"O senso comum poderia sintetizar toda essa discussão no saturado ditado 'as aparências enganam'. No entanto, em nosso caso, o ditado não ajuda muito. Pelo contrário, apenas perpetua o preconceito em relação a 'certas' aparências. Quando serei e quando seremos capazes de alterar os lugares de nossas mesas sociais e de reconhecer, sem pestanejar, em homens como Laudemir convidados ilustres, ou seja, presenças de luz?", escreve Clovis Salgado Gontijo, professor assistente na FAJE, graduado em Música e Filosofia.
Há duas semanas, tive a oportunidade de ler um riquíssimo livro, em termos teológicos e artísticos, sobre a representação do comovente episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) ao longo da história da arte. Em suas páginas, o historiador francês da arte e das religiões François Bœspflug percorre, de modo cronológico, as etapas da narrativa, revelando a presença de cada uma delas em mosaicos, baixos-relevos, vitrais, pinturas e murais de diversos séculos. Além disso, por se tratar de publicação recente, o autor inclui nela preocupações bem atuais. Assim, reserva um capítulo para obras nas quais um dos dois discípulos (o discípulo anônimo, que caminha com Cléofas) é retratado como mulher e outro para inculturações do episódio evangélico na arte não europeia.
Como um dos exemplos para esse segundo caso, reproduz e comenta a tela Supper at Yummaus, do artista estadunidense contemporâneo Barry Motes. Segundo Bœspflug, a obra pertence à série de quadros The Sacred Stories, na qual Motes “‘recoloca em cena’ as histórias e parábolas da Bíblia, povoando-as de amigos, estudantes e colegas, com o propósito (...) de sugerir que a Bíblia é profundamente atual e que a vida cotidiana é repleta de mistérios”[1]. Em sua “transposição” da Ceia de Emaús, o artista coloca em primeiro plano três personagens à mesa no interior de um fast food, mais precisamente uma lanchonete da cadeia Kentucky Fried Chicken. A “composição de lugar” não se mostra casual, pois é no estado de Kentucky que Motes reside e ensina. Ao fundo da cena, uma atendente, atrás do caixa, observa os clientes, substituindo a criada ou o estalajadeiro acrescentado nas representações barrocas da ceia em questão.
Quadro "Supper at Yummaus" de Barry Motes
O grupo é multiétnico: a caixa tem traços asiáticos, o homem ao centro é negro e o casal que o ladeia, caucasiano, de acordo com a questionável classificação empregada nos EUA. Foi justamente esse aspecto étnico que me moveu a escrever o presente texto. Ao me deparar com a imagem, antes de ler sua descrição, atribuí, de imediato, a identidade de Cristo ao homem branco à esquerda, sem sequer levar em conta, por um lado, os cabelos grisalhos deste nem, por outro, os cabelos compridos do homem de azul a ocupar o centro da obra com sua magnética presença. E tal centralidade repetia uma composição consagrada da cena pela história da arte, como eu havia observado nas páginas anteriores do livro. Contudo, penso agora que minha atribuição apressada poderia estar enraizada nessa mesma história da arte de matriz ocidental, a qual não costuma oferecer representações de Cristos negros, embora realize, em suas abordagens das figuras e dos episódios bíblicos, seus próprios sincretismos, passados muitas vezes desapercebidos.
Graças à explicação de Bœspflug, constatei, alguns segundos depois, que o Ressuscitado era, na verdade, o homem ao centro. Nesse momento, cogitei, envergonhado, se meu equívoco seria fruto do chamado racismo estrutural (reproduzido e reafirmado, como já acenei, por uma história da arte em que as personagens negras costumam se limitar a um dos Reis Magos ou a outras figuras exóticas). Poderia ser o Bom e Belo Pastor um homem negro? Não estariam a bondade e a beleza privilegiadamente estampadas nos cabelos escorridos do Cristo de Rembrandt (Museu do Louvre) ou nas maçãs rosadas do Cristo de Caravaggio (National Gallery) em suas respectivas versões da Ceia de Emaús? Não seria a tez mais morena, trabalhada com tantos matizes no Cristo de Motes, um atributo dos anjos caídos em oposição aos louros e transparentes anjos celestiais?
Meu mal-estar se renova, nesta semana, após o hediondo crime, ocorrido no dia 11 de agosto, em minha cidade: o assassinato à queima-roupa de um gari enquanto realizava, dignamente, seu digno trabalho. Numa notícia de jornal, encontro duas imagens formando uma espécie de díptico: à esquerda, a fotografia do assassino, Renê da Silva Nogueira Júnior, e, à direita, a fotografia da vítima, Laudemir de Souza Fernandes. Dois homens com aproximadamente a mesma idade, trafegando pela mesma rua, mas oriundos de mundos diversos. Cada qual buscando sua beleza... Renê: branco, cabelos lisos engomados, traços “finos”, com uma camisa de grife acentuando seu físico musculoso, sorriso de homem de bem... Laudemir: pardo, sobrancelhas pinçadas, cabelos crespos, corte moicano, a barba bem desenhada, um olhar quase bravo...
Como me ocorreu diante do quadro de Barry Motes, se não fosse pela legenda, eu – e, ouso generalizar, muitos brasileiros – teria me equivocado no reconhecimento do assassino e da vítima. Mais tarde, descobriríamos que a fotografia de Renê não correspondia bem à (sua) realidade. E achamos graça! Talvez, reconforte-nos a ideia de que a verdadeira beleza não seria compatível com o mal...
No entanto, o problema se revela mais profundo. É um modelo partilhado de beleza o que transforma, mais ou menos artificialmente, Renê em “galã” para ele próprio, para seus seguidores nas redes sociais e para nós que o vimos, pela primeira vez nesta semana, nas manchetes criminais. E, por sua vez, é esse mesmo modelo que estigmatiza Laudemir e o exclui. Até que ponto ainda nos perseguiria o ideal grego da kalokagathia, que estabelece – ou, ao menos, busca – a correspondência entre o belo e o bom? Contudo, não nos esqueçamos de que os gregos não eram assim tão ingênuos: souberam identificar combinações em que seus padrões de beleza (física) e a bondade não coexistiam. Por um lado, Sócrates, que, apesar de seu repulsivo rosto de Sileno, manifesta “em seu interior estatuetas de deuses”[2], por outro, Helena, que, apesar de toda a beleza, como “esposa infiel de Menelau, certamente não poderia ser considerada um modelo de virtude”[3]. Hesíodo já ressalta, oportunamente, que também há um kalón kakón, ou seja, “um mal formoso”[4].
O senso comum poderia sintetizar toda essa discussão no saturado ditado “as aparências enganam”. No entanto, em nosso caso, o ditado não ajuda muito. Pelo contrário, apenas perpetua o preconceito em relação a “certas” aparências. Quando serei e quando seremos capazes de alterar os lugares de nossas mesas sociais e de reconhecer, sem pestanejar, em homens como Laudemir convidados ilustres, ou seja, presenças de luz?
[1] Bœspflug, François. Gesù e i discepoli di Emmaus nell’arte. Traduzione dal francese a cura di Emanuela Fogliadini. Prefazione del Card. Matteo M. Zuppi. Postfazione di Dionisio Candido. Villa Verrucchio (RN): Pazzini Stampatore Editore SRL, 2023, p. 130, tradução minha. (Arti e Teologie)
[2] PLATÃO. Banquete, 215b. In: PLATÃO. Diálogos: O Banquete; Fédon; Sofista; Político. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. Tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 46. (Os pensadores)
[3] ECO, Umberto. História da feiura. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 24.
[4] BAYER, Raymond. Historia de la estética. Traducción de Jasmin Reuter. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, p. 22. (Filosofía)