Se a IA substituir os trabalhadores, também deverá pagar impostos?

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24 Novembro 2025

A corrida tecnológica entre os gigantes da indústria e a onda de demissões que anunciaram reacenderam o debate sobre a conveniência de tributar a automação.

A reportagem é de Laura Delle Femmine, publicada por El País, 23-11-2025.

Não pode ser visto nem tocado, mas está a revolucionar os mercados e a atrair investimento. A inteligência artificial (IA) tornou-se objeto de desejo das grandes empresas de tecnologia, que estão a investir somas astronómicas no seu desenvolvimento, impulsionadas por lucros recorde. O outro lado desta febre são as reduções da força de trabalho, com a automação como pano de fundo, anunciadas por multinacionais como a Amazon, a Meta e a UPS, que, aliás, ameaçam estender o impacto das novas tecnologias a outra área: os cofres públicos. Menos pessoas a trabalhar significa menos contribuintes, pelo que surge naturalmente a questão: se as máquinas e os algoritmos substituírem os humanos nos seus empregos, deverão também pagar os impostos que os humanos deixam de pagar?

Os impostos sobre o trabalho, por meio do imposto de renda e das contribuições para a previdência social, são um pilar dos sistemas tributários em praticamente todos os países, e o impacto da automação sobre a base tributária — ou, em outras palavras, a potencial diminuição da receita — não é uma preocupação nova. Em 2019, o ganhador do Prêmio Nobel, Edmund Phelps, propôs um imposto sobre robôs para ajudar a financiar benefícios sociais. Pouco antes, Bill Gates, fundador da Microsoft, uma das maiores empresas de tecnologia do mundo, que possui sua própria inteligência artificial (Copilot), havia sugerido aplicar aos robôs a mesma carga tributária que seria suportada pelos trabalhadores que eles substituem.

“A tendência rumo à automação e à IA pode levar a uma diminuição da arrecadação de impostos. Nos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 85% da receita tributária federal provém da renda do trabalho”, afirma Sanjay Patnaik, diretor do Centro de Regulação e Mercados da Brookings Institution. Ele sugere que os governos abordem “os riscos representados pela IA” aumentando a tributação sobre ganhos de capital, em vez de criar um imposto específico sobre ela, devido às dificuldades em conceber tal imposto e às distorções que ele poderia gerar. O uso repetido do condicional se deve ao fato de que o impacto da IA ​​generativa, aquela capaz de criar conteúdo sob demanda, ainda é incerto, tanto em termos positivos — aumento da produtividade e crescimento econômico — quanto em termos negativos — perda de empregos.

Ainda assim, as previsões são contraditórias. O Goldman Sachs, por exemplo, estima que a IA impulsionará o PIB global em 7% na próxima década; o FMI prevê que ela contribuirá com até oito décimos de ponto percentual anualmente para o crescimento entre agora e 2030. Por outro lado, a Organização Internacional do Trabalho estima que um em cada quatro trabalhadores no mundo, concentrados em países de alta renda, ocupa um emprego com algum grau de exposição à IA, mas, ao mesmo tempo, prevê que a maioria dos empregos será transformada em vez de desaparecer.

“Sabemos que haverá um impacto, mas é difícil quantificá-lo”, confirma Luz Rodríguez, professora de Direito do Trabalho e ex-secretária de Estado do Emprego. “A onda anterior de automação afetou o emprego no meio da cadeia produtiva; a IA generativa está mirando em níveis mais altos, em empregos mais qualificados que exigem pensamento crítico”, resume. “Não estou otimista, mas estou positiva: estão sendo criados empregos que não existiriam sem as novas tecnologias, como moderadores de conteúdo em redes sociais ou mineradores de Bitcoin.”

Daniel Waldenström, professor do Instituto de Economia Industrial de Estocolmo, rejeita a ideia de um imposto específico sobre IA, argumentando que não houve aumento significativo no desemprego, nem mesmo nos Estados Unidos, berço dessas novas tecnologias e na vanguarda de sua implementação. Além disso, ele enfatiza a dificuldade em defini-las com precisão: “O que são automação, robôs ou IA? Um chip, uma máquina humanoide, um aplicativo ou um programa de computador? Nunca conseguiremos defini-las com precisão. Devemos continuar tributando o que já existe: renda do trabalho, consumo e ganhos de capital.”

O Fundo Monetário Internacional (FMI) também entrou no debate. Em um relatório publicado no verão passado, os economistas da organização chegaram a uma conclusão mista: não recomendaram a tributação específica da IA ​​— pois isso poderia sufocar a produtividade e distorcer o mercado — mas instaram os governos a permanecerem vigilantes diante de possíveis cenários disruptivos. Suas propostas incluíam o aumento dos impostos sobre o capital — que vêm diminuindo à medida que a carga tributária sobre o trabalho aumenta —, a criação de um imposto suplementar sobre lucros corporativos “excessivos” e a revisão de incentivos fiscais para inovação, patentes e outros ativos intangíveis que, embora impulsionem a produtividade, também podem substituir empregos humanos.

Carl Frey, professor associado de IA e Trabalho na Universidade de Oxford e autor de How Progress Ends (Princeton University Press, 2025), compartilha uma visão semelhante: ele não apoia um imposto sobre IA, mas reconhece que o sistema tributário se tornou desequilibrado. "Em muitas economias da OCDE, vimos um aumento nos impostos sobre a renda e uma diminuição nos impostos sobre o capital", observa ele. Esse sistema incentiva as empresas a investirem mais em automação do que em tecnologias que geram empregos. "Corrigir esse desequilíbrio é essencial para apoiar as tecnologias geradoras de empregos do futuro."

As recentes movimentações das grandes empresas de tecnologia e a evolução dos sistemas tributários nos últimos anos justificam essa preocupação. A Amazon, por exemplo, anunciou um aumento de 38% nos lucros e investimentos multimilionários em inteligência artificial, enquanto simultaneamente reportou 14 mil cortes de empregos em todo o mundo, 1.200 deles na Espanha. Enquanto isso, as alíquotas do imposto de renda corporativo despencaram na última década nos países da OCDE, de 33% em 2000 para os atuais 25%; a carga tributária para os trabalhadores — imposto de renda e contribuições para a previdência social — diminuiu apenas 1,3 ponto percentual no mesmo período, de 36,2% para 34,9%.

Susanne Bieller, Secretária-Geral da Federação Internacional de Robótica, argumenta que a aplicação de impostos ad hoc decorre de “um problema inexistente”, uma vez que a automação e os robôs “criam novos empregos ao aumentar a produtividade”. Ela alerta que tributar as ferramentas de produção em vez dos lucros das empresas “teria um impacto negativo” na competitividade e no emprego. “Precisamos de incentivos para que as empresas [europeias] utilizem tecnologias como robôs e digitalização para se manterem competitivas globalmente”, conclui. Ela acrescenta: “O mundo enfrenta uma escassez de mão de obra de aproximadamente 40 milhões de empregos por ano (...). Os robôs não podem substituir todos os empregos, mas podem executar determinadas tarefas”.

Desigualdade

Além do emprego, o aumento vertiginoso dos gastos das grandes empresas de tecnologia em IA e a alta de seus preços de ações estão causando preocupação, alimentando temores de uma bolha. Analistas também alertam que o consumo de energia dessas tecnologias é tão alto que sua pegada climática pode anular os benefícios prometidos para o crescimento.

No melhor cenário, os novos empregos criados pela IA poderiam ser “mais produtivos, melhor remunerados e mais acessíveis”, compensando as perdas de empregos e de impostos, prevê Patnaik. No entanto, o risco latente — e muito provável — permanece: o processo não será automático. A criação de empregos pode ser atrasada, profissionais menos qualificados podem ter dificuldades para se adaptar e uma lacuna pode surgir entre países — e dentro deles — e entre os setores produtivos.

Os economistas do MITDaron Acemoğlu e Simon Johnson, já haviam alertado sobre isso em 2023. “Nas últimas quatro décadas, a automação aumentou a produtividade e multiplicou os lucros corporativos, mas não levou à prosperidade compartilhada nos países industrializados”, advertiram em um documento para o FMI. “A tecnologia e a inteligência artificial produzem impactos sociais relevantes para a política. Não podemos permitir o determinismo tecnológico”, afirma Rodríguez. “O debate é necessário e iremos aonde quisermos chegar.”

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