08 Agosto 2025
"Lucas 12,39-40 contém outra parábola, a do ladrão que chega sem ser esperado. Deus se apresenta em nossa história de forma inusitada e, sem vigilância e prontidão, corre-se o risco de pôr a perder o dom que é feito na pessoa de Jesus. “Estejam prontos!” (Lc 12,35.40)."
O artigo é de Frei Gilvander Moreira.
Gilvander é frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia Bíblica no Serviço de Animação Bíblica, em Belo Horizonte.
No Evangelho de Lucas, de Lc 9,51 a Lc 19,27, as primeiras comunidades cristãs mostram Jesus e seu movimento popular-religioso subindo da Galileia para a capital Jerusalém, indo da periferia para o centro dos poderes político, econômico e religioso. Nestes dez capítulos, segundo Lucas, Jesus qualifica a formação dos discípulos e discípulas aprimorando a vivência radical do Evangelho, que busca construir uma fraternidade real com condições objetivas de vida para todos, todas e tudo (Jo 10,10). Está neste contexto a passagem de Lc 12,32-48, que pode ser dividida em três seções: Lc 12,32-34; Lc 12,35-40; Lc 12,41-48.
Em Lc 12,32-34, temos a força dos pequenos do Reino divino. Estes três versículos estão ligados ao tema que os precede: o abandono nas mãos do Pai e da busca primordial do Reino. Os discípulos e as discípulas de Jesus são comparados a pequeno rebanho, ao qual é confiado o Reino divino. O que Jesus ensinara a pedir no Pai-nosso (cf. Lc 11,2) já está acontecendo na vida das comunidades cristãs. O Reino se manifesta a partir dos pequenos (Lc 12,32). É daí que surge a nova sociedade. De fato, as prescrições de Jesus aos discípulos e discípulas visam à construção de sociedade e história novas, dando expressão, estatura e maturidade ao Reino de Deus: “Vendam os bens e deem esmola. Façam bolsas que não se estragam, um tesouro no céu que não perde o seu valor…” (Lc 12,33-34). “Vender bens e dar esmola” é fazer justiça e viver sob o signo da partilha, o que implica desvencilhar-se do vírus da acumulação de bens.
A ênfase é colocada no modo como as pessoas seguidoras de Jesus se relacionam entre si e com os outros, isto é, na partilha dos bens cultivando relações humanas e sociais de fraternidade, de ética, de cuidado, de amor ao próximo que envolve todos os seres vivos da biodiversidade, inclusive. De fato, no Evangelho de Lucas a palavra “esmola” é muito importante. Não se trata de dar algumas moedinhas, mas de partilhar tudo o que somos e temos. Esse era o projeto de vida dos povos camponeses das aldeias, em oposição ao sistema econômico das cidades, fundado na concentração e acumulação de bens e poder. Se quisermos, em Lucas há um modelo de pessoa que dá esmola: é Zaqueu (Lc 19,1-10), que dá aos pobres 50% do que tem (cf. também Lc 3,11). É assim que o Reino cresce e se manifesta. Jesus afirma que essa riqueza não se estraga, não perde seu valor, não pode ser roubada nem consumida.
Em Lucas 12,35-40, a proposta é de vigilância ativa na espera do Senhor que serve. A prontidão é a atitude básica que caracteriza os discípulos e discípulas de Jesus: “Estejam com as mangas arregaçadas (literalmente: rins cingidos) e com as lâmpadas acesas” (Lc 12,35). Este versículo lembra de perto a noite em que o povo de Deus foi libertado da escravidão egípcia (cf. Ex 12,21). Na noite da libertação, os hebreus estavam de prontidão. A mesma coisa é pedida aos discípulos e discípulas de Jesus.
A parábola dos servos que esperam seu senhor voltar do casamento (Lc 12,36-38) serve para ilustrar a vigilância e prontidão próprias das pessoas cristãs. Estas têm uma certeza, uma utopia: O Senhor vem! Permanece, todavia, o elemento-surpresa: ninguém sabe quando virá. A parábola conserva, ainda, outro elemento-surpresa: o senhor que volta é alguém muito especial porque, ao encontrar os servos vigiando, os fará sentar à mesa e os servirá. Esse elemento-surpresa nos ajuda a passar do nível superficial ao nível profundo da parábola: o senhor é Jesus que veio para doar a sua vida (cf. o serviço de Jesus em Lc 22,27). Porém a vida que ele concede não chega a nós de mão beijada, mas através do discernimento (vigilância e prontidão) que produz vida na sociedade. Em outras palavras, é preciso “enxergar” no escuro da noite os sinais de libertação que estão acontecendo no hoje de nossa caminhada. A libertação não se espera, constrói-se! Nisso consiste a felicidade dos cristãos: “Felizes… felizes serão se assim os encontrar!” (cf. Lc 12,37.38). “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer...”, canta profeticamente Geraldo Vandré.
Lucas 12,39-40 contém outra parábola, a do ladrão que chega sem ser esperado. Deus se apresenta em nossa história de forma inusitada e, sem vigilância e prontidão, corre-se o risco de pôr a perder o dom que é feito na pessoa de Jesus. “Estejam prontos!” (Lc 12,35.40).
O que está em Lc 12,41-46 vale somente para as lideranças? A pergunta de Pedro amplia o tema da vigilância ativa: “Senhor, estás contando esta parábola só para nós, ou para todos?” (Lc 12,41). Jesus não responde diretamente à pergunta de Pedro. Em forma de pergunta, ele conta outra parábola, a do administrador fiel e responsável: “Quem é o administrador fiel e prudente que o Senhor vai colocar à frente do pessoal de sua casa para dar a comida a todos na hora certa?” (Lc 12,42). A vigilância, nessa pequena parábola, se transforma em serviço, assumindo assim sua característica peculiar. Vigiar, portanto, não é policiar a ação pastoral da própria comunidade ou das outras, e sim pôr-se a serviço, a exemplo de Jesus que serve (cf. Lc 12,37). Nessa parábola, o administrador fiel e responsável não aparece acompanhado de direitos ou de títulos, mas sim na sua característica peculiar de alguém que se põe à inteira disposição do Senhor e dos outros. Quem, pois, é esse administrador fiel e prudente que faz de sua vida um serviço pleno à comunidade?
Lucas 12,47-48: Conhecer mais para um compromisso maior. Os versículos 47 e 48 de Lc 12 são, em primeiro lugar, um alerta contra o legalismo que caracteriza os doutores da Lei e parte dos fariseus do tempo de Jesus e de todos os tempos. Eles conheciam os mínimos detalhes da Lei que apontava para uma sociedade justa e fraterna, mas acabaram criando e apoiando, à revelia da mesma, um tipo de sociedade gananciosa, opressora e corrupta. Em segundo lugar, esses versículos estimulam ao conhecimento do projeto de Deus em vista de um compromisso maior: “A quem muito foi dado, muito será pedido; a quem muito foi confiado, muito mais será exigido” (Lc 12,48b). O que foi dado e confiado aos discípulos de Jesus? A vivência das relações humanas e sociais que efetivam o reino divino no nosso meio. “Não tenha medo, pequenino rebanho, pois foi da vontade do Pai dar a vocês o Reino” (Lc 12,32).
Enfim, é necessário estarmos atentos, preparados, esperançando! Estar vigilantes implica em ver tudo o que fere a vida e a dignidade das pessoas e do meio em que vivemos e ter a coragem de denunciar essas estruturas de morte. Estar atentos tem a ver com ser sensíveis ao sofrimento de tantos irmãos e irmãs, vítimas de diversas formas de violência, de exclusão, de opressão, de injustiças. Assim como fez Jesus de Nazaré. Que a luz divina nos ilumine para que tenhamos a coragem necessária de abrir verdadeiramente os olhos, testemunhar o Evangelho de Jesus Cristo e cuidar da construção do Reino divino a partir do aqui e do agora.