Sou um teólogo com deficiência. Aqui estão quatro maneiras pelas quais acredito que a Igreja pode ser mais inclusiva. Artigo de David Gayes

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05 Dezembro 2025

"Olhe para Jesus e siga o seu exemplo. Jesus nos dá o mandamento universal de 'amar o próximo como a si mesmo' (Mc 12,31). Ao longo de sua vida, Jesus interagiu com muitas pessoas com deficiência. Ele as encontrou onde elas estavam, afirmando suas identidades e experiências de vida. No entanto, alguém pode perguntar: Jesus não cura corpos com deficiência? O que devemos pensar das narrativas de cura dos Evangelhos?", David Gayes, teólogo e ativista dos direitos das pessoas com deficiência, em artigo publicado por America, 02-12-2025.

Eis o artigo.

Como teólogo com deficiência, vejo o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, instituído em 1992 pelas Nações Unidas e celebrado anualmente em 3 de dezembro, como uma oportunidade para avaliarmos a nossa posição, enquanto Igreja e sociedade, no que diz respeito à valorização das pessoas com deficiência como seres criados à imagem de Deus, com dons únicos e variados. O que os católicos precisam mudar para que as pessoas com deficiência sejam participantes plenos e iguais na nossa sociedade global?

Aproximadamente 1 a cada 4 americanos, e 16% da população mundial, se identifica como pessoas com deficiência. Pessoas com deficiência estão em todos os lugares e abrangem todas as idades, raças, gêneros, orientações sexuais, religiões e classes econômicas. Algumas deficiências, como a paralisia cerebral, são visíveis, mas outras, como a síndrome da fadiga crônica, não são.

As deficiências são documentadas tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, em exemplos como a dificuldade de fala de Moisés (Êxodo 4,10) e o encontro de Jesus com um paralítico (Marcos 2,1-12). Muitos santos católicos eram deficientes, incluindo São José de Cupertino, padroeiro dos deficientes de aprendizagem, conhecido por sua “distração” e relatos de levitação; Santa Kateri Tekakwitha, a freira iroquesa cega do século XVII; e Santa Paulina, que cuidava dos pobres no Brasil e perdeu o braço e a visão devido ao diabetes.

É um momento difícil para pessoas com deficiência nos Estados Unidos. Em julho, o Congresso aprovou um orçamento federal que corta o Medicaid em US $ 911 bilhões nos próximos 10 anos. Isso deixará milhões de pessoas com deficiência, como eu, sem condições de pagar por assistência médica ou por assistentes pessoais que nos ajudem com nossas necessidades diárias de cuidados pessoais, essenciais para vivermos em nossas próprias casas e comunidades.

As pessoas com deficiência, assim como outros americanos que dependem do auxílio do SNAP (Programa de Assistência Nutricional Suplementar), também estão enfrentando incertezas quanto ao futuro do programa e à sua capacidade de comprar alimentos. Além disso, há ameaças de eliminação de proteções de longa data para americanos com deficiência em áreas como educação, moradia e viagens aéreas. Tudo isso faz com que as pessoas com deficiência se sintam descartadas.

Nossa Igreja, por vezes, contribui para essa marginalização. As instituições religiosas foram isentas da histórica Lei dos Americanos com Deficiências (ADA, na sigla em inglês), e 35 anos depois, muitas igrejas permanecem inacessíveis — sem rampas para cadeirantes, intérpretes de língua de sinais para surdos, salas silenciosas para autistas e serviços online para aqueles cujas condições os impedem de sair de casa.

Quando pessoas com deficiência entram em nossas igrejas, podemos nos deparar com sermões capacitistas que usam metáforas como "cegos para a vontade de Deus" ou "surdos à voz de Deus". Também podemos encontrar estranhos bem-intencionados que tentam nos "curar" com orações. A maioria das pessoas com deficiência considera essas tentativas dolorosas, pois partem da premissa de que um componente sagrado e único de nossa identidade não está a favor de Deus e deve ser apagado.

Como afirma Julia Watts Belser, uma rabina com deficiência: “A cura como imperativo promove a suposição… de que corpos e mentes ‘capazes’ são tão obviamente e naturalmente desejáveis ​​que todos deveriam tê-los… que, na verdade, não há outra maneira digna de viver”. Não é de surpreender que a assistente social com deficiência Erin Murphy escreva: “Em um mundo onde muitas igrejas dizem ‘Todos são bem-vindos’, eu me pergunto se isso se aplica a católicos com deficiência como eu”.

A maioria dos católicos com deficiência acredita que fomos criados à imagem de Deus, com nossos corpos com deficiência e tudo mais. E reconhecemos que muitos católicos sem deficiência buscam genuinamente uma Igreja onde as identidades das pessoas com deficiência sejam afirmadas como componentes essenciais da diversidade humana criada por Deus. Como os católicos podem traduzir essa crença em ações que realmente coloquem as experiências das pessoas com deficiência no centro? Tenho quatro sugestões.

Olhe para Jesus e siga o seu exemplo. Jesus nos dá o mandamento universal de “amar o próximo como a si mesmo” (Mc 12,31). Ao longo de sua vida, Jesus interagiu com muitas pessoas com deficiência. Ele as encontrou onde elas estavam, afirmando suas identidades e experiências de vida. No entanto, alguém pode perguntar: Jesus não cura corpos com deficiência? O que devemos pensar das narrativas de cura dos Evangelhos?

Eu diria que a ação de Jesus de curar fisicamente é apenas uma parte dessas histórias, que apresentam uma rica tapeçaria de ministério que pode ser simplificada em excesso pelo nosso capacitismo internalizado. Quando Jesus encontra um cego, por exemplo, os fariseus discutem arrogantemente se a deficiência do homem foi causada por seu próprio pecado ou pelo de seus pais (João 9,2). A resposta enfática de Jesus os interrompe: “Nem este homem nem seus pais pecaram” (João 9,3). Jesus lembra inequivocamente a seus seguidores que as pessoas com deficiência não são erros ou castigos, mas parte da diversidade de Deus, criadas à imagem de Deus.

Jesus ouve as pessoas com deficiência. Depois de perceber que o cego Bartimeu clamava insistentemente por sua atenção e que a multidão o ignorava, Jesus pede aos seus discípulos que o convidem (Mc 10,48-49), forçando os presentes a interagirem com a pessoa que haviam marginalizado e ignorado. Jesus demonstra respeito e autonomia a Bartimeu ao lhe fazer uma pergunta sem julgamentos: “O que você quer que eu faça por você?” (Mc 10,51). Jesus não presume que a necessidade seja uma cura física e só concede a visão depois de ser especificamente solicitado por Bartimeu.

Por fim, não nos esqueçamos de que o corpo de Jesus ressuscitado não teve suas feridas apagadas. O exemplo de Jesus, de encontro, abertura e afirmação, oferece-nos hoje exemplos de como lidar com a deficiência.

Escutem as pessoas com deficiência e aprendam conosco. Passem o microfone. Reservem um tempo para ouvir as pessoas com deficiência em seus próprios círculos — sua família, seus amigos, sua paróquia, sua comunidade. Vamos compartilhar nossas esperanças, sonhos e, sim, nossas feridas em nossa igreja e sociedade. Absorvam a sabedoria de líderes de pensamento com deficiência, como as escritoras Alice Wong (uma luminária que faleceu em 15 de novembro passado), Keah Brown e Judy Heumann, a jornalista católica Madison Chastain, a poetisa Laura Hershey e os comediantes Tina Frimi e Josh Blue.

Lembre-se de que a deficiência é uma cultura própria. As pessoas com deficiência são mais do que um conjunto de condições médicas. Temos nossa própria identidade cultural e devemos ser respeitados como tal. Se você nunca vivenciou a cultura da deficiência, aqui estão alguns recursos para começar.

O Chicago Consortium Bodies of Work se esforça para ser um “catalisador para o desenvolvimento da arte e cultura da deficiência, iluminando a experiência da deficiência de maneiras novas e inesperadas”. A missão do Reel Abilities Film Festival é “exibir filmes feitos por e sobre pessoas com deficiência”. O Instituto Paul K. Longmore da Universidade Estadual de São Francisco é um excelente recurso para promover a cultura e a identidade da deficiência. Eles se concentram em “história e teoria da deficiência, pensamento crítico e construção de uma comunidade mais ampla”.

O Instituto de Teologia e Deficiência está na vanguarda da exploração da teologia e das questões da deficiência a partir de uma perspectiva centrada na pessoa com deficiência. Diversas universidades oferecem atualmente programas de graduação e pós-graduação em estudos sobre deficiência, mas a teologia ainda é pouco explorada nesses programas.

Comprometa-se a dar protagonismo às pessoas com deficiência de forma intencional e regular. Priorizar as pessoas com deficiência e ampliar as nossas perspectivas é um processo contínuo que exige um compromisso consistente e intencional. O progresso está a ser feito, ainda que lentamente. Foi animador ouvir, no ano passado, o Papa Francisco afirmar publicamente o direito das pessoas com deficiência à plena inclusão na sociedade. Os católicos com deficiência também participaram no recente Sínodo sobre a Sinodalidade, reconhecendo que a Igreja também é a nossa casa.

Vamos manter o ritmo e avançar ainda mais. Gostaria de ver a teologia da deficiência como uma disciplina acadêmica oferecida em cursos de graduação e pós-graduação em instituições católicas. Gostaria de ver figuras católicas com deficiência, do passado e do presente, plenamente reconhecidas e debatidas. Precisamos de maior representatividade de pessoas com deficiência em nossas artes e música, e em todas as áreas do ministério — leitores, coroinhas, freiras, padres. E, enquanto trabalhamos individual e coletivamente pela justiça social, vamos colocar as pessoas com deficiência no centro das atenções. Por exemplo, grande parte da nossa energia em prol da justiça social está agora, corretamente, focada nos direitos dos imigrantes. Como consideramos a pessoa com deficiência nesse contexto?

Os católicos não devem deixar que o medo de errar ou de situações constrangedoras seja um obstáculo para incluir pessoas com deficiência em todas as suas ações. Busquemos sempre considerar as pessoas com deficiência em nossos pensamentos, espiritualidade e ações.

Que possamos afirmar que as pessoas com deficiência são feitas à imagem de Deus e que a deficiência faz parte da rica diversidade divina. Que possamos nos comprometer a desmantelar os sistemas de desigualdade que afetam pessoas com deficiência. E que possamos seguir o exemplo de Jesus e trabalhar continuamente por uma igreja e uma sociedade onde as pessoas com deficiência sejam acolhidas.

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