03 Dezembro 2025
"Certamente, o primeiro caminho para a cura dessa chaga chamada clericalismo é recordar de Jesus de Nazaré, tão esquecido por muitos religiosos, o qual nos convoca a destruir os altares imaginários erigidos por nosso ego e por nossas inseguranças e, descalços, pisar o chão empobrecido e verdadeiro por onde pisa o Mestre", escreve Gustavo Mendes.
Gustavo Mendes é graduado em Letras (Português/Inglês), em Filosofia e em Ciências Biológicas. Possui pós-graduação em Psicanálise e em Linguística e Literatura. E é mestre em Filosofia da Ciência, Religião e Cultura.
Eis o artigo.
Vê-se que, nas andanças e travessias humanas, o homem se acostumou à luz intensa que se erradia pelos campos abertos, no entanto, algumas sombras são inevitáveis, sobretudo, depois de se habituar a caminhar sob o sol escaldante diariamente. Nesse sentido, por vezes, somos presenteados com breves momentos de descanso e alívio ocasionados pelas frondosas árvores e pelas gentis flores altas que nos cobrem do calor excessivo. Dessa maneira, valendo-se da metáfora, a Igreja Católica no Brasil parece estar experimentando uma espécie de frondosidade salvadora e que está em marcha por debaixo de uma alameda de eucaliptos: segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a queda do número de católicos, no maior país da América Latina, apresentou desaceleração.
Ainda que continue perdendo membros, essa religião ainda congrega mais da metade da população brasileira, além de ter “freado” um pouco o crescimento desordenado dos evangélicos, que se deu no início do segundo milênio. No entanto, os interlúdios de sombras que nos permitem respirar um pouco passam rápido e, logo em seguida, a Igreja brasileira volta a ser castigada com o calor de nossas jornadas: parece-nos que estamos vivendo tempos em que poucas vezes antes se viu uma chaga tão perigosa à fé da nossa gente, a saber, o clericalismo.
De início, pode-se dizer que esse mal nada mais é que a exacerbação da autoridade clerical, a qual se mostra violenta diante da grande força viva dos leigos que adornam e ataviam as nossas igrejas. Assim, o padre clericalista, na verdade, pode ser visto, do ponto de vista da Psicanálise, como um narcisista que na ânsia de tapar alguma falta, pois é incapaz de lidar com as lacunas e hiatos, que devem ser enfrentados no ministério presbiteral, arma-se por meio de uma frágil armadura, existente apenas em sua mente, que o distancia de sua própria fragilidade e mediocridade, sendo, pois, uma preocupante chaga moral.
Lamentavelmente, essa armadura que camufla mediocridades e faltas começa a ser forjada bem no início, no coração da vida religiosa, isto é, dentro dos seminários. Não são raras as vezes nas quais, ao adentrar por entre as portas dos conventos, casas de formação e seminários brasileiros, assustamos ao reconhecermos como esses ambientes – há exceções – parecem preparar e formar príncipes, e não sacerdotes dedicados e empenhados para lidarem com as mais diversas realidades pastorais em nosso país, desde os interiores isolados até as mais violentas periferias. Em vista disso, observa-se o número assustador de neossacerdotes que se ordenam em missas luxuosas, cobertos dos mais variados e dispendiosos panos e bajulados por toda sorte de gente.
Assim, parece-nos que quanto mais pano, mais camadas de insegurança e imaturidade são cobertas, uma vez que a verticalidade do clericalismo é a prótese da fragilidade. Assim, os seminaristas brasileiros saem dos seminários rumo ao altar cheios de “não-me-toques” e por não terem trabalhado em seu período formativo essa arquitetura narcísica, atuam por meio de uma performance clericalista, a qual se qualifica como uma pretensa autoridade espiritual, no entanto, sabemos, é apenas um modo de defesa contra sua insegurança e o homem que foi “tirado dentre os homens” [Hebreus 5,1] não se constitui mais “em favor dos homens nas coisas que dizem respeito a Deus...” [idem], não obstante, constitui-se em favor de si mesmo, deixando de seguir a Jesus.
Com efeito, eu estou convencido – depois de entrar em contato com o testemunho (ou seria tristemunho?) de vários religiosos e sacerdotes que esse ácido corrosivo se mostra como um dos maiores problemas de nossa Igreja no Brasil, mas por quê? Ora, o clericalismo afeta e viola, geralmente, as pessoas mais indefesas, os sujeitos mais invisíveis e aqueles que, muitas vezes, são tidos como descartáveis em meio às nossas assembleias e pastorais. Digo isto, pois é indiscutível que as grandes infensas e ataques clericalistas se vociferam contras as mulheres e contras os pobres. Nesse sentido, diante desta pergunta (in)oportuna, sejamos sinceros: alguma vez, presenciamos algum chilique clericalista de algum padre para como um rico fazendeiro do agro que frequenta as nossas igrejas em Goiás? Já ouvimos relatos de padres que excederam sua autoridade para com os magnatas da Faria de Lima que frequentam suas igrejas abastadíssimas em São Paulo? A resposta nem precisa ser verbalizada. Desse modo, a atitude clericalista parece reproduzir a mesma lógica condenada por nosso Senhor [Lc 14,12-14], erigindo mais muros e mais separações entre as classes e, sobretudo, afastando os marginalizados e empobrecidos.
Para mais, parece-nos que há algo curioso na dinâmica do clericalismo brasileiro, trazendo fôlego a velhas críticas de outrora, as quais imaginávamos superadas. Isto posto, por anos, criticou-se, às vezes com acentuada crueldade, que bastantes rapazes ingressavam na vida religiosa não por uma vocação, não obstante, almejando mobilidade social e saída de suas carências. Parecia uma leitura encerrada, entretanto, o clericalismo, em seu modo de ser regressivo, devolve e realoca essa suspeita com certa pungência e rigor desconfortáveis. À vista disso, quiçá Paulo Freire estivesse certo: “o sonho do oprimido é, não raro, tornar-se opressor”. Assim, quando a instituição religiosa se transforma em trampolim para títulos, honrarias, poderes excessivos e sinais de distinção, é certo que alguns pulverizam suas vocações em direção a construção de outro projeto, a saber, a autopromoção, a qual se encarna a partir da depreciação e da opressão contra os excluídos e inferiorizados.
Diante disso, mais que um problema reconhecido, o clericalismo se tornou um ácido corrosivo; corrói tudo com que entra em contato: a espiritualidade, a comunidade, a beleza da vocação religiosa e/ou presbiteral e, infelizmente, o próprio Evangelho. Assim, esse mal se assemelha à picada de uma serpente, e bem sabemos de qual jardim ela procede, pois sua expressão não descende da fé, mas da agressiva lógica da dominação e não floresce a partir da intimidade com Jesus, mas se avulta em meio a um projeto de distanciamento, discriminação e autoritarismo que dizima, explora e exclui os pequenos.
Com efeito, lembro-me muito bem da primeira vez em que reconheci, com perfeita nitidez e clareza, os contornos e marcas desse ácido veneno. Após terminar a graduação dupla em Letras, aventurei-me na Faculdade de Filosofia em uma reconhecida faculdade católica de Belo Horizonte. Na esteira desses estudos, um professor, que era sacerdote, doutor e homem viajado, divertia-se em depreciar os pobres, comparava-os desfavoravelmente com os “sofisticados” pobres da Itália, país em que estudara. Ademais, relatava-nos suas falas ridículas e desumanizadas de (des)tratamento e humilhação para com as pessoas simples que lhe estavam subordinadas. Assim, fazendo suas disciplinas, uma espécie de “luzinha” se acendeu em mim: então é isso o clericalismo, pensava eu. A partir daí, eu fiz um voto íntimo: se algum dia eu me tornasse religioso, jamais seria um padre clericalista.
Além disso, o clericalista, em seu desejo desenfreado por reverências, reconhecimentos e títulos não se atenta ao delicado essencial: o modo singelo e marginalizado como o Deus que se fez homem optou por fazer parte de nossa história; preterindo palácios, nasceu numa estrebaria e na hora derradeira, não quis as honras e luxos das autoridades, mas de braços abertos e cravados, morreu ao lado de dois malfeitores. Então, parece-nos ser impossível aproximar-se desse Cristo e continuar nutrindo desejos de autorreferenciação, autoritarismos, vontades de ser obedecido a todo custo e/ou temido. Essa chaga é, no fundo, um lamentável reflexo que reproduz o pior dos homens, isto é, a insegurança inflada e o narcisismo travestido de autoritarismo.
Soluções? Existem e têm como antídoto o bom e velho EVANGELHO! Basta olhar para a memória viva de Jesus e viver sua mensagem, percebendo os lugares por onde caminhou, as pessoas com as quais conviveu, os ensinamentos que proferiu e, sobretudo, a forma como tratou e lidou com as gentes. Nosso povo sofre marcado por inúmeros atravessadores, sejam eles políticos, culturais e, até mesmo, espirituais, assim, é imperioso termos em mente que a mensagem do Reino de Deus não se desenvolve e cresce pela obediência cega, tampouco pela fala mandatória e violenta, mas se ressignifica e se aviva por meio da fraternidade, do diálogo e, sobretudo, da horizontalização carinhosa das tratativas e relações humanas. Certamente, o primeiro caminho para a cura dessa chaga chamada clericalismo é recordar de Jesus de Nazaré, tão esquecido por muitos religiosos, o qual nos convoca a destruir os altares imaginários erigidos por nosso ego e por nossas inseguranças e, descalços, pisar o chão empobrecido e verdadeiro por onde pisa o Mestre.
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