"A noite, de Elie Wiesel, é um exemplo do testemunho da própria experiência do autor nos campos de concentração nazista em 1944. A obra está entre aquelas que são recorrentemente rememoradas em reportagens e artigos contemporâneos que denunciam a loucura das guerras e dos conflitos entre os povos nos dia de hoje e refletem sobre a possibilidade da paz".
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestra em Filosofia pela Unisinos e mestra em Teologia pela PUCRS.
Dias atrás, muitos de nós aguardávamos o anúncio do mais novo Prêmio Nobel da Paz. Até o nome do presidente Trump estava nas listas de apostas. A ocasião nos leva a pensar em quem foram as outras personalidades agraciadas desde o início do século passado, quando a premiação foi instituída.
Um nome que consta na lista é o do escritor judeu Elie Wiesel, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1986 por uma vida dedicada ao resgate da memória do Holocausto. Ou seja, por testemunhar pelas vítimas que tiveram a dignidade usurpada pouco mais de 80 anos atrás. A reportagem de Susanna Nirenstein, publicada no jornal La Repubblica em 2016, ano da morte do escritor, recorda que ele não foi um “partidário” somente do seu povo, mas dos “oprimidos”. Denunciou, informa a matéria, “os genocídios no Camboja, Ruanda, o apartheid na África do Sul, os desaparecidos na Argentina, as vítimas bósnias, os índios miskito na Nicarágua, os curdos, exigindo intervenções em Darfur, Sudão, uma resolução da ONU que definisse e julgasse o terrorismo como um crime contra a humanidade”.
Wiesel conheceu de perto o desejo humano de dominar, oprimir e subjugar o outro na Segunda Guerra Mundial. Não só testemunhou as humilhações a que foram submetidos aqueles que estiveram nos campos de concentração, como viu nascer dentro de si todo tipo de sentimento que lhe fez questionar a própria humanidade.
A noite, de Wiesel, é um exemplo do testemunho da própria experiência do autor nos campos de concentração nazista em 1944. A obra está entre aquelas que são recorrentemente rememoradas em reportagens e artigos contemporâneos que denunciam a loucura das guerras e dos conflitos entre os povos nos dia de hoje e refletem sobre a possibilidade da paz.
No testemunho de Wiesel, deparamo-nos com os pensamentos de um jovem menino de quase 13 anos, que se descrevia como “profundamente religioso” em 1941. Há até o relato de uma breve conversa do garoto com um senhor que o encontrava todas as noites no templo:
“Por que você reza? — perguntou ele, passado um instante.
Por que eu rezava? Que pergunta estranha. Por que eu vivia? Por que respirava?
Não sei — respondi, sem jeito e ainda mais perturbado. — Não sei.”
A convicção não refletida que o levara a dar essa resposta foi sendo transformada quando chegou no campo de concentração de Birkenau com toda a família. Num diálogo com o pai, disse que “não acreditava que se queimassem seres humanos na nossa época, que a humanidade jamais toleraria…”. Ao que o pai, com muito mais experiência e sabedoria, respondeu:
“— A humanidade? A humanidade não liga para nós. Tudo é permitido hoje em dia. Tudo é possível, até mesmo fornos crematórios… — disse ele, a voz embargada”.
Enquanto alguns, à noite, no campo de concentração, falavam em Deus e nos “Seus misteriosos caminhos”, mesmo imersos naquela carnificina, Wiesel conta que “tinha deixado de rezar” e sentia-se próximo de Jó: “Não negava Sua existência, mas duvidava da Sua justiça absoluta”.
Observando os demais prisioneiros no culto, pensava, "cheio de ira”:
“‘O que és Tu, meu Deus se comparando a essa multidão sofrida que vem Te gritar sua fé, sua ira, sua revolta? O que significa a Tua grandeza, Senhor do Universo, diante de toda essa fraqueza, diante dessa decomposição, dessa podridão?”
Enquanto dez mil homens bendiziam ao Eterno, ele continuava pensando:
“Mas por quê, porque eu haveria de bendizê-Lo. Todas as fibras do meu ser se revoltavam. Porque tinha feito queimar nas valas milhares de crianças? Porque fazia funcionar seis crematórios dia e noite nos dias de Sabá e nos dias de festa? Porque, em Seu grande poder, criara Auschwitz, Birkenau, Buna e tantas outras usinas da morte? Como poderia eu Lhe dizer: ‘Bendito sejas Tu, ó Eterno, Senhor do Universo, que nos elegeu entre os povos para sermos torturados dia e noite, para vermos nosso pai, nossa mãe, nossos irmãos terminarem no crematório? Louvado seja Teu Santo Nome, Tu que nos escolhestes para sermos imolados em Teu altar?”
Conforme os dias passavam, vivendo seu próprio sofrimento, agravado pelo sofrimento do pai, ele continuava indo aos cultos, mas já tinha abandonado as convicções da infância:
“Hoje, eu não implorava mais. Não era mais capaz de gemer. Pelo contrário, me sentia muito forte… Eu era o acusador. E o acusado: Deus. Meus olhos tinham se aberto e eu estava só, terrivelmente só no mundo, sem Deus, sem homem. Sem amor nem piedade. Eu já não passava de cinzas, mas me sentia mais forte que esse Todo-Poderoso a quem por tanto tempo devotara minha vida. No meio daquela assembleia de oração, eu era como um observador estrangeiro”.
Para Enzo Bianchi, teólogo e fundador da Comunidade de Bose, “uma grande lição” sobre o Holocausto foi dado por outro escritor que também vivenciou profundamente os horrores daqueles dias intermináveis: Primo Levi. “Ele, não crente, que não se perguntava como Elie Wiesel, crente, onde estava Deus em Auschwitz, mas, ao contrário, onde estava o ser humano: onde foi parar a humanização na Shoá? Como o ser humano pôde se tornar torturador e aniquilar a tal ponto o outro, o ser humano, seu irmão?”
O “verdadeiro problema” daquela época, opinou o teólogo, “não é o silêncio de Deus, mas a não escuta do ser humano, do crente. (…) Somos criaturas frágeis e capazes de pecar, e o nosso pecado começa justamente com a não escuta de Deus”.
Um bom jeito de traduzir o veredito de Bianchi foi feito pelo jornalista e ex-senador italiano Raniero La Valle em junho deste ano: “Meu Deus, meu Deus, por que te abandonamos? Essa inversão do Salmo 22 seria, como nos é sugerido, a oração mais apropriada neste momento da história humana: deveria ser unânime, além de qualquer distinção entre crentes e não crentes”.