Por: André | 12 Fevereiro 2015
Eric Toussaint (foto) tem um aspecto cansativo depois de uma semana bem agitada. No entanto, a mente permanece clara e o entusiasmo intacto: a vitória do Syriza nas eleições gregas abriu um desses parênteses em que a História se acelera e se escreve diante dos nossos olhos. Cientista político, curtido nas questões econômicas, fundador e porta-voz do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), é um observador chave da batalha que se trava entre a Grécia e seus credores, principalmente os Estados do norte da Europa. Atesta-o o interesse despertado por suas intervenções no sábado, em Genebra, durante a Jornada de Reflexão sobre Economia, organizado pelo Le Courrier. Ex-conselheiro do governo equatoriano e do presidente do Paraguai, Fernando Lugo, Toussaint foi também requerido pelo Syriza. Esperando uma eventual implicação, Eric Toussaint não se cala e observa a experiência grega com um olhar de esperança, mas crítico.
Fonte: http://bit.ly/1yaqqwC |
A entrevista é de Benito Pérez e reproduzida pelo sítio do CADTM, 04-02-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Como você analisa os primeiros dias do governo do Syriza no setor econômico?
As primeiras medidas foram tomadas para sanar uma série de políticas injustas, impopulares e nefastas para o país. Concretamente, o governo concedeu a gratuidade da eletricidade para 300 mil domicílios que estavam sem energia elétrica; restabeleceu o salário mínimo legal ao seu nível anterior (751 euros); decretou a readmissão de 3.500 trabalhadores demitidos; dissolveu o órgão criado pela Troika para administrar as privatizações; renunciou à venda dos portos de Pireu e Tessalônica... Em resumo, o governo demonstrou que respeitará o mandato que o povo grego lhe confiou. Só podemos nos congratular por isso.
A composição do governo, com a nomeação de Yanis Varoufakis no posto chave das finanças está de acordo com esse espírito?
Da minha parte, lamento que haja apenas homens entre os dez super ministros, embora várias mulheres figurem como importantes vice-ministras. No plano econômico, se Varoufakis ocupa o primeiro plano, o homem chave é Yanis Dragasakis (vice-primeiro-ministro), que pertence ao setor moderado do Syriza. Este governo é o resultado de sábios equilíbrios. Da minha parte, assinalo a presença muito importante de Giorgos Katrougalos, encarregado da Reforma Administrativa, que inclusive acaba de anunciar a readmissão das pessoas demitidas. Este jurista está, junto conosco, na origem da iniciativa para uma auditoria cidadã da dívida grega.
A nomeação de Panos Kammenos para a Defesa e a aliança do Syriza com o partido de direita AN.El, de qualquer forma, dificultam a aplicação de outras promessas eleitorais, como a vontade de pagar a Igreja e diminuir a vaca sagrada do Exército.
Sim. São duas concessões preocupantes. Há um ano e meio, Alexis Tsipras multiplica as declarações positivas sobre a Igreja, sobre seu papel para enxugar as feridas sociais causadas pela austeridade. E se esquece de recordar a necessidade, para esse grande proprietário de terras, de contribuir muito mais para as finanças públicas.
Quanto à presença de Kammenos na Defesa, está claro que é uma mensagem ao Exército. O Syriza não tocará nele. Ora, o orçamento militar grego é proporcionalmente um dos mais importantes da União Europeia. A Alemanha e a França, que são os principais provedores do Exército grego, zelaram para que os sucessivos governos se limitassem na aplicação da austeridade no Exército. Dito isso, Kammenos tem uma barreira de contenção ao seu lado na pessoa do vice-ministro Costa Ysichos, um greco-argentino ex-membro dos Montoneros, situado à esquerda do Syriza.
Também quero destacar que, apesar da presença em seu seio de um partido com caráter racista, o governo decidiu conceder imediatamente a nacionalidade grega aos filhos e filhas de imigrantes nascidos ou que cresceram na Grécia. No contexto grego é importante, já que o governo anterior havia alimentado a xenofobia. O Syriza nos mostra que sua aliança com o AN.EL limita-se às questões econômicas e que não fará os imigrantes pagarem o preço.
Sobre a questão central da dívida, há vozes dentro do Syriza que propugnam uma moratória nos pagamentos, que deveriam estar indexados ao crescimento.
Se este for o caso, já é uma evolução da posição grega, provavelmente devido às reações muito enérgicas e muito negativas dos diferentes personagens chaves da zona do euro, que deixaram entrever, como muito, um reescalonamento dos pagamentos... A suspensão de pagamentos, assim como a auditoria da dívida, faz parte das armas que, unicamente como segundo recurso, o Syriza poderia usar. A primeira estratégia do governo é reclamar uma negociação e convocar uma conferência internacional sobre todas as dívidas. Também há a vontade de instalar o debate no centro das instituições europeias, repudiando a legitimidade da Troika (Banco Central Europeu, FMI e Comissão Europeia).
As frentes parecem paralisadas. Trata-se de um jogo de ingênuos para aumentar as apostas, ou um diálogo impossível?
Inclino-me pela segunda opção. O Syriza propõe duas coisas elementares: ou mantemos o equilíbrio orçamentário – do que poucos governos europeus podem se vangloriar –, mas repartiremos de forma diferente as cargas, aliviando as que pesam mais sobre as vítimas da crise, e aumentando a dos ganhadores; ou negocia-se o alívio da dívida. Pois bem, para os dirigentes europeus, a dívida é um instrumento para impor as medidas neoliberais de ajuste estrutural que o Syriza justamente decidiu suspender. Nenhum compromisso parece possível. No limite, se o Syriza tivesse dito: continuaremos com o modelo neoliberal, mas vocês devem aliviar a carga da dívida, talvez a União Europeia tivesse aceitado. De fato, a Europa exige que Tsipras renegue sua palavra. Provavelmente, lhe disseram: “Veja o Hollande, ele o fez muito bem antes de você. Faça como todo o mundo, comporte-se normalmente e siga o caminho traçado...”. O elemento mais importante desta semana é que o Syriza já colocou um grão de areia na engrenagem, e isso é decisivo.
De que armas cada campo dispõe para ganhar um pulso inevitável?
Os números ilustram o desafio proposto para 2015. A Grécia deve pagar 21 bilhões de euros em várias casas, acontecendo os principais vencimentos em março e em julho-agosto. Estava previsto, pelo governo anterior e pela Troika, que esta última empreste o dinheiro necessário para que a Grécia possa honrar seus pagamentos, mas com a condição de que continue as privatizações e o resto do plano de austeridade.
Nessa situação, a arma da Grécia é simples: suspender o pagamento. Depois, segundo o meu parecer, o governo grego deveria criar uma comissão de auditoria para determinar que dívidas são legítimas e deverão ser pagas. A auditoria pode dar argumentos de direito para fundamentar uma suspensão dos pagamentos, inclusive de um repúdio de dívidas ilegais, ou seja, contratadas sem respeitar a ordem interna do país ou os tratados internacionais.
Encontrei uma disposição regulamentar da União Europeia adotada em 2013 que obriga todos os países sob ajuste estrutural a auditar sua dívida, com o objetivo de explicar por que a dívida atinge esses montantes e, eventualmente, registrar irregularidades.
Como pode ser ilegítima uma dívida contraída voluntariamente por um governo democrático?
Principalmente pelo fato de que esses empréstimos foram concedidos sob condições abusivas. A Grécia foi obrigada a implementar políticas de contra-reforma social que violavam direitos, assim como uma política de austeridade que destruiu a economia e impossibilitou o pagamento da dívida. Pode-se demonstrar que o governo agiu ilegalmente em benefício de interesses particulares, o que anularia a transação. Uma auditoria da dívida grega é fácil de ser realizada: 80% desta dívida está nas mãos da Troika e remonta, quando muito, a 2010.
Você disse isso, a maioria dos créditos gregos está, então, nas mãos públicas europeias. Não é injusto que o contribuinte europeu pague por isso?
Os parlamentos desses países aceitaram esses empréstimos com pretextos mentirosos. Dizia-se: “É preciso salvar a Grécia, ajudar os pobres aposentados gregos”, quando, na realidade, os governos francês, alemão, belga foram solicitados por seus preocupados bancos que viam como a Grécia já não estava mais em condições de pagar seus empréstimos de alto risco e com juros muito altos. O objetivo de Merkel e Sarkozy era permitir que seus bancos se livrassem dessa dívida sem prejuízos, e ao mesmo tempo aproveitar essa situação para impor medidas antissociais e privatizações. Na realidade, não se tratava de salvar os aposentados gregos; pelo contrário, era preciso reduzi-los! Por conseguinte, se a operação serviu para salvar os bancos credores, a única coisa que os governos devem fazer é compensar o custo da anulação das dívidas com um imposto sobre essas entidades.
Na realidade, as quantias em jogo não são tão importantes para a União Europeia. A ausência de reação das bolsas internacionais demonstra que não há risco sistêmico. O atual bloqueio é antes uma questão ideológica. O risco para a União Europeia é o de criar um precedente, o de um país que poderia permanecer na União Europeia sem aplicar as políticas neoliberais. Fazer com que o Syriza fracasse é uma mensagem enviada aos eleitores cipriotas, portugueses, irlandeses ou espanhóis. Em particular, a estes últimos, que poderiam ser tentados a votar no Podemos dentro de alguns meses.
Concretamente, uma suspensão do pagamento das dívidas significaria a suspensão da ajuda monetária europeia e o aumento vertiginoso, para a Grécia, dos juros nos mercados de capitais. O Estado poderia ficar sem liquidez?
Não, nada indica que o orçamento não seguirá sendo equilibrado. Porque a Grécia não tem necessidade de fundos que, de qualquer maneira, iriam parar em reembolsos. Quanto à parte do financiamento grego obtido nos mercados de capitais, esta é mínima. De qualquer forma, o juro já teve um enorme aumento nos últimos oito dias, antes mesmo que a suspensão tenha sido colocada em marcha.
Quais são as armas que a União Europeia tem à sua disposição para asfixiar a Grécia?
Os bancos gregos vão muito mal, tanto que seus proprietários organizam sua descapitalização, como vimos na Bolsa. No entanto, esses bancos recebem empréstimos do Banco Central Europeu (BCE) para garantir sua liquidez. Penso que o BCE poderia bloquear esses empréstimos com o risco de que se produza uma queda do sistema bancário grego. Diante disso, a Grécia deverá agir rapidamente, expropriar os proprietários das instituições bancárias e transformá-las em um serviço público. Mas isso significaria a radicalização do projeto do Syriza.
Pode o governo grego esperar verdadeiros apoios internacionais?
Evidentemente, dos movimentos sociais. Vimos isso nestas últimas semanas, numerosos movimentos que nunca convocaram para votar em um partido, deram o passo. Esse apoio, especialmente nos grandes países da União Europeia, pode ser importante. Se os grandes sindicatos alemãs, como o DGB ou o Verdi, apoiassem abertamente o Syriza e dissessem ao governo SPD-CDU: “tirem as mãos da Grécia”, isso poderia pesar. Quanto aos Estados fora da União Europeia, podemos imaginar que há governos que apóiam a Grécia com uma ótica oportunista; penso particularmente na Rússia. Se ela emprestasse alguns milhares de milhões a juros muito baixos sem impor condições, isso poderia ajudar a Grécia. Evidentemente, preferiria que fossem outros governos. Há 10 anos, Hugo Chávez teria tomado essa iniciativa. Mas agora a Venezuela não tem capacidade financeira.
Uma questão inquieta muito os economistas: a ruptura preconizada pelo Syriza é ou não é possível sem sair do euro? O que pensa disso?
Bem, vamos ver o que vai acontecer. O Syriza tem uma boa fórmula: “nenhum sacrifício pelo euro”, posto que não vale a pena. O Syriza não tomará a iniciativa de abandonar a zona do euro, já que a maioria dos gregos continua apegada à moeda única. Além disso, uma saída não teria nenhum interesse, exceto em caso de nacionalização dos bancos e do controle estrito dos movimentos de capitais, o que explica as reticências da ala menos radical do Syriza. De forma mais geral, uma decisão como essa aumentaria o nível de conflitividade com a Europa.
O interesse para o governo grego seria poder endividar-se em uma nova moeda nacional com seu próprio Banco Central. Com a condição indispensável de que a população confie nesse novo “dracma”. Poderíamos também imaginar uma reforma monetária redistributiva, com um tipo de câmbio diferenciado de acordo com o volume das transações, com a finalidade de favorecer os menos ricos. Isso já foi feito, por exemplo, na Bélgica ao término da Segunda Guerra Mundial. Também permite lutar contra a inflação (veja-se o quadro “Reforma monetária redistributiva”, ao final desta entrevista).
Pelo contrário, uma desvalorização para tornar as exportações gregas mais atrativas seria arriscada para o poder aquisitivo dos helenos. E significaria permanecer na mesma lógica de competitividade.
Os países da zona do euro não têm nenhum interesse em expulsar a Grécia.
Não, embora pudesse ser um castigo político. Para mostrar o que custa rebelar-se... Mas não existe nenhum mecanismo legal isso.
No contexto atual, as medidas do governo do Syriza são corajosas, mas consistem principalmente em um retorno a uma situação anterior, que não era realmente muito progressista. Existe também esse apelo a um New Deal europeu. Qual é, no fundo, o projeto político do Syriza?
Francamente, faço-me a mesma pergunta. Mas com esse calendário o saberemos nos próximos meses. Até hoje, a opção era retornar a um pouco de Estado social. Está-se muito longe de alcançar a situação anterior! Afora o Syriza, minha preocupação é que a esquerda radical europeia já não projeta uma alternativa de poder fora do marco de um capitalismo regulamentado. Certamente, a relação de forças não é apropriada e a restauração de direitos sociais já é um avanço. Mas foram feitos tantos sacrifícios... O capitalismo mostrou tão claramente para onde nos levava, que realmente teríamos que dar uma chance a um projeto emancipador ou socialista, como o quisermos chamar, sempre e quando acabar com a injustiça social e que a população participe diretamente das opções políticas e econômicas da sociedade. Creio que seria lamentável que todos esses sofrimentos, todos esses esforços terminassem apenas em um capitalismo um pouco regulado. Evidentemente, é preciso realizar essas transformações com o acordo da população, ao seu ritmo. O Syriza foi eleito para restaurar um pouco de justiça social, não com um programa de emancipação. Mas para arrastar a população, é preciso poder apresentar-lhe um projeto, uma perspectiva. E nesse campo há um verdadeiro déficit de reflexão e de elaboração.
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Reforma monetária redistributiva
Uma redistribuição de riquezas também pode ser feita mediante uma reforma monetária apropriada. Sem desenvolvê-la aqui, podemos nos inspirar na reforma monetária belga realizada após a Segunda Guerra Mundial pelo governo belga ou, em no outro extremo do mundo e em outra época, aquela realizada pelas autoridades nicaraguenses em 1985. Um dos objetivos é fazer uma punção especialmente sobre os ingressos daqueles e daquelas que teriam enriquecido à custa dos outros. O princípio é simples: no momento de uma mudança de moeda, por exemplo, um antigo euro por um novo dracma, trata-se de que a paridade automática chegue até um determinado patamar.
Acima desse patamar, a soma excedente deve ser colocada em uma conta bloqueada e sua origem justificada e autenticada. Em princípio, o que excede esse patamar é trocado a uma taxa menos favorável (por exemplo, dois antigos euros por um dracma novo). No caso de origem criminosa confirmada, essa soma pode ser confiscada. Uma reforma monetária desse tipo permite repartir uma parte da riqueza de maneira socialmente mais justa. Outro objetivo da reforma é diminuir a massa monetária em circulação para poder lutar contra as tendências inflacionárias. Para que seja eficaz, é preciso que se tenha estabelecido um controle estrito sobre os movimentos de capitais e sobre os câmbios.
Aqui dou um exemplo – evidentemente, os cômputos indicados podem ser muito modificados após um estudo sério da distribuição da economia líquida das famílias e da adoção de critérios rigorosos.
1 € seria trocado por 1 dracma novo até 200.000 €
1€ = 0,7 dracma novo entre 200.000 e 250.000 €
1€ = 0,6 dracma novo entre 250.000 e 350.000 €
1€ = 0,5 dracma novo entre 350.000 e 500.000 €
1€ = 0,4 dracma novo entre 500.000 e 600.000 €
1€ = 0,2 dracma novo acima de 600.000 €
1€ = 0,1 dracma novo acima de um milhão de euros
Se uma família tem 200 mil euros de efetivo, obterá com a troca 200 mil dracmas novos.
Se tem 250.000 €, obterá 200.000 + 35.000 = 235.000 dracmas novos (D.n.)
Se tem 350.000 €, obterá 200.000 + 35.000 + 60.000 = 295.000 D.n.
Se tem 500.000 €, obterá 200.000 + 35.000 + 60.000 + 75.000 = 370.000 D.n.
Se tem 600.000 €, obterá 200.000 + 35.000 + 60.000 + 75.000 + 40.000 = 415.000 D.n.
Se tem 1 milhão €, obterá 415.000 + 80.000 = 495.000 dracmas novos
Se tem 2 milhões €, obterá 415.000 + 80.000 + 100.000 = 595.000 D.n.
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Syriza: um grão de areia na engrenagem. Entrevista com Eric Toussaint - Instituto Humanitas Unisinos - IHU