06 Agosto 2025
O texto alerta: a Economia Solidária não florescerá apenas com mais do mesmo (capacitação, crédito, subsídios), pois essas ferramentas, herdadas do fomento empresarial, reforçam a competição, não a cooperação. O caminho está na revolução da compra pública.
O artigo é de Renato Dagnino, publicado por A Terra é redonda, 05-08-2025.
Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A indústria de defesa no governo Lula (Expressão Popular).
A pesquisa-participante em que venho participando no campo da Economia solidária me anima a esta conversa com as companheiras e companheiros que participarão, a partir de 13 de agosto, da 4ª CONAES. Ela adiciona a aspectos abordados em outros trabalhos de integrantes do movimento entre os quais me incluo, e a quem sem “incriminar” agradeço os comentários a uma primeira versão deste texto, um que só agora me dei conta. Ao final, se sugere uma moção para processá-lo e incorporá-lo à política da Economia solidária.
Essa pesquisa vem fortalecendo a hipótese de que a política pública que trata da Economia solidária há mais de duas décadas talvez esteja incorrendo naquilo que os engenheiros chamam de um erro de projeto (ou de conceito).
Dizem eles que artefatos que foram concebidos com um erro de projeto (e a política pública pode ser assim interpretada) dificilmente serão exitosos. É como se os artefatos padecessem de um defeito dificilmente sanável com um simples acréscimo da quantidade da energia dedicada ao seu funcionamento.
Como eles fazem com esse tipo de hipótese, vou começar indagando sobre sua origem. Enfatizo que meu foco, coerente com meu propósito, é heurístico e projetual.
Não vou, por isso, referir-me ao rico, penoso e contra-hegemônico processo de criação e implantação da Economia solidária. Analisar sua trajetória, que passa pela permanente mobilização e diálogo com os movimentos e organizações da sociedade civil que se dá nos Fóruns Sociais Mundiais, no Fórum Brasileiro de Economia Solidária, na SENAES etc., não é o foco deste texto. Também não é apontar situações (ou por elas responsabilizar quem quer que seja!) em que o erro de projeto que quero discutir se manifestou; ou em que suas consequências poderiam ser evitadas. Ele tampouco trata de algo que devo retomar: os obstáculos cognitivos que cercam, no seio da esquerda, a proposta da Economia solidária.
Seu foco é destacar que um erro de projeto que se deve à noção de que a política pública da Economia solidária deve replicar, junto às redes de Economia solidária, ações de governo que são orientadas ao meio empresarial.
É possível entender a política a ele orientada como estando baseada numa ideia-força de senso comum. Ao promover a competitividade de cada empresa, a competição entre elas no mercado, em busca do poder de compra das famílias, do Estado, e delas mesmas (a jusante e a montante do tecido econômico), o resultado sistêmico será o desenvolvimento.
As ações que interessam às empresas (ou redes privadas) realizadas mediante o aparelho de Estado para provocar sua competitividade são, basicamente, de dois tipos. O primeiro, é a capacitação e qualificação da empresa e a educação, em todos os níveis, de seus trabalhadores atuais, potenciais e sobrantes. O segundo, são os subsídios de várias naturezas, isenções fiscais, oferecimento de crédito facilitado etc.
Essas ações vêm há tempo sendo criticadas por serem pouco eficientes, eficazes e efetivas. Além de envolverem um enorme desperdício de recursos e energia coletivos que deveriam estar a serviço de todos, elas são cada vez mais denunciadas como agravantes dos danos do capitaloceno. Mas, não há dúvida de que aqueles que mediante o Estado logram materializá-las muito se beneficiam com elas. O ator que alavanca a elaboração (formulação, implementação e avaliação) da política para a empresa, além de alcançar seu objetivo, consegue, dado seu poder midiático, convencer a sociedade que, via transbordamento, ela beneficiará a todos.
Essa ideia-força, “contrabandeada” como tantas outras do ambiente privado para o da gestão pública, implica que quando começar a ser aplicada às redes solidárias ainda não contempladas pelo Estado, fará com que elas possam atrair compradores para seus bens e serviços e se viabilizar frente às redes privadas há séculos apoiadas.
A atual política da Economia solidária S está “contaminada” por essa ideia-força. Ao serem apoiadas mediante a qualificação de seus integrantes, as redes solidárias poderiam oferecer no mercado aqueles bens e serviços em condições competitivas e se tornarem exitosas. Ainda mais se dispuserem do crédito que funcione como aquele que proporciona o lucro do empresário. Assim, se produzirá diretamente, via a competição no mercado entre as redes solidárias, o efeito sistêmico desejado de desenvolvimento.
Muito se tem falado e escrito acerca da necessidade de aumentar a quantidade de recursos e energia orientada a ações de governo dessa natureza. Sem pretender uma análise exaustiva, vale destacar que depois do seu desmonte auspiciado pelo golpe de 2016, a SENAES foi recriada em 2023 recebendo apenas R$ 2 milhões! E que, por outro lado, a classe proprietária das redes privadas é diretamente favorecida pelo Estado com 8% do PIB como serviço da dívida pública; mais de 5% como renúncia fiscal; e 10% como sonegação de impostos!!
Em relação ao crédito para as redes solidárias, é evidente, como se tem apontado, que dado as vantagens econômicas, sociais, ambientais etc. que apresentam, ele deve ser oferecido pelo Estado em condições pelo menos análogas àquelas proporcionadas às redes privadas.
Minha intenção, ressaltando a correção dessas anotações e das que mencionei sobre a trajetória contra-hegemônica da Economia solidária, é passar da consideração da quantidade para a da qualidade, suscitada pela hipótese acerca de um possível erro de projeto da política da Economia solidária.
Mesmo sem retomar aqui as diferenças que possuem em relação às redes privadas, a intenção é discutir, pela via da qualidade e não da quantidade, a adequação da política orientada às redes solidárias. No limite e entre outras coisas sugerir que, por tender a promover a competição entre elas, ela pode ser até mesmo prejudicial.
Não estou sequer abordando o fato de que a emulação da política de fomento empresarial faz com que as ações de qualificação dos integrantes das redes solidárias tendam a ser capturadas pelo “empreendedorismo” do chamado terceiro setor e dos órgãos ligados ao Estado, como o SEBRAE e as instituições de ensino e pesquisa. Dando a quem acredita na neutralidade da gestão o benefício da ingenuidade, enfatizo o que muitos analistas de esquerda escreveram sobre a relação causal entre cultura, marco analítico-conceitual e instrumentos metodológico-operacionais que condiciona qualquer estilo de gestão.
E, portanto, que é uma tarefa intelectual urgente explicitar essa causalidade e derivar a concepção de um processo de qualificação adequado à realidade de redes de produção, consumo e finança baseadas na solidariedade e não na competição; na propriedade coletiva dos meios de produção, e não na privada ou estatal; e na autogestão e não no controle hierarquizado e alienante.
Inadequação semelhante e mais abrangente ocorre, como tem também sido apontado, no âmbito do que se conhece como ciência e tecnologia. Ela originou a proposta da adequação sociotécnica da tecnociência capitalista na direção de uma plataforma cognitiva de lançamento da economia solidária, a tecnociência solidária.
Caminhando para a conclusão, e evitando repetir argumentos indicados em outros trabalhos, é hora de indicar como é possível corrigir o que referi como erro de projeto da política da Economia solidária.
Começo lembrando a relevância do poder de compra do Estado para segmentos produtivos em implantação ou de alta intensidade cognitiva (notadamente os de natureza industrial, a chamada indústria nascente). E destacando o poder indutor da compra pública para instalação e consolidação das redes solidárias no momento em que crescentemente se discute a proposta da Reindustrialização Solidária.
Minha percepção é que até mais do que aqueles dois instrumentos usuais (capacitação e crédito), e inclusive por incorporá-los com um direcionamento preciso e específico (o de fornecer os bens e serviços que o Estado deve adquirir), ele deve ser um componente essencial da política da Economia solidária.
É necessário que o Estado encomende e pague previamente às redes solidárias uma parte substantiva do valor dos bens e serviços a serem por ele adquiridos; e que os avalie de modo a proporcionar aos seus integrantes benefícios ao menos iguais àqueles (bem exíguos, como todos sabem) que as redes privadas proporcionam aos seus empregados.
Estimada em quase 15% do PIB, a compra pública se orienta todos os anos para as redes privadas para adquirir os bens e serviços que o Estado nos proporciona em retribuição ao imposto que pagamos. O recurso alocado ao PAA e ao PNAE (da merenda escolar) que favorecem a agricultura familiar, de apenas 0,02% do PIB, dá uma dimensão do que é orientado para as redes solidárias!!
A manutenção dessa enorme desproporção, que se soma àquela acima indicada, só pode ser atribuída, como têm feito responsáveis a cargo da SENAES, pela incompreensão dos dirigentes de esquerda sobre a importância da Economia solidária para a materialização de seu projeto político. Aumenta o caráter paradoxal dessa situação o fato de que uma reorientação da compra pública só depende de decisões que podem ser tomadas à revelia dos limitantes orçamentários impostos pelo ajuste fiscal acordado com a direita e pelas emendas parlamentares com que pretendem atrair o voto dos mais pobres em 2026.
A 4ª CONAES será uma oportunidade ímpar de veicular os interesses e demandas do movimento junto àqueles que, no governo, são responsáveis por atendê-los mediante a elaboração da política da Economia solidária. Como ela se encerrará com várias moções, me animo a formular uma derivada das ideias aqui esboçadas para sua reorientação que já poderá desencadear um processo de conscientização dos dirigentes de esquerda sobre a relevância da Economia solidária.
A SENAES, em conjunto com integrantes do movimento de Economia solidária, produzirá informação que, em curto e médio prazo, facultará o atendimento da compra pública. De imediato, deverão ser produzidas quatro listas indicando:
(i) o que o Estado compra, de quem ele compra, por quanto ele compra e como ele compra;
(ii) os dispositivos burocrático-legais que dificultam a compra das redes solidárias de modo a providenciar sua remoção;
(iii) as empresas que faliram recentemente identificando aquelas passiveis de serem recuperadas pelos seus trabalhadores;
(iv) as disposições do marco burocrático-legal que dificultam a recuperação de empresas pelos seus trabalhadores e, a partir da legislação existente no estrangeiro, daquelas que poderiam aqui ser adotadas.