02 Agosto 2025
"A condição estrutural das mulheres negras no Brasil é marcada por sua inserção majoritária em atividades historicamente desvalorizadas, como o trabalho doméstico, caracterizado por baixa remuneração e alta informalidade".
O artigo é de Yoná dos Santos, doutoranda no Programa de Integração da América Latina (PROLAM-USP), publicado por A Terra é Redonda, 31-07-2025.
Enquanto os dados desagregarem corpos, mas não as opressões que os moldam, mulheres negras seguirão sendo as mais pobres entre os pobres – e as mais invisíveis entre as invisíveis
A escritora brasileira Carolina Maria de Jesus, em seu livro Quarto de despejo, escrito em 1960, apresenta de forma direta a realidade da fome, precariedade e exclusão enfrentada por uma mulher negra nas favelas urbanas de São Paulo. Sua escrita, marcada por um olhar cotidiano e periférico, desestabiliza os discursos hegemônicos sobre pobreza, oferecendo uma perspectiva situada que entrelaça raça, gênero e classe como dimensões inseparáveis.
No início dos anos 1980, Lélia Gonzalez, intelectual feminista negra brasileira, elaborou em seu texto “A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica” uma crítica contundente à universalização da categoria “mulher” nos discursos feministas brancos e liberais, que desconsideravam a racialização da experiência feminina. A autora argumenta que ser negra e mulher no Brasil significa experimentar uma forma específica de subordinação, marcada pela articulação indissociável entre racismo, patriarcado e capitalismo.
Essa condição é agravada pela persistência do mito da democracia racial e também do que Gonzalez denomina de racismo por denegação: um tipo de racismo que, ao negar sua própria existência, inviabiliza sua denúncia e enfrentamento. Nesse sentido, analisar a divisão sexual do trabalho sem considerar o marcador racial é incorrer na reprodução de um universalismo abstrato, que ignora as dinâmicas concretas da opressão racializada.
Kimberlé Crenshaw, feminista negra norte-americana, no artigo “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color” (1991), defende que raça, gênero e classe não operam como eixos isolados, mas se articulam de forma interdependente na produção da subordinação das mulheres negras.
A interseccionalidade, tal como proposta pela autora, constitui uma ferramenta analítica para expor os apagamentos promovidos por políticas e discursos que se baseiam em categorias únicas, incapazes de captar as formas específicas de violência e exclusão vividas por mulheres negras. Kimberlé Crenshaw enfatiza que a interseccionalidade não deve ser compreendida como mera soma de opressões, mas como um campo relacional em que raça, gênero e classe se constituem mutuamente na organização da subalternidade.
A denúncia formulada por essas autoras não se restringe ao campo discursivo, mas encontra respaldo nos próprios dados estatísticos, que evidenciam a permanência estrutural das desigualdades racializadas e generificadas no Brasil e na América Latina.
Segundo o banco de dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), entre 2003 e 2014, a América Latina registrou uma tendência consistente de redução das taxas de pobreza monetária, impulsionada pelo crescimento econômico, pela valorização das exportações de commodities e pela ampliação de políticas sociais.
No entanto, essa trajetória foi interrompida a partir de 2015, em razão da desaceleração econômica regional, do fim do superciclo das commodities e da adoção de políticas de austeridade fiscal em diversos países. O impacto da pandemia de COVID-19, entre 2020 e 2021, agravou ainda mais o cenário, provocando um aumento abrupto da pobreza e da desigualdade. Embora alguns indicadores tenham apresentado leve recuperação a partir de 2022, os níveis de pobreza em 2023 ainda permanecem superiores aos registrados em 2014.
No Brasil, essa dinâmica coincidiu com o auge do superciclo das commodities entre 2003 e 2011, impulsionado pela demanda internacional por matérias-primas, o que favoreceu o ingresso de divisas, o crescimento econômico e o fortalecimento de políticas redistributivas. Entre 2003 e 2014, observou-se uma queda acentuada da pobreza, sustentada pela expansão do mercado de trabalho formal, pela valorização real do salário mínimo e pela ampliação de políticas sociais — iniciadas nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e mantidas durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff.
Um marco importante desse processo foi a criação do Programa Bolsa Família, em 2003, que unificou iniciativas anteriores de transferência de renda, ampliando a cobertura e a capacidade de focalização sobre os grupos mais vulneráveis.
A partir de 2015, o esgotamento do superciclo, combinado a uma crise econômica interna, instabilidade política e medidas de austeridade fiscal resultou na estagnação e, posteriormente, no aumento da pobreza. Esse quadro foi agravado entre 2020 e 2021 pela pandemia de COVID-19, que intensificou a vulnerabilidade social e ampliou as desigualdades.
A partir de 2022, com a transição política e o anúncio da retomada de políticas públicas de proteção social, observa-se um esforço de reconstrução institucional, consolidado em 2023 com o restabelecimento do Bolsa Família em novo formato, o qual, aliado à valorização real do salário mínimo, contribui para uma recuperação parcial dos indicadores sociais.
A análise da série histórica do Índice de Feminilidade da Pobreza (IFP), entre 2001 e 2023, elaborada pelo Observatório de Igualdade de Gênero da CEPAL, revela que, mesmo em contextos de crescimento econômico e melhora geral dos indicadores sociais, as desigualdades de gênero não foram superadas. A feminização da pobreza manteve-se como uma tendência estrutural, consolidando-se ao longo do tempo.
Ainda que essa dimensão tenha sido pontualmente desagregada por raça, como no relatório Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad social en América Latina: retos para la inclusión (CEPAL, 2020), que registra um IFP de 114,8 para mulheres afrodescendentes no Brasil em 2018 — indicando níveis de pobreza significativamente superiores aos dos homens afrodescendentes —, esse tipo de recorte interseccional continua ausente das séries regulares do indicador, limitando sua capacidade analítica.
As taxas de pobreza desagregadas por sexo, raça e âmbito territorial, divulgadas pela CEPAL de 2001 a 2023, confirmam empiricamente as formulações teóricas de Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez e Kimberlé Crenshaw: entre 2001 e 2023, observa-se uma hierarquia na distribuição da pobreza no Brasil estruturada pela interseção entre raça e gênero.
As mulheres afrodescendentes apresentam, de forma sistemática, as maiores taxas de pobreza, seguidas por homens negros. As mulheres não afrodescendentes registram taxas ligeiramente superiores às dos homens não afrodescendentes, que compõem o segmento menos atingido pela pobreza.
Embora a hierarquia entre os grupos se mantenha ao longo do período, o comportamento da curva da pobreza extrema revela variações mais bruscas e picos mais agudos do que aqueles observados na pobreza geral. As mulheres afrodescendentes apresentaram, de forma sistemática, as maiores taxas de pobreza extrema, superando os 10% nos primeiros anos da série. Houve uma tendência de queda até aproximadamente 2012, seguida por um período de relativa estabilidade.
A partir de 2020, observa-se um aumento abrupto da pobreza, com pico expressivo em 2021 — reflexo direto da crise econômica e social provocada pela pandemia de COVID-19. Em 2022 e 2023, verifica-se uma retomada gradual da trajetória de queda, impulsionada por fatores como a ampliação do Auxílio Brasil durante o ano eleitoral, a valorização real do salário mínimo e a recuperação parcial da atividade econômica.
Os homens afrodescendentes também registraram níveis elevados de pobreza extrema, com taxas ligeiramente inferiores às das mulheres afrodescendentes, mas sempre superiores às dos dois grupos não afrodescendentes. Em quase todos os anos da série, mulheres não afrodescendentes apresentam taxas ligeiramente superiores às dos homens não afrodescendentes.
As disparidades nas taxas de pobreza entre os distintos grupos populacionais não se explicam apenas por variações conjunturais da economia, pois expressam a persistência de um ordenamento social historicamente estruturado por desigualdades raciais e de gênero.
A abolição formal da escravidão no Brasil, em 1888, deu-se sem a adoção de políticas públicas estruturantes que promovessem a inclusão socioeconômica da população negra recém-liberta, perpetuando mecanismos de marginalização que se renovam até o presente.
Ainda que políticas como as cotas raciais no ensino superior tenham contribuído para ampliar o acesso a determinados espaços institucionais, os efeitos do legado escravocrata permanecem na dificuldade sistemática enfrentada por pessoas negras para acessar serviços essenciais, como habitação adequada e saúde pública.
Essa exclusão se acentua especialmente entre os segmentos inseridos em condições precárias de trabalho, marcadas pela informalidade e pela ausência de proteção social, o que os expõe a maiores riscos de precarização material e insegurança socioeconômica.
Ainda segundo a CEPAL (2020), no Brasil, a taxa de pobreza entre mulheres afrodescendentes em domicílios monoparentais, atinge 35,5%, evidenciando o agravamento das desigualdades estruturais quando se cruzam gênero, raça e arranjos familiares. A desigualdade na divisão do trabalho não remunerado também é expressiva: mulheres afrodescendentes dedicam, em média, 12 horas semanais ao trabalho doméstico não pago, enquanto os homens afrodescendentes dedicam apenas 5 horas.
Essa sobrecarga compromete sua inserção no mercado formal de trabalho, aprofundando barreiras econômicas e sociais. Além disso, no que se refere ao rendimento mensal, as mulheres afrodescendentes recebem apenas 43% do que recebem os homens não afrodescendentes, revelando a persistência de desigualdades estruturais no mercado laboral brasileiro.
A condição estrutural das mulheres negras no Brasil é marcada por sua inserção majoritária em atividades historicamente desvalorizadas, como o trabalho doméstico, caracterizado por baixa remuneração e alta informalidade.
Já no final dos anos 1970, Lélia Gonzalez chamava atenção para a permanência da lógica colonial e escravocrata nas estruturas sociais brasileiras, evidenciada pela atualização de estereótipos como o da “mulata” e da “mãe preta”. Esses arquétipos, longe de serem inofensivos, funcionam como dispositivos simbólicos de subalternização, ao atribuírem às mulheres negras papéis historicamente desvalorizados e vinculados ao cuidado, à sexualização e à servidão.
Tal processo contribui para a naturalização de sua presença em ocupações precárias e mal remuneradas, consolidando sua posição de vulnerabilidade socioeconômica e invisibilizando as dimensões raciais e de gênero que sustentam essa marginalização.
Essa invisibilização, contudo, não se restringe à esfera simbólica e cultural, mas se reproduz nos próprios instrumentos técnicos que sustentam a produção de dados e diagnósticos oficiais sobre a pobreza. Tais dispositivos, ao operarem majoritariamente com categorias agregadas, abstratas e descontextualizadas, contribuem para a neutralização das desigualdades estruturais que articulam, de forma indissociável, raça, gênero e classe.
Nesse contexto, torna-se imperativo o desenvolvimento de críticas interseccionais dirigidas às métricas adotadas por organismos internacionais e sistemas estatísticos nacionais, cujas metodologias tendem a obscurecer as múltiplas formas de subordinação vividas por mulheres negras.
Conforme argumenta Kimberlé Crenshaw (1991), mesmo quando os dados são desagregados por gênero e raça, persistem equívocos analíticos recorrentes que comprometem a eficácia da análise interseccional: a superinclusão e a subinclusão. A superinclusão manifesta-se quando condições que afetam desproporcionalmente as mulheres negras — como a informalidade laboral ou a chefia de domicílio em contextos de pobreza — são generalizadas como problemas comuns a “todas as mulheres”, apagando os efeitos estruturantes do racismo.
Por sua vez, a subinclusão ocorre quando vivências específicas das mulheres negras — como a solidão afetiva, a sobrecarga reprodutiva e o abandono institucional — não são sequer reconhecidas como questões de gênero, por não se alinharem às experiências normativas de mulheres brancas de classe média, que historicamente hegemonizam a definição da categoria “mulher” no campo dos feminismos institucionalizados.
Tais distorções evidenciam os limites de abordagens que desconsideram os múltiplos eixos de opressão, reiterando a urgência de métricas capazes de traduzir as complexidades das desigualdades vividas pelas mulheres negras em contextos marcados por heranças coloniais e estruturas racializadas.
Superar tais limitações exige a construção de indicadores ancorados em princípios interseccionais, decoloniais e nos aportes dos feminismos decoloniais e negros latino-americanos.
No contexto do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, essa reflexão adquire ainda mais força, ao reafirmar a urgência de enfrentar as estruturas que mantêm as mulheres negras como as mais pobres dentre os pobres.
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