Madre Cristina: luta de uma freira contra a ditadura militar

Madre Cristina (Fonte: Reprodução | Youtube)

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05 Dezembro 2025

Há 28 anos, em 26 de novembro de 1997, falecia a educadora e psicóloga Madre Cristina, expoente da luta contra a ditadura militar brasileira.

A reportagem é de Estevam Silva, publicada por Opera Mundi, 26-11-2025.

Madre Cristina foi uma das pioneiras da psicologia social no Brasil, ajudando a fundar os primeiros cursos de especialização na área e criando uma das primeiras clínicas de atendimento psicológico do país.

Seguidora do socialismo humanista e da teologia da libertação, ela escondia em sua clínica os opositores procurados pela ditadura e auxiliava as famílias de presos políticos e desaparecidos. A religiosa foi a fundadora do Instituto Sedes Sapientiae, um dos principais núcleos de oposição civil ao regime e articulador do movimento pela anistia.

Madre Cristina foi militante do Partido dos Trabalhadores e coordenou a mais abrangente pesquisa sobre as violações de direitos humanos cometidas pela ditadura, compilada no livro Brasil: Nunca Mais. Também foi apoiadora histórica do MST e dos movimentos sociais e uma das organizadoras das Diretas Já.

Juventude e formação

Célia Sodré Dória nasceu em 7 de outubro de 1916, em Jaboticabal, interior de São Paulo. Era a primogênita entre as seis filhas de Guiomar Sodré e Pedro Dória. Seu pai era um advogado renomado, de ativa militância política. Ela também era sobrinha do jurista e intelectual Antônio de Sampaio Dória, conhecido por sua firme oposição ao regime de Getúlio Vargas.

A infância de Célia transcorreu em um ambiente de discussões políticas acaloradas, que influenciaram sua visão crítica sobre a sociedade. A religiosidade também foi legada pela família. Assim como seu pai, Célia era uma católica devotada, engajada desde cedo nas ações sociais da igreja.

Aos 10 anos, Célia foi enviada para São Paulo, a fim de estudar no Colégio Des Oiseaux, um tradicional internato feminino mantido pelas freiras da ordem de Santo Agostinho. Concluiu o ensino secundário em escolas de Jaboticabal, retornando depois à capital paulista para cursar o magistério e o ensino superior.

Célia estudou pedagogia e filosofia na extinta Faculdade Sedes Sapientiae, uma das primeiras faculdades de filosofia do Brasil, igualmente mantida pelas freiras agostinianas e direcionada apenas ao público feminino. Ao término do curso, decidiu seguir a carreira religiosa. Ingressou então na ordem das Cônegas de Santo Agostinho, adotando o nome de Cristina, em referência a Jesus Cristo.

A profissão de fé era o meio que Madre Cristina encontrou para se dedicar integralmente às causas sociais. Perfilada aos setores progressistas da Igreja Católica, ela liderou diversas iniciativas para combater o elitismo, o preconceito de classe e o racismo dentro de sua própria ordem religiosa.

Contribuições para a psicologia e militância política

Inicialmente devotada à pedagogia e ao trabalho como educadora, Madre Cristina desenvolveu um crescente interesse pela psicologia, dedicando-se à leitura da obra completa de Sigmund Freud.

Em 1954, após uma viagem de estudos à Europa, ela obteve seu doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). No ano seguinte, mudou-se para a França, a fim de cursar uma especialização em psicanálise pela Sorbonne.

De volta ao Brasil, Madre Cristina fundou um dos primeiros cursos de especialização em psicologia clínica do país. A religiosa ajudou a introduzir o psicodrama e a psicoterapia nas práticas nacionais e se destacou como liderança do movimento pela regulamentação da profissão de psicólogo. Publicou diversos artigos e livros de referência e lecionou por mais de três décadas em cursos de graduação e pós-graduação, formando as primeiras gerações de profissionais da área.

Madre Cristina se consagraria como uma das pioneiras da psicologia social no Brasil. Criticando a abordagem da psicologia tradicional, que se limitava à análise do indivíduo de forma isolada, ela propunha uma ação matizada pelo reconhecimento do contexto histórico e das condições sociais e pelas limitações e condições impostas pelas estruturas de poder.

A preocupação social também seria o alicerce da ação religiosa de Madre Cristina. Partidária do socialismo humanista, ela foi uma das responsáveis pelo giro ideológico operado pela Juventude Universitária Católica (JUC), defendendo a ideia de que Cristo era um revolucionário e que a missão da Igreja era lutar pela transformação do mundo e pela construção de uma sociedade mais justa e fraterna.

O grupo vinculado a Madre Cristina se uniria posteriormente ao núcleo da JUC liderado por Betinho em Minas Gerais, dando origem ao chamado “Grupão” — um dos eixos fundadores da Ação Popular (AP), agremiação da esquerda católica que se destacou pela postura combativa durante a ditadura militar. Madre Cristina, no entanto, criticaria a radicalização da AP ao longo dos anos 60, defendendo que a organização deveria priorizar a construção de um “socialismo democrático e cristão”.

Ao lado de Betinho, Madre Cristina ajudou a articular a inserção da Ação Popular no movimento estudantil. Ela foi uma das principais organizadoras da campanha que levou José Serra, militante da AP, à presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE).

A luta contra a ditadura

Após a deposição de João Goulart no golpe de 1964 e a instauração da ditadura militar, Madre Cristina passou a ser constantemente monitorada pelo regime. Alguns dias após a quartelada, a religiosa foi procurada por Lucas Nogueira Garcez, ex-governador de São Paulo. Ele a informou sobre a vigilância do regime e a aconselhou a deixar o país. A madre se recusou: “Se eles querem me prender, que prendam. Daqui eu não saio”.

Rotulada como “comunista” e “subversiva”, Madre Cristina era alvo constante de ameaças e tentativas de intimidação dos órgãos de segurança. Sofria também com perseguição dos setores conservadores da Igreja Católica. Apesar disso, manteve-se resoluta em sua militância. Denunciava os abusos dos militares, prestava apoio às famílias dos presos políticos e participava das mobilizações contra o regime.

Após a promulgação do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), a ditadura deu início à fase mais brutal da repressão, marcada por prisões em massa, tortura e assassinato de opositores políticos. À época, Madre Cristina mantinha uma clínica que prestava atendimento psicológico gratuito para pessoas carentes no centro de São Paulo. O imóvel seria convertido em um esconderijo para pessoas perseguidas pelo regime.

Além de oferecer abrigo aos opositores da ditadura, a clínica de Madre Cristina era utilizada para sediar reuniões e encontros clandestinos e para armazenar o material utilizado pelas organizações da resistência. A religiosa viabilizava operações para enviar militantes perseguidos para o exterior e intermediava o contato entre foragidos e seus familiares.

Em 1977, Madre Cristina fundou o Instituto Sedes Sapientiae, um centro de formação multidisciplinar voltado à defesa dos direitos humanos, das liberdades civis e das causas sociais. Fundamentado sob os princípios da teologia da libertação, o instituto se consagrou como um dos principais núcleos da resistência civil à ditadura.

O Sedes Sapientiae prestava assistência às famílias dos presos políticos e denunciava a tortura e os desaparecimentos forçados de opositores do regime. O instituto foi o principal organizador da mobilização popular em prol da anistia, sediando congressos e reuniões e convocando diversas manifestações e atos públicos.

A pressão popular levou o regime a promulgar a Lei da Anistia em 1979, permitindo o retorno dos exilados e a libertação dos presos políticos. A legislação aprovada, no entanto, divergia substancialmente das reivindicações iniciais, centrando-se na garantia de proteção legal aos crimes praticados pela própria ditadura.

Tortura Nunca Mais

Nos anos 80, Madre Cristina se filiou ao Partido dos Trabalhadores (PT) e se aproximou das mobilizações operárias e movimentos grevistas. Ela também foi uma das organizadoras das manifestações das “Diretas Já”, ajudando a convocar os comícios em prol da redemocratização.

Atendendo a um pedido do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, Madre Cristina e os pesquisadores do Instituto Sedes Sapientiae realizaram um abrangente levantamento sobre os crimes cometidos pelo regime militar.

Levada a cabo entre 1979 e 1984, a pesquisa resultaria no livro Brasil: Nunca Mais — o mais abrangente dossiê sobre as violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura. O projeto analisou mais de um milhão de páginas de processos da justiça militar, identificando 125 desaparecidos políticos e mais de 1.800 casos de tortura.

Brasil: Nunca Mais se tornaria uma das publicações mais relevantes da história contemporânea, servindo de base para uma série de investigações sobre os crimes da ditadura e subsidiando as ações da Comissão da Anistia e da Comissão Nacional da Verdade.

Madre Cristina permaneceu apoiando ativamente as lutas sociais e os movimentos populares até o fim da vida. Ela ajudou a consolidar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e apoiou a criação dos Centros de Educação Popular, da Comissão Pró-Índio e da Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais (ANAMPOS).

Madre Cristina faleceu em São Paulo em 26 de novembro de 1997, aos 81 anos. Em seu sepultamento, foi homenageada pelos militantes do MST, que organizaram uma marcha pela cidade e fizeram um minuto de silêncio em frente ao Cemitério da Consolação.

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