21 Outubro 2025
Documento elenca temas de atenção para que lei ambiental seja efetivada no bioma gaúcho.
A reportagem é de Bettina Gehm, publicada por Sul21, 17-10-2025.
O governo Eduardo Leite (PSD) enviará à COP30, que acontece no próximo mês, a Carta do Bioma Pampa. O documento reúne “propostas e compromissos voltados ao fortalecimento da governança climática subnacional” – que, na visão de ambientalistas, não se comprovam na prática. Em paralelo à carta, o Observatório do Código Florestal (OCF) elaborou um documento em que elenca temas de atenção para que a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei nº 12.651/2012) seja efetivamente implantada no bioma gaúcho.
Assinada pela titular da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), Marjorie Kauffmann, a Carta está em elaboração e com consulta pública aberta. O documento reafirma que o bioma deve ocupar posição estratégica na agenda da COP30, não apenas como território vulnerável, mas como espaço de inovação socioambiental e de soluções integradas para o enfrentamento da crise climática e da perda da biodiversidade. Destaca resultados da atuação do Estado na agenda climática, como a redução de 13% nas emissões brutas de gases de efeito estufa e 15% nas líquidas, com intensidades inferiores à média nacional. Projeta que a cadeia da soja terá emissões líquidas zero até 2045 e aponta a silvicultura como “importante sumidouro de carbono”.
Secretário executivo do OCF, o especialista em direito ambiental Marcelo Elvira relata que o documento elaborado pela entidade é embasado em uma expedição realizada no Pampa entre os dias 6 e 13 de outubro. Durante esse tempo, foram ouvidos pecuaristas, pesquisadores, comunidades tradicionais e Ministério Público. Ao final do processo, houve um encontro dos representantes do Observatório com a Sema, o que coincidiu com a primeira versão Carta do Bioma Pampa.
“Levamos para eles algumas impressões do que a gente coletou no campo. Como a carta da Sema está em consulta pública, circulamos o nosso manifesto para as pessoas terem subsídios para participar”, detalha Marcelo.
Em relação à Lei de Proteção da Vegetação Nativa, Marcelo destaca que um dos maiores desafios do Pampa é a efetivação do Cadastro Ambiental Rural (CAR). A carta do OCF aponta que, dos mais de 650 mil cadastros no Estado, apenas 5.510 passaram por alguma análise e apenas 14 foram concluídos. A média nacional de cadastros com alguma análise é de 34%, enquanto no RS não chega a 1%.
“A carta da Sema não toca muito nesses pontos, e a Lei traz um ordenamento e disciplina o uso do solo”, pontua Marcelo. No manifesto, o OCF alerta que se o RS pretende ser referência nacional em governança ambiental, justiça climática, reconhecimento de direitos e economia de baixo carbono, é essencial implantar efetivamente a legislação que protege a vegetação nativa.
A bióloga Luiza Chomenko, que já atuou na Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) e ajudou a complementar o documento elaborado pelo OCF, explica que os desafios enfrentados pelo Pampa começam pelo reconhecimento da importância deste bioma que não é caracterizado pelas florestas, e sim pelos campos. No imaginário popular, explica Luiza, o desmatamento é um problema somente quando árvores são derrubadas. O Pampa, no entanto, sofre com a redução da área de ambientes campestres.
“Nós estamos reduzindo a retirada de árvores, mas em compensação a área campestre também está reduzindo. Basta fazer um comparativo de quanto estamos expandindo a soja e a silvicultura anualmente. É uma das maiores proporções de todo o Brasil”, alerta a bióloga.
Se antes a paisagem do Pampa podia ser descrita pelo “olhar e enxergar longe”, hoje as plantações de soja e as florestas de eucalipto, destinadas à produção de celulose, encurtam a distância até o horizonte.
“A gente sente que está perdendo qualidade ambiental quando vê que estão botando árvores abaixo, então, se disser que no Pampa não tem árvores, é como se dissesse que ele não tem importância. Mas temos algo que é muito diferente dos outros estados, só nós temos o campo dessa forma. Quando nós matamos essa visão do campo, nós estamos matando a nossa própria tradição”, pontua Luiza.
O OCF salienta que o Pampa é o bioma brasileiro menos protegido por Unidades de Conservação, que correspondem a apenas 3% de sua área.
“O grande crime ambiental é matar a nossa grande potencialidade, que é a pecuária extensiva em campo nativo”, destaca Luiza. “No Rio Grande do Sul não temos gado confinado, mas sim criado em campo nativo, livre de insumos e agrotóxicos, em áreas onde o balanço de carbono é muito mais proveitoso do que em qualquer bioma brasileiro. E isso é aliado a um produto que é a carne saudável. Estamos destruindo esse nosso potencial”.
Mineração e agrotóxicos ameaçam o bioma
Não bastasse o Brasil ser um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo, o Rio Grande do Sul é um dos estados brasileiros que mais os utiliza. Um relatório com foco na bacia do Rio Gravataí registrou, na região, 43 diferentes ingredientes ativos de agrotóxicos, sendo que quatro não possuem autorização para uso no território nacional – isso que o país permite o uso de agrotóxicos mundialmente proibidos.
Luiza explica que o fato de o estado ter fronteiras secas com a Argentina e o Uruguai facilita o transporte de agrotóxicos irregulares. “Muitas vezes, esses produtos são mais baratos nos países vizinhos. Junto com isso, vêm muitos agrotóxicos que não são permitidos no Brasil”
Recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) concedeu efeito suspensivo contra a proibição do uso de herbicidas hormonais com princípio ativo 2,4-D na região da Campanha Gaúcha. Por outro lado, pareceres técnicos dão conta de que o estado não dispõe de mecanismos de fiscalização suficientes para controlar o uso do 2,4-D. O Estado foi considerado omisso na fiscalização e na regulamentação do uso do princípio ativo, sendo obrigado a reforçar a vigilância sobre agrotóxicos e a adotar medidas de proteção à biodiversidade e aos agricultores familiares.
A mineração é outra ameaça ao Pampa. Embora a população tenda a se mobilizar contra grandes projetos de extração de minérios, o Rio Grande do Sul é rico nas chamadas “terras raras”. E, em 2021, a Política de Apoio ao Licenciamento Ambiental de Projetos de Investimentos para a Produção de Minerais Estratégicos, do governo Bolsonaro, foi inserida no Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República. Tal programa foi criado com o objetivo de envolver diversos órgãos para “destravar” licenciamentos ambientais e dar “mais agilidade” na implantação de novos projetos de minerais considerados estratégicos.
“Hoje, nossa grande exploração é o carvão”, afirma Luiza. “Só que o impacto ambiental é tenebroso, porque é feita a extração do mineral, se destrói o ambiente natural, e se abandona aquilo ali. Se tem recursos hídricos por perto, essa área é absolutamente contaminada”.
A mineração exige ainda uma infraestrutura para que o material extraído seja transportado para outros locais. Para isso, são abertas rodovias que, por sua vez, muitas vezes “cortam” ambientes até então muito pouco alterados. O transporte, explica Luiza, é mais uma fonte de poluição atmosférica. “As pessoas que vivem ali vão sofrer por décadas de problemas respiratórios e doenças graves”, salienta.
A bióloga destaca que a região de Lavras do Sul, em que há um projeto de mineração de fosfato, é onde nascem as três regiões hidrográficas do estado. “Será que nós queremos fazer mineração em áreas onde nasce a água do Rio Grande do Sul?”, questiona.
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