Por: André | 07 Março 2016
O jesuíta Hans Zollner faz parte da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores, criada pelo Papa Francisco. Também dirige, na Universidade Gregoriana de Roma, um centro pioneiro na prevenção e no estudo dos casos de abusos por parte do clero. Mesmo que a comissão tenha muito trabalho pela frente (“para mais 30 ou 50 anos”), garante que já há resultados visíveis.
A entrevista é de Angelines Conde e publicada por Alfa y Omega, 03-03-2016. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Como a Igreja acompanha as vítimas?
'Victims first' (Em primeiro lugar as vítimas). Esta é a principal política. A primeira coisa é ouvi-las e acolhê-las. Foi o que disseram Bento XVI e o Papa Francisco ou a Congregação para a Doutrina da Fé, com sua carta circular a todas as Conferências Episcopais para a preparação das diretrizes com a finalidade de tratar os casos de abusos sexuais.
A prioridade é escutar aqueles que sofreram os abusos de uma forma empática, incondicional, sem preconceitos, sem colocar-se na defensiva e sem tentar negar os fatos. Em muitos casos, isto representa facilitar um caminho que, para algumas destas pessoas, leva a algo que podemos considerar como um início de reconciliação ou cura. Eu conheci pessoas que puderam fazê-lo e foi uma graça.
Para as vítimas, é possível retomar uma vida normal?
Cada pessoa é única. Para muitas depende da resposta recebida ao longo dos anos, porque, às vezes, passaram décadas lutando sozinhas e sofrendo as consequências dos abusos, com transtornos psicológicos, doenças, impossibilidade de trabalhar, pobreza...
Muitas continuam indignadas e é compreensível, sobretudo se seus abusadores não foram julgados, mas, por exemplo, transferidos de paróquia. Chegam a se sentir pessoas rechaçadas que não podem recorrer a ninguém. Outras vítimas encontraram paz, embora uma parte da sua vida continue obscura.
Há um terceiro grupo de pessoas que, por uma série de circunstâncias e por graça de Deus, encontram meios para empreender um caminho verdadeiro, sério e profundo – nem espiritualizante nem idealizante – para atravessar a obscuridade e entrar no sofrimento. Fazem-no com a ajuda de terapeutas e da família, e em muitas ocasiões também assistidas por padres e religiosos. Chegam a encontrar, no meio destas areias movediças, o modo de dar um passo após o outro rumo à confiança arrebatada. Porque o que foi destruído é a confiança: nas outras pessoas, na Igreja... É muito compreensível.
Victims first é agora a linha mestra porque o erro foi deixar as vítimas desamparadas?
Em sua carta aos católicos da Irlanda, Bento XVI assinalou que não só o pecado, mas também o crime foi que, sabendo que existiam estes casos, as vítimas foram deixadas sozinhas, sem ser ouvidas, sem ajuda terapêutica e sem nenhum outro apoio. E em um estado que, para muitas vítimas, é um grande sofrimento – e sobre o qual não se fala tanto –, uma grande solidão espiritual. Porque, para algumas vítimas, a maior ferida é não poder confiar em Deus. Isto as leva a não sentir Sua presença, não poder relacionar-se com Jesus Cristo, não poder rezar, não poder ir à missa, não poder entrar em uma igreja...
Creio que, sobre isto, a Igreja – os responsáveis dentro da igreja – não se dá conta. Algumas vítimas não querem saber nunca mais nada sobre a Igreja, mas outras gostariam de voltar a ter uma relação com Deus. O problema é que não encontram uma resposta. Se faltar a nossa mediação, a retomada da relação com Deus não será possível.
Como se coloca a responsabilidade de cada membro do clero?
Em 2011, a Congregação para a Doutrina da Fé enviou uma circular a todas as Conferências Episcopais solicitando o cumprimento destas medidas, entre as quais se encontra aquela de como tratar os padres acusados, a questão da formação e como se relaciona a justiça canônica com a legislação civil dos Estados. A congregação pede às Igrejas locais para que não trabalhem por conta própria, como se as indicações do Vaticano não fossem aplicáveis para eles. Cada bispo deve transmitir estas diretrizes aos seus responsáveis: vigário-geral, vigário-judicial... e depois, de modo apropriado, a todos os padres e fiéis.
Muitos bispos escreveram cartas pastorais ou dedicaram suas homilias ao tema. Nestas diretrizes, como digo, também se recolhe o procedimento para fazer uma denúncia. Diante de uma acusação ou suspeita, o Direito Canônico indica que se deve iniciar uma investigação preliminar, ao final da qual o bispo ou o provincial deve fazer a denúncia, no caso de haver algum fundamento nesta denúncia. Em seguida, a denúncia é enviada à Congregação e esta decide como proceder.
Obviamente, a Igreja não pode ocupar-se da questão judicial de cada Estado. Na França, por exemplo, existe a obrigação de denunciar civilmente, mas não é assim na Itália ou na Alemanha. Embora isto não signifique que não se deva fazê-lo. Existe uma responsabilidade moral de fazê-lo.
E se chega até o final?
Muitas vezes os bispos fazem denúncias à Congregação de casos que já prescreveram penalmente. Os bispos americanos decidiram que qualquer denúncia contra qualquer padre será levada à Congregação para a Doutrina da Fé, mesmo quando os crimes já prescreveram diante da justiça civil e a Polícia não pode fazer nada. Nesses casos, a Igreja faz mais que os Estados.
Falemos sobre o conceito de accountability introduzido pela Pontifícia Comissão?
Accountability refere-se ao fato de que se um bispo ou superior não denuncia, torna-se corresponsável. Por exemplo, em casos em que havendo conhecimento da comissão de um abuso, o padre abusador foi transferido de paróquia ou centro.
Sobre isto falou o Papa Francisco durante a entrevista coletiva no seu retorno do México para Roma. Também louvou o trabalho de Bento XVI. Por que se desconhece o seu trabalho neste âmbito?
Ele fez muito mais do que se sabe. Em um período muito difícil, iniciou processos canônicos contra abusadores muito conhecidos, como prefeito e depois como Papa. Foi quem endureceu as normas da Igreja. E, evidentemente, Francisco seguiu essa linha. Eu estive presente na reunião que aconteceu na Casa Santa Marta com seis vítimas de abusos. Para muitos, talvez, foi um acontecimento simbólico, mas não devemos esquecer que o papa as recebeu no coração da Igreja, no Vaticano. Eu fui testemunha de como as acolheu, de sua enorme proximidade humana e espiritual para com elas. Está claro que este assunto está no centra das atenções do Papa.
Para onde caminha a comissão?
Até o momento fizemos várias coisas. Por exemplo, fomos convidados por várias Conferências Episcopais para assessorá-las. Eu estive nas Filipinas em agosto passado, onde convocamos 75 bispos durante três dias para falar sobre abusos e prevenção. Convidaram-nos em maio, fomos em agosto e em janeiro instituíram um escritório nacional para a proteção de menores.
Temos, além disso, vários grupos de trabalho sobre vários temas, com propostas como o dia de oração e a liturgia penitencial, porque – repito – é importante o aspecto espiritual no cuidado das vítimas.
Quanto ao aspecto legal, trabalhamos para assegurar que as vítimas, em um processo canônico, possam estar apoiadas. Eu, pessoalmente, sou o responsável pelo grupo de trabalho encarregado da formação dos padres e líderes da Igreja. Também está presente o assunto da prevenção nos colégios. São muitas as áreas de atuação.
Então, têm muito trabalho pela frente.
Sim, há trabalho para mais 30 ou 50 anos.
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“Nossa política é: em primeiro lugar as vítimas”. Hans Zollner, da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores - Instituto Humanitas Unisinos - IHU