28 Outubro 2014
Roma, sob o cuidado do Papa Francisco, nunca deixa de surpreender o mundo. Vindo na esteira de um Sínodo extraordinário sobre a família, um "Encontro Mundial dos Movimentos Populares" está sendo realizado nesta semana pelo Conselho Pontifício Justiça e Paz. Este encontro fascinante visa combater as causas da desigualdade e da exclusão social em todo o mundo, propondo soluções concretas para os problemas crônicos dos sem-terra, sem-teto, e dos desempregados, e para discutir o que deve ser feito a longo prazo para criar um mundo mais justo.
A reportagem é de Randy David, publicada no sítio Philippine Daily Inquirer, 26-10-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Os líderes e organizadores da reunião são o cardeal Peter Turkson, o arcebispo Marcelo Sanchez Sorondo e Juan Grabois. Turkson é o presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz, Sorondo é o chanceler da Pontifícia Academia das Ciências Sociais e Grabois, argentino, além de fundador do Movimento de Trabalhadores Excluídos, é amigo próximo do Papa Francisco. Turkson é uma figura familiar para os observadores do Vaticano. Se Roma estivesse pronta para um papa negro, Turkson poderia ter se tornado papa após a renúncia sem precedentes de Bento XVI. João Paulo II fez dele um cardeal em 2003. Bento nomeou-o presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz em 2009 e membro da Congregação para a Doutrina da Fé em 2010.
O tema deste encontro mundial, que reúne líderes dos setores e comunidades marginalizadas das "periferias" de cinco continentes, é de total interesse desse cardeal de Gana de 66 anos de idade. Turkson é um crítico do pensamento neoliberal e do que ele chama de "idolatria do mercado". Dois anos atrás, ele capturou a atenção do mundo, propondo a criação de uma "autoridade pública global" que iria taxar e regular as transações financeiras globais. Ele e Francisco estão atualmente restaurarando à consciência pública os temas centrais da injustiça estrutural e da emancipação que estavam no topo da agenda da Igreja no Terceiro Mundo durante as décadas revolucionárias dos anos de 1970 e 1980.
Esse período de efervescência política radical tornou o cristianismo o epicentro de uma mistura explosiva de fé e política, precisamente onde o Islã se encontra hoje.
João Paulo II teve de lidar com as complexas realidades de uma Igreja que, em vez de apenas catalisar a busca por justiça, era líder de revoluções sociais contra o imperialismo e os regimes opressivos em todo o mundo subdesenvolvido. Enquanto dava as suas bênçãos para os trabalhadores da Polônia, em sua luta contra a dominação soviética, ele repreendia publicamente os padres da Nicarágua que se juntavam à guerra dos sandinistas contra a ditadura de Somoza e seus patrocinadores norte-americanos. Esta aparente contradição confundiu muitos.
Era um problema que muito assombrava Jorge Mario Bergoglio, o futuro Papa Francisco, quando ele era o jovem superior provincial dos jesuítas da Argentina (1973-1979). Ele foi acusado de cumplicidade no sequestro e tortura de dois de seus irmãos jesuítas que estavam trabalhando nas favelas. Um deles, Orlando Yorio, acusou Bergoglio de abandoná-los, recusando-se a apoiar o seu trabalho com os pobres. Recusando-se a se defender no momento, Bergoglio, por sua vez, trabalhou silenciosamente para a libertação dos dois sacerdotes através de articulações com o ditador Jorge Rafael Videla. As pessoas que o conheciam disseram que ele era crítico da ditadura, mas não conseguiu falar contra ela quando era importante fazer isso.
O trauma desses anos angustiavam o futuro papa, tanto que ele sentiu a necessidade de fazer penitência. Em 2000, quando já era arcebispo de Buenos Aires, ele pediu à Igreja Católica argentina "para colocar vestes de penitência pública pelos pecados cometidos durante os anos da ditadura". Como chefe da Conferência Episcopal Argentina, emitiu um "pedido de desculpas coletivo" pelo fracasso da Igreja em proteger as pessoas das atrocidades da junta militar durante os anos da guerra suja. Esta experiência angustiante parece ter radicalizado Bergoglio. Ele tornou-se crítico do poder do Estado e suas relações com o governo argentino pós-ditadura sob o comando do casal presidencial Kirchner foram tensas.
A questão parece-me inevitável: ao mesmo tempo em que a Igreja dá um testemunho ativo contra a opressão e a marginalização dos pobres, ela vai, necessariamente, encontrar-se desempenhando um papel profético na esfera pública. Não é fácil falar contra qualquer forma de injustiça e exclusão social, sem, em algum momento, sentir-se obrigado a liderar a luta dos oprimidos. Na conferência de imprensa, na véspera do encontro mundial dos movimentos populares, Juan Grabois declarou: "Francisco convoca-nos hoje de novo ...; ele chama os pobres, organizados em milhares de movimentos populares, para lutar, sem arrogância, mas com coragem, sem violência, mas com tenacidade, por essa dignidade que foi tirada de nós, e por justiça social". Essa é uma declaração política que inspira-se fortemente nos recursos de fé religiosa.
Podemos nos perguntar como isso se conciliaria com a mensagem de Bento XVI, de 13 de maio de 2007, para a 5ª Conferência Geral do Episcopado da América Latina e Caribe: "A tarefa política não é competência imediata da Igreja. O respeito por uma laicidade saudável, incluindo o pluralismo de opiniões políticas, é essencial na autêntica tradição cristã".
Em linguagem cuidadosa, Bento define a "vocação fundamental" da Igreja na política em "formar as consciências, ser advogada da justiça e da verdade e educar nas virtudes individuais e políticas". Ele coloca o ônus da luta diária contra a injustiça sobre os fiéis leigos. Será que Francisco, que tem sido um pastor no Terceiro Mundo, tem uma opinião diferente?
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Papa Francisco e os movimentos sociais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU