A Bíblia e as mulheres: um projeto, um desafio. Artigo de Adriana Valerio

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19 Dezembro 2025

"Juntamente com os escritos teológicos, elas constituem o amplo espectro da documentação utilizada para desvendar uma compreensão das Sagradas Escrituras em relação às questões de gênero, incluindo as implicações sociais, eclesiais e políticas associadas. De fato, interpretações baseadas em recepções androcêntricas de textos, por exemplo, ainda são usadas em algumas Igrejas para excluir mulheres de ministérios ou declarar sua inadequação cultual, ignorando a riqueza da Tradição, constituída por um conjunto extremamente diverso de práticas e pensamentos".

O artigo é der Adriana Valerio, publicado por Avvenire, 19-12-2025. 

Adriana Valerio é historiadora e teóloga, ex-professora de História do Cristianismo e das Igrejas da Universidade de Nápoles Federico II coordenadora do Comitê Científico "Bíblia e Mulheres", autora de obras como Il potere dele donne nella Chiesa [O poder das mulheres na Igreja] (Laterza, 2016) e Maria di Nazaret: storia, tradizioni, dogmi [Maria de Nazaré: história, tradições, dogmas] (Il Mulino, 2017).

Eis o artigo. 

Ninguém jamais acreditaria que um projeto tão ambicioso seria concluído, o qual envolveu longos anos de estudo e reuniões, culminando na publicação de 21 volumes em quatro idiomas. Contudo, em 2005, quando essa ideia "maluca" nasceu, percebi que uma incursão cultural no coração da teologia europeia era mais necessária do que nunca para dar voz às muitas mulheres que se dedicavam há anos a diversos campos dos estudos teológicos.

A Sociedade Europeia de Mulheres para a Pesquisa Teológica (ESWTR), que fundei com outras teólogas em 1986, era composta — quando assumi a sua presidência em 2003 — por mais de 600 membros de diversas formações acadêmicas e religiosas. Protestantes (luteranos, batistas, valdenses), veterocatólicos, católicos, ortodoxos e judeus constituíam um caldeirão de crenças, experiências e conhecimentos, com predominância, porém, de estudiosos da Europa central e do norte que pouco conheciam as pesquisas de seus colegas do chamado Sul. Era, portanto, essencial conceber um projeto que destacasse o compromisso de todos e o divulgasse o máximo possível. Por essa razão, com a biblista Irmtraud Fischer, que, antes de mim, também foi presidente da associação europeia, buscamos construir a arquitetura editorial de uma enciclopédia em vários volumes que, graças à chave interpretativa fornecida pela combinação Mulheres e a Bíblia, abrangeria todo o Ocidente cristão e seria publicada não apenas em inglês, a língua predominante em nossas áreas, mas também em italiano, alemão e espanhol.

O desafio consistia em identificar e coordenar um grande número de acadêmicas (e até mesmo alguns homens sensíveis a questões de gênero) para preparar o esboço dos livros; confiar a edição de cada volume a dois colegas, de preferência de diferentes religiões, confissões e áreas linguísticas; organizar conferências em uma universidade europeia para permitir a maior troca possível de conhecimento; e garantir o financiamento das conferências e, sobretudo, das traduções. Cerca de trezentas acadêmicas estiveram envolvidas nos últimos anos em um esforço ecumênico que, acredito, é inédito na história da pesquisa internacional, considerando que acadêmicos da América do Sul, América do Norte, Oriente Médio e Austrália também colaboraram.

A novidade da série, contudo, não residia apenas na sua abordagem interdenominacional e inter-religiosa, mas também na justaposição das abordagens histórica e exegética. A obra, de fato, empreendeu tanto uma releitura exegética do texto sagrado, explorando figuras femininas e os contextos socioculturais e iconográficos, ao mesmo tempo que atualizava o estado da pesquisa, e abriu novos caminhos através do conhecimento da história da interpretação e recepção de textos no contexto dos tempos antigos e contemporâneos.

De certa forma, a série inaugurou o nascimento da exegese feminina, isto é, a interpretação que as mulheres ao longo da história foram capazes de oferecer do texto sagrado, capturando nele todos os elementos de libertação que a instituição eclesiástica havia obscurecido. Daí a importância das fontes arquivísticas, literárias, iconográficas, musicais e artísticas em sentido amplo. Juntamente com os escritos teológicos, elas constituem o amplo espectro da documentação utilizada para desvendar uma compreensão das Sagradas Escrituras em relação às questões de gênero, incluindo as implicações sociais, eclesiais e políticas associadas. De fato, interpretações baseadas em recepções androcêntricas de textos, por exemplo, ainda são usadas em algumas Igrejas para excluir mulheres de ministérios ou declarar sua inadequação cultual, ignorando a riqueza da Tradição, constituída por um conjunto extremamente diverso de práticas e pensamentos.

Em tempos difíceis para a Igreja Católica, onde medos, resistências e preconceitos ainda vêm à tona, destacam-se as corajosas posições do Cardeal Mimmo Battaglia de Nápoles. Ele desejava que esta conferência ecumênica enfatizasse a necessidade do trabalho inter-religioso, que oferece um testemunho de diálogo em tempos de oposição e conflito. E a liturgia ecumênica na conclusão da conferência, preparada pela Pastora Letizia Tomassone e pelo Bispo Gaetano Castello, foi um autêntico testemunho de escuta e respeito, também evidente na meditação da Reverenda Angela Berlis da Igreja Velha Católica de Utrecht.

Mas a conferência não se destinava apenas a ser um momento de autocelebração; acima de tudo, procurava abrir-se à cidade com encontros vespertinos sobre os temas da paz e, sobretudo, da construção de uma sociedade inclusiva fundada numa nova ética das relações humanas. Porque algumas questões fundamentais permanecem sem resposta: a Bíblia ainda tem algo a dizer aos indivíduos, às mulheres, às novas gerações? Pode ser lida como uma mensagem de salvação e libertação para eles? E que impacto tem esta nova consciência da dignidade e do pensamento das mulheres nas nossas Igrejas ainda tão patriarcais? Estas são as questões que também surgiram nos últimos dias, que o Cardeal Battaglia também corajosamente colocou quando enfatizou que a contribuição feminina para a interpretação das Escrituras e a história da salvação não deve ser considerada "adicional, mas constitutiva, indispensável para a compreensão da totalidade da mensagem bíblica". E assim permanece a sua pergunta, que é também a nossa: "Como podemos traduzir tudo isso na vida das nossas comunidades?" Como podemos garantir que a escuta se torne prática, que a reflexão se torne compromisso, que as percepções que emergem se tornem uma jornada compartilhada? Nosso tempo exige uma Igreja que não tenha medo da complexidade, que não se entrincheira na defesa de hábitos, mas que tenha a coragem de acolher a novidade do Espírito, mesmo quando ela rompe com nossos padrões."

Este é o desafio para os próximos anos.

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