01 Novembro 2025
“Em meio às divergências, a realidade vem nos demonstrando que, mesmo que o ressentimento não seja o grande culpado pelas escolhas políticas das bases de sustentação da extrema-direita, está ficando cada vez mais nítido que o discurso mobilizado pela propaganda autoritária de direita tenta promover e manipular essa ideia de diferenciação a partir do discurso dominante do direito”, escreve Joana Borges, historiadora e psicanalista, em artigo publicado por Brasil de Fato, 23-10-2025.
Eis o artigo.
Em meio às crises que as democracias liberais vêm atravessando, em que economia e geopolítica se entrelaçam internacionalmente com o crescimento de figuras ligadas à extrema-direita, muitos analistas políticos seguem buscando respostas para tentar explicar o que tem nos levado a abismos sociais de polarização política nos últimos anos. Não é difícil encontrar artigos em jornais nacionais ou internacionais, ou mesmo produções bibliográficas mais densas, que apontem para um aspecto psicologizante nesse processo. O ressentimento vem sendo trabalhado como um motor próprio de um segmento político, explorado pelas figuras autoritárias e pelos discursos mais extremistas.
Embora seja difícil trabalhar emoções ou subjetividade dentro de um contexto social tão abrangente, nos últimos anos as pesquisas de opinião vêm tentando traduzir, por meio de levantamento empírico e análise de dados, indicadores que possam sustentar o argumento de que existe, sim, uma legião de ressentidos que se voltam contra as políticas democráticas e de promoção de igualdade — e que isto poderia ser um dos elementos da base de sustentação da política de presidentes como Bolsonaro ou Trump.
A obra de Karl Marx, embora comumente associada a uma elaboração no plano dos modos de produção, é, acima de tudo, uma teoria da história. Uma das questões mais centrais de sua elaboração versa sobre a ideologia, em que poderíamos tentar extrair qual ideologia dominante prevalece hoje. Não basta apenas dizer que seria “a da classe dominante”, mas, em especial, compreender a forma ideológica com que esse conjunto de símbolos e ideias opera. Na Antiguidade, era a política. Na Idade Média, a forma religiosa. Para Marx, na modernidade, a forma ideológica dominante é a do direito.
Isso explicaria facilmente por que o discurso sobre meritocracia ou empreendedorismo, por exemplo, é tão facilmente difundido: ele está pautado dentro da linguagem jurídica que o capitalismo instaurou como dominante enquanto sistema. E por isso é tão difícil, mesmo entre camadas mais pobres, admitir que pessoas possam adquirir direitos por diferenciação — ainda que tenham argumentos de reparação histórica ou de redução da desigualdade.
Embora seja salutar que o Brasil tenha implementado um sistema de cotas (que atravessa seleções desde o ingresso nas universidades até concursos), frente aos quase 400 anos de escravização no país, que deixaram marcas profundas de segregação social e econômica, um homem branco e igualmente pobre pode ter sérias dificuldades em compreender o mecanismo de reparação. O que salta aos olhos é a diferenciação, a separação e um suposto benefício que não o alcança. Onde se tem uma política de redução da desigualdade, ele a enxerga como uma promoção de desigualdade, em que ele sai perdendo. Isso serve para inúmeros outros exemplos que tocam justamente os públicos mais historicamente marginalizados: mulheres, LGBTs, povos tradicionais etc.
Ora, se o Estado deve prezar pelo bem-estar de todos, por que alguns estão sendo “privilegiados”? É uma questão jurídica, de igualdade, que faz razoável sentido.
Em 2023, a Atlas Intel realizou uma pesquisa cujos resultados demonstram uma clara divisão na percepção dos brasileiros sobre ganho ou perda de importância social nas últimas duas décadas. Em média, 43% se veem como ganhadores, contra 30% que se veem como perdedores. Essa percepção varia drasticamente entre grupos demográficos: a sensação de ganho é maior entre mulheres, negros, pardos e nordestinos, com o ápice entre mulheres nordestinas não brancas de baixa renda (71%). O menor índice é entre homens brancos, mais velhos e de alta renda do Sudeste (25%). Os autores confirmam que a sociedade enxerga mulheres, nordestinos, negros, indígenas e LGBTQIA+ como os grupos que mais ganharam importância, enquanto homens, brancos e ricos são vistos como os que menos ganharam.
Essa autopercepção como “ganhador” ou “perdedor” tem consequências políticas diretas, influenciando preferências partidárias. Entre os que se sentem perdedores, o antipetismo chega a 70%, e o petismo cai para apenas 2%. Já entre os que se veem como ganhadores, o antipetismo é de apenas 16%, e o petismo sobe para 50%. Conclui-se que há uma forte associação entre a adesão à extrema-direita e a percepção de perda de status. Os autores argumentam que, embora o ressentimento não seja a causa última, é a extrema-direita que dá vazão a esse sentimento, valorizando-o de forma explícita e até violenta para fins políticos (ZUCCO, SAMUELS e MELLO, 2024).
Em junho deste ano, no programa Roda Viva, da TV Cultura, o diretor da Quaest e cientista político Felipe Nunes avaliou que o ressentimento, longe de ser apenas uma emoção individual, atua como um marcador social que ajuda a explicar divisões profundas na sociedade. Segundo Nunes, ao investigar percepções de mobilidade social entre diferentes grupos no Brasil, a pesquisa da Quaest identificou padrões reveladores: enquanto negros, mulheres e pessoas de menor renda relatam ter melhorado de vida nos últimos 20 anos, brancos, homens e indivíduos de maior renda tendem a perceber que não houve avanços significativos para si. Esse contraste não se limita a uma percepção de status, mas se estende à ideia de merecimento.
Embora as pesquisas de opinião apontem para uma confirmação desse elemento subjetivo, que poderia desaguar em uma espécie de raiva represada que necessita de retorno e reparação, como o ressentimento, existem também posições divergentes, como a do filósofo e psicanalista Vladimir Safatle. Para o professor universitário, enquadrar escolhas políticas em aspectos emocionais ou psicológicos pode nos afastar da capacidade de realmente escutar os anseios e frustrações de parte da classe trabalhadora, que passa a ser vista como uma massa movida por irracionalidades.
Em meio às divergências, a realidade vem nos demonstrando que, mesmo que o ressentimento não seja o grande culpado pelas escolhas políticas das bases de sustentação da extrema-direita, está ficando cada vez mais nítido que o discurso mobilizado pela propaganda autoritária de direita tenta promover e manipular essa ideia de diferenciação a partir do discurso dominante do direito. O “nós contra eles” deixa de ser entre ricos e pobres e passa a ser entre “os que estão sendo beneficiados pelo governo de esquerda e os que não estão”.
Para a esquerda, é urgente compreender a necessidade de mobilizar elementos que também dialoguem com os aspectos mais subjetivos da vida do povo, mas que estejam entrelaçados ao discurso jurídico dominante. Não à toa, a pauta da redução da escala 6×1 e do imposto de renda, que nem de longe é nova, ganhou tanta notabilidade nos últimos meses: por um lado, o discurso sobre o tempo de viver, de lazer, o direito ao descanso; por outro, a diferenciação não por espectro político, mas pela diferenciação do tanto de trabalho realizado — o que nos coloca novamente no jogo que realmente importa: o “nós contra eles” verdadeiro — quem trabalha e quem enriquece do trabalho alheio.
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