes era da opinião, sobre estes bispos, que “não agiram inteiramente sem razão... para evitar males maiores” (PG 13, 1245-1246). E é do conhecimento de todos que, no século IV, o Concílio de Arlés (ano 314) afirma sobre “os divorciados que se lhes aconselha que não se casem, mas que não lhes seja proibido” (c. 10; cf. H. Crouzel, G. Cereti). Mais, no século VIII, o Sínodo de Verbería (ano 753-756) admite o divórcio e a consequente liberdade para casar novamente (J. Gaudemet).
E o que é mais importante, o Papa Gregório II (ano 726) responde a uma consulta que lhe faz o bispo São Bonifácio que um marido cuja esposa adoeceu e em consequência não pode dar-lhe o débito conjugal, “que case novamente, mas não deixe de ajudar economicamente a que ficou doente” (PL 89, 525). Sabe-se inclusive que o próprio Carlos Magno (venerado como santo em Aachen) repudiou a sua esposa e contraiu novo matrimônio, em 770 e 771 (J. Gaudemet).
E ainda duas indicações importantes. Em primeiro lugar, a teologia dos sete sacramentos, incluindo o matrimônio, não foi elaborada senão em meados do século XII. E, em segundo lugar, quando se fala destes temas, dever-se-ia ter presente que os cânones da Sessão VII do Concílio de Trento, nos quais se afirma o ensinamento oficial da Igreja sobre os sete sacramentos (DH 1600-1630), não são definições dogmáticas e, portanto, não propõem uma “doutrina de fé”. Porque, à pergunta de se o que se condenava eram “heresias” ou “erros”, os Padres conciliares não chegaram a estar de acordo. Por isso, no Proêmio se diz que esses cânones propõem-se “a eliminar os erros e extirpar as heresias” (DH 1600).
Portanto, a partir dos cânones de Trento não é possível concluir pronunciamentos indiscustíveis. E menos ainda, infalíveis. Em qualquer caso, a tão repetida “constante tradição da Igreja” não é tal. Nem a tradição, de que dispomos, justifica excomunhões, nem canônicas, nem sacramentais. A não ser que pretendamos fazer da Igreja um escritório de desprezos e humilhações, que não levarão as pessoas a se unir mais a essa Igreja, mas se afastar mais dela.
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“Müller não se opõe apenas ao Papa, mas também ao Concílio Vaticano II”, afirma José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU