Olhos do poder: Comando Vermelho se espalha nas periferias de Belém e cria outra dinâmica de captação de recursos. Entrevista especial com Aiala Couto

“O fenômeno da interiorização das facções na Amazônia está relacionado à disputa pelo controle das principais rotas do tráfico de cocaína na região”, diz o geógrafo

Foto: O liberal

10 Novembro 2025

Assim como chefes de Estado de várias nações se reúnem para discutir, pela trigésima vez, as metas e possibilidades de enfrentar as mudanças climáticas, na realização da COP30 desta semana, é urgente uma cooperação transfronteiriça para resolver outro problema que acomete os países da Pan-Amazônia: a interiorização do tráfico de drogas na região. Uma cooperação institucional Sul-Sul, defende Aiala Couto, necessita “pensar modelos ideais de desenvolvimento e segurança pública” para a região, com a finalidade de “vencer o crime organizado ou começar a golpeá-lo de forma a fragilizar a atuação dele nesses territórios”.

Na entrevista a seguir, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por WhatsApp, o geógrafo e professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA) explica como ocorreu a interiorização do tráfico de drogas na Amazônia, a articulação de novas facções por meio do sistema prisional e a atuação do Comando Vermelho (CV) nas periferias da região metropolitana de Belém. “O CV no Pará é, nada mais nada menos, do que as facções locais que aqui atuavam e começaram a incorporar a lógica de organização como uma espécie de filial do CV”.

Hoje, sublinha, as facções ampliaram seus negócios e atuam em diferentes atividades ilegais. "O resultado de tudo isso é uma complexidade na interpretação do fenômeno porque ele se conecta com várias outras atividades ilegais, como o contrabando, a grilagem e o garimpo. Essas atividades têm apoio popular e político em alguns lugares, a tal ponto que não se consegue mais diferenciar o que é do narcotráfico e o que não é. Essa é a dificuldade que o Estado tem de enfrentar essa atividade, porque ela se tornou muito mais complexa do que era em função dessa conexão com outras atividades ilegais. Nós as chamamos de atividades ilegais sobrepostas".

A resolução desse problema social, afirma o entrevistado, está relacionada à blindagem das populações tradicionais ameaçadas pelo narcotráfico. “A primeira questão é dar garantias e direitos às populações tradicionais. Essas garantias ocorrem com reforma agrária, titulação de terra quilombola, demarcação de terra indígena, investimento na saúde e educação indígena, com investimento nas atividades econômicas sustentáveis que essas comunidades alimentam, com a proteção do território”, resume.

Na semana passada, a pedido do governador do Pará, Helder Barbalho, o governo federal decretou a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em Belém durante a realização da COP30. A medida, vigente até 23 de novembro, levantou especulações sobre a atuação do CV na capital paraense depois do massacre no Rio de Janeiro, após o confronto aberto entre as forças de segurança pública do Estado e o CV. No momento, segundo Couto, “a maior preocupação especulativa em Belém é o que se diz sobre a recriação do CV porque apareceram pichações do CV e isso chamou a atenção da segurança pública. É a ideia da retaliação. Mas isso não é uma ameaça real. A ameaça maior é a forma como a segurança pública pode lidar com o migrante, com a população que vem de outros estados e até mesmo daqui, em relação ao controle e regulação do território. Isso pode reforçar as diversas formas de violação dos direitos humanos, sobretudo em relação ao racismo institucional, impregnado pelas forças de segurança pública”. 

Aiala Couto (Foto: Arquivo pessoal e PC do Pará | Composição: Klin Gean/CENARIUM)

Aiala Couto é graduado em Geografia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestre em Planejamento do desenvolvimento pelo Núcleo de Altos estudos Amazônicos (NAEA), e doutor em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (PPGDSTU-NAEA-UFPA). É coordenador e pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB-UEPA). Pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Rede de Observatórios em Segurança. É sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP). Foi consultor do Escritório das Nações Unidas Sobre Crimes e Drogas (UNODC) na pesquisa Crimes Conexos na Região de Garimpo no Vale do Tapajós em 2023.

Confira a entrevista.

IHU – Como ocorreu o processo de interiorização das facções na Amazônia?

Aiala Couto – Isso é resultado de uma mudança na dinâmica de mercado no território brasileiro, quando o Primeiro Comando da Capital (PCC) passa a monopolizar a chamada rota caipira. Isso força o CV a deslocar as estratégias para a região Norte, para poder ter acesso à cocaína mais barata. Só que naquele contexto, já existia uma facção criada no Amazonas, a Família do Norte (FDN), em 2007. Naquele ano houve a tentativa de criar uma facção no Pará, o Primeiro Comando do Norte (PCN), que acabou fracassando porque as principais lideranças acabaram investigadas e presas.

A Família do Norte entendeu que o Brasil dependia da cocaína que atravessava o Amazonas e o CV fez uma aliança com a Família do Norte, contra o PCC. Essa aliança se dá em 2016, mas, no ano seguinte, há um rompimento. Antes disso, já havia sido realizada uma aproximação do CV com os grupos locais do Pará, sobretudo a partir de 2012. A aproximação se deu dentro do sistema prisional, quando três traficantes do Pará foram transferidos para o Presídio de Mossoró e batizados pelo CV. A partir daí, o CV entra na região Norte, com essa aliança no Pará, e passa a haver uma disputa entre o CV e a Família do Norte no Amazonas, e o CV e o PCC em alguns municípios, sobretudo no sudeste paraense e outros estados. Há o enfrentamento dessas facções por grupos locais, que começaram a resistir, embora alguns tenham sido absorvidos.

Interiorização do tráfico

Então, o fenômeno da interiorização das facções na Amazônia está relacionado à disputa pelo controle das principais rotas do tráfico de cocaína na região. Quem começa esse processo é o CV e, posteriormente, o PCC.

A grande questão a destacar é que o período em que a organização do narcotráfico começa a ser alterada na região amazônica, com a chegada de facções criminosas, coincide com o governo de Jair Bolsonaro. O governo do Bolsonaro foi estratégico para a organização do crime organizado na região porque foi quando ocorreram várias intervenções na Polícia Federal, no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). As interferências daquele governo fragilizaram essas agências do ponto de vista institucional. Inclusive, agências que tratavam da proteção dos territórios indígenas tiveram dificuldades de fazer o seu trabalho. Foi nesse momento que o crime organizado encontrou uma brecha para poder ampliar as relações com outras atividades ilegais, a exemplo do garimpo.

O garimpo era uma atividade econômica defendida pelo presidente. O narcotráfico entra no garimpo e passa a atuar nas atividades ilegais ligadas à exploração ilegal de madeira e atividades ligadas à grilagem. Essa situação também está relacionada à não demarcação de terras indígenas e à titulação de terra quilombola. Ou seja, toda essa fragilidade e toda essa precarização nas políticas voltadas para as populações da Amazônia foram incorporadas pela dinâmica do crime organizado.

O resultado de tudo isso é uma complexidade na interpretação do fenômeno porque ele se conecta com várias outras atividades ilegais, como o contrabando, a grilagem e o garimpo. Essas atividades têm apoio popular e político em alguns lugares, a tal ponto que não se consegue mais diferenciar o que é do narcotráfico e o que não é. Essa é a dificuldade que o Estado tem de enfrentar essa atividade, porque ela se tornou muito mais complexa do que era em função dessa conexão com outras atividades ilegais. Nós as chamamos de atividades ilegais sobrepostas.

IHU – Como o narcotráfico tem reestruturado os territórios em Belém? Em que locais da cidade o CV está atuando e como tem se organizado?

Aiala Couto – Em Belém houve uma evolução desse processo. Num primeiro momento, começou com as gangues. Depois, elas foram incorporadas pelo tráfico de drogas e viraram equipes. Depois, facções locais, e, a partir de 2012, começa a aproximação com o CV.

Em 2014, houve uma tentativa de entrada do PCC, que não deu certo e que culminou com uma ação policial numa chacina. Nesse contexto, o CV aproveitou para entrar na região. Portanto, o CV no Pará é, nada mais nada menos, do que as facções locais que aqui atuavam e começaram a incorporar a lógica de organização como uma espécie de filial do CV. 

Por que o CV escolheu o Pará? Porque o Pará era o estado mais estratégico para poder fazer frente à força da Família do Norte no Amazonas. O Amazonas é a porta de entrada e a grande área de trânsito do narcotráfico em direção aos mercados europeu, africano e brasileiro.

O CV se espalha dentro das periferias de Belém dentro da lógica de organização de controle territorial não armado – no Rio de Janeiro tem morro, aqui não tem –, mas com a ideia de ter os olhos do poder: de quem enxerga e observa o movimento, coopta a juventude em situação vulnerável, estoca comerciantes, controla pontos de mototáxi e transportes alternativos clandestinos. A partir daí, o CV cria outra dinâmica de captação de recursos, para além da venda de drogas: um sistema de monitoramento da população, com taxa do crime, com controle do serviço de internet etc.

IHU – Qual é o poder de atuação das redes de narcotráfico na região metropolitana de Belém? Há relação com o poder institucional?

Aiala Couto – Na região metropolitana, o tráfico é controlado pelo CV porque a região metropolitana tem relação com o Porto de Vila do Conde, pela chamada rodovia da Alça Viária [rodovia PA-483]. Isso, por si, já coloca a região metropolitana num plano estratégico para a atuação dessas facções na dinâmica do mercado de exportação, mas, ao mesmo tempo, esse controle ocorre nas periferias. Esta é uma realidade das cidades metropolitanas. 

Sobre a relação do tráfico com o poder institucional, não tenho dados, mas uma coisa posso dizer: no município de Ananindeua, o primeiro depois de Belém na região metropolitana, vereadores eram ligados ao tráfico de drogas. Inclusive, um deles foi assassinado. Isso já mostra alguma coisa. Tem indícios de um vereador, em outro município próximo à região metropolitana, que foi eleito com o apoio do tráfico. Isto demonstra a estratégia do crime de se infiltrar nas estruturas institucionais, com cargos políticos eleitos de forma democrática, mas com apoio financeiro do tráfico de drogas.

IHU – Na sua tese doutoral, você usa o termo “narcossobreposição” para se referir a territórios sobrepostos pelo narcotráfico e as narcomilícias. Como esses grupos se relacionam e se contrapõem em Belém?

Aiala Couto – O termo “narcossobreposição” foi utilizado no contexto em que elaborei a tese porque naquele momento a realidade era essa, como descrevo no livro Periferias sob vigilância e controle (Periferias Editora/Mórula Editorial, 2020). Estou reescrevendo esse livro com uma perspectiva mais atual, a partir da atuação do CV. Isso porque, à época, havia uma sobreposição entre grupos locais, a milícia e o Estado, com as forças de segurança pública, e as milícias e as forças de segurança pública, contra o tráfico.

Como funcionava? Existia uma prática de distorção da milícia em relação ao tráfico de drogas. Não tinha o CV ainda. Quando o CV entra em Belém, começa uma perseguição aos grupos milicianos. Tanto é que bairros que a milícia ocupava foram tomados pelo CV, a exemplo do Guamá, bairro periférico de Belém, onde a milícia era hegemônica. O CV tomou essa região da milícia, matando as principais lideranças do grupo miliciano. Isso quer dizer que a milícia perdeu força em Belém e o CV avançou. Logo, essa proposta da narcossobreposição já não serve para os dias atuais.

IHU – Depois do massacre da Operação Contenção no Rio de Janeiro, especialistas em segurança pública e o governo estadual divergiram sobre o modo mais efetivo de realizar tanto a segurança pública quanto o enfrentamento ao tráfico de drogas. No caso da Amazônia, que tipo de políticas de segurança pública são desenvolvidas e que questões centrais estão em discussão sobre o modo de enfrentar esse problema?

Aiala Couto – A primeira questão é dar garantias e direitos às populações tradicionais. Essas garantias ocorrem com reforma agrária, titulação de terra quilombola, demarcação de terra indígena, investimento na saúde e educação indígena, com investimento nas atividades econômicas sustentáveis que essas comunidades alimentam com a proteção do território. Esse é o primeiro movimento porque blinda as populações tradicionais de sofrerem ameaças do narcotráfico. 

O segundo movimento é pensar quais modelos são estratégicos para a superação das desigualdades, da violência e da pobreza na região amazônica, envolvendo a população dentro de uma perspectiva de bem-viver que garanta a justiça social e ambiental. O modelo de desenvolvimento que está posto aí é um modelo de "des-desenvolvimento" porque gerou violência, violações de direitos territoriais e direitos humanos, desigualdades, pobreza, miséria e muitos crimes ambientais. Ou seja, ele não é sustentável. Esse é um caminho, mas temos que pensar outras coisas.

Por exemplo, até que ponto o encarceramento em massa da população vem dando resultado positivo ao combate ao tráfico de drogas? O sistema prisional foi responsável por fortalecer a atuação das organizações criminosas, inclusive em escala nacional, porque é no presídio que elas fazem alianças ou incorporam pequenos grupos ao seu domínio e à sua relação, o que contribuiu para difundir esses grupos para todo o Brasil. O endurecimento à lei penal em relação ao tráfico não está dando jeito. 

Outra questão: será que a política proibicionista está dando resultado? O proibicionismo foi uma invenção das grandes potências e tem um caráter racial quando se fala de guerra às drogas, de cancelamento de uma juventude pobre, preta, parda, indígena e de baixa escolaridade. Isso tudo não tem dado resultado porque o crime organizado tem que ser olhado na sua amplitude, na sua estrutura, na base da sua organização interna, mas também na sua superestrutura, ou seja, a partir dos grandes que financiam essas articulações em rede.

IHU – Você tem defendido a urgência da cooperação institucional entre os países da Pan-Amazônia no enfrentamento ao narcotráfico na região. Como esse trabalho conjunto poderia ser realizado?

Aiala Couto – A cooperação institucional Sul-Sul é necessária para se pensar quais modelos ideais de busca pelo bem-viver devem ser aplicados de forma conjunta nos países da América do Sul que têm a Amazônia. A Amazônia brasileira tem problemas, mas a Amazônia equatoriana, boliviana, peruana e venezuelana também tem os mesmos problemas, mas com dimensões diferentes. Há necessidade de uma política integrada de cooperação transfronteiriça, envolvendo os países da Pan-Amazônia para se pensar modelos ideais de desenvolvimento e segurança pública. Só assim vamos conseguir vencer o crime organizado ou começar a golpeá-lo de forma a fragilizar a atuação dele nesses territórios.

IHU – Quais especulações e preocupações têm surgido em Belém depois da Operação Contenção no Rio de Janeiro, tendo em vista a realização da COP30 nesta semana?

Aiala Couto – A maior preocupação especulativa em Belém é o que se diz sobre a recriação do CV porque apareceram pichações do CV e isso chamou a atenção da segurança pública. É a ideia da retaliação. Mas isso não é uma ameaça real. A ameaça maior é a forma como a segurança pública pode lidar com o migrante, com a população que vem de outros estados e até mesmo daqui, em relação ao controle e regulação do território. Isso pode reforçar as diversas formas de violação dos direitos humanos, sobretudo em relação ao racismo institucional, impregnado pelas forças de segurança pública.

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