17 Julho 2025
“Minha família está nessa terra há quase cinco décadas, desde o tempo do meu avô. Isso é tudo que temos. Nossa casa e nossa rocinha, onde a gente planta arroz, macaxeira, feijão”, diz Magdiel Pereira Silva, 46, que vive com a mulher e três filhos na comunidade Sapucaia, localizada entre os municípios de Vila Nova dos Martírios e São Pedro da Água Branca, no Maranhão.
A reportagem é de Gil Alessi, publicada por Repórter Brasil, 16-07-2025.
Sua família é uma das mais de 700 que vivem sob a ameaça de uma reintegração de posse determinada pela Justiça maranhense em favor da Suzano S.A., multinacional brasileira de papel e celulose. A ação, que estava prevista para esta terça-feira, 15 de julho, foi suspensa por 60 dias na quinta-feira anterior (10). Se concretizada, mais de 2 mil pessoas podem ser despejadas.
“Esse povo todo que querem tirar dali, a gente vai sangrar, não tem como não sangrar. A gente só sabe cultivar a terra para comer. Imagina como vai ficar a mente de uma pessoa nessa situação? O nosso sentimento não dá para colocar em palavras”, lamenta Silva, que também desempenha a função de presidente da Associação de Moradores da Comunidade do Sapucaia.
A empresa alega que desde 2009 é proprietária da fazenda Jurema, onde fica a comunidade, e pretende usar a terra como área de compensação ambiental. A companhia possui plantações de eucalipto em uma fazenda vizinha.
Ao suspender a reintegração, o desembargador Marcelo Carvalho Silva acatou um pedido da Defensoria Pública do Estado do Maranhão, que afirmou faltar estrutura e coordenação dos órgãos municipais e estaduais para proteger as famílias que seriam removidas da área. “Diante da magnitude da medida, que envolve a remoção de mais de duas mil pessoas, constato que o prazo fixado se mostra demasiadamente reduzido, inviabilizando o exercício adequado da atuação estatal e o cumprimento das obrigações constitucionais mínimas de proteção às populações vulneráveis”, escreveu o magistrado na decisão.
Além de questionar a capacidade dos municípios de lidar com a enorme demanda provocada pela possível retirada das famílias, a Defensoria Pública emitiu, em 8 de julho deste ano, parecer contrário à reintegração. No documento, o órgão pede “que sejam adotadas as providências cabíveis para garantir a permanência das famílias vulneráveis residentes nos povoados Sapucaia, Riacho das Traíras, Palmeira e Canaã [comunidades estabelecidas dentro da área reivindicada pela Suzano], por meio da regularização fundiária das áreas por elas ocupadas”.
Um estudo realizado pela Defensoria chegou a confirmar que a comunidade Sapucaia está no local há pelo menos cinco décadas. A regularização fundiária teria como objetivo “assegurar não apenas o direito humano à moradia e à propriedade rural, mas também a concretização do princípio constitucional da função social da terra, conforme previsto na legislação vigente”.
Introduzido pelo Estatuto da Terra, de 1964, esse princípio foi incorporado pela Constituição Federal em 1988. Segundo o artigo 186 da Carta Magna, a função social é cumprida quando a propriedade atende, simultaneamente, a critérios de produtividade e de respeito a trabalhadores e ao meio ambiente.
A suspensão da reintegração de posse, no entanto, é apenas um alívio temporário para as mais de 700 famílias ameaçadas de despejo, tendo em vista que não cabem mais recursos à decisão sobre a medida. “A meu ver, houve falha do Estado ao não garantir a essas famílias de posseiros o acesso formal à terra, e essa falha tem sido recorrente na Amazônia por falta de política de reforma agrária”, afirma o advogado Diogo Cabral, integrante do Conselho Estadual dos Direitos Humanos do Maranhão.
Ele questiona também a ausência de um plano adequado de reassentamento das famílias após a possível reintegração. “Para onde as famílias irão? E há a questão do trabalho e renda. Em várias comunidades já foi feito o plantio, então vão perder a colheita do ano”, diz.
Os moradores da comunidade Sapucaia também se apoiam em um parecer do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para contestar a remoção. No documento, de maio deste ano, o órgão se posiciona favoravelmente à destinação de partes da fazenda para fins de reforma agrária, mostrando, inclusive, intenção de comprar a área.
“Marcou-se a intenção do Incra em adquirir a área ou parte dela, por compra e venda, para destinação ao Programa Nacional de Reforma Agrária”, diz o parecer, que prossegue: “Concluiu-se que o imóvel possui viabilidade técnica, econômica e ambiental para criação de um projeto de assentamento capaz de beneficiar 805 famílias de trabalhadores rurais sem terra”. Ou seja, de acordo com o órgão, a medida incluiria tanto os moradores de Sapucaia quanto das outras três comunidades situadas na área reivindicada pela Suzano.
Ainda segundo o Incra, há “a expectativa de abertura de um canal que possibilite um acordo para que não seja necessária a execução da reintegração de posse, que invariavelmente conduziria centenas de famílias para uma situação de insegurança e ausência perspectivas, por falta de abrigo, trabalho e renda”.
Em nota enviada à Repórter Brasil, a Suzano afirma “ser a legítima proprietária da Fazenda Jurema e salienta que é inverídica a informação de que existiriam mais de 700 famílias na área há décadas”. A companhia diz ainda que “foram adotadas todas as medidas mitigatórias previstas na legislação estadual”, com apresentação, em março de 2025, de um “plano de reintegração humanizada”.
Por fim, a empresa acusa algumas comunidades que vivem na área de terem praticado “desmatamento, queimadas e furto de madeira nativa, causando danos significativos ao meio ambiente e às comunidades do entorno”. Leia a íntegra da nota da Suzano aqui.
No pedido de suspensão da reintegração, no entanto, a Defensoria Pública do Maranhão critica o plano de reintegração humanizada citado pela companhia. “A Suzano elaborou um plano e chamou de ‘plano de remoção [reintegração] humanizada’. Mas só porque colocaram ‘humanizado’ no nome não quer dizer que de fato seja”, diz o defensor público maranhense Lucas Uchôa.
De acordo com ele, o documento apresentado “foi unilateral, elaborado pela empresa e sem a participação das prefeituras envolvidas, que são as responsáveis pela recepção e acolhimento das famílias”. “Temos normativas que dizem como uma remoção coletiva deve ser feita, e, na nossa visão e na do desembargador [responsável pela decisão que suspendeu a ação], esses quesitos não foram cumpridos”, completa Uchôa.
Em relação às acusações feitas pela Suzano de supostos crimes ambientais cometidos pelas famílias que ocupam a área, o defensor público afirma que é preciso que haja “a individualização” de eventuais condutas criminosas. “Você não pode simplesmente culpabilizar toda uma comunidade por um crime de desmatamento ou queimadas”, argumenta.
Para Uchôa, uma reintegração feita de forma inadequada pode resultar em violência. “Se não houver um plano adequado de remoção, corremos o risco de ter um novo massacre do Eldorado dos Carajás ou um novo Pinheirinho”, alerta, referindo-se, respectivamente, ao assassinato de 21 trabalhadores sem-terra por policiais no Pará, em 1996, e à violenta reintegração de posse ocorrida em São José dos Campos (SP) em 2012, que resultou na morte de duas pessoas.
De acordo com Magdiel Pereira Silva, liderança de Sapucaia, a ameaça de despejo já provocou ao menos uma vítima fatal na comunidade. “Já tivemos um caso de óbito, do seu Raimundo, em 25 de abril deste ano. Ele já tinha um quadro de coração e pressão alta. E ficou muito nervoso com essa pressão para sair de lá e o risco de perder tudo”, conta.
A Polícia Militar do Maranhão já está com um plano montado para a retirada das famílias. Segundo um documento da corporação acessado pela reportagem, a ação de desocupação da área contaria com o apoio de 196 policiais militares, dez conjuntos de cavalaria e um helicóptero, em função do alto risco de resistência por parte dos agricultores e da possibilidade de conflitos violentos.
Silva acredita que pode haver enfrentamento com a tropa em função do desespero e falta de perspectivas na comunidade. “O clima é tenso. Tem um senhor de 80 anos, vizinho meu, que falou assim: ‘Olha, eu não vou sair. Estou preparado para matar e morrer, eu não tenho pra onde ir, vou sair pra quê? Melhor fazer uma tragédia e depois eu me mato'”, conta o agricultor.
O próprio presidente da Associação de Moradores da Comunidade do Sapucaia diz ter sido perseguido por motoqueiros quando estava atravessando a plantação de eucaliptos da Suzano em direção à sua comunidade, em junho deste ano. “Quando eu passei por eles, um deles falou: ‘É ele, dá a volta!’. Aí, vieram atrás de mim, e eu tive que largar minha moto na estrada e correr para dentro do mato. Consegui escutar eles dizendo: ‘vamos embora que ele também pode estar armado'”, relata.
A remoção das famílias também é criticada pelo prefeito de São Pedro da Água Branca, Samuel Kesley Ribeiro de Souza (PL). Ele chegou a enviar um ofício à Justiça em junho deste ano alegando que o município não está preparado para lidar com os efeitos da reintegração de posse: “Diante da dimensão social do impacto e da ausência de aporte estadual ou federal específico para essa demanda, a Prefeitura não dispõe de estrutura logística, técnica e orçamentária suficiente para absorver, de forma autônoma, os efeitos sociais da reintegração”, diz o documento.
Um mês antes, o CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, divulgou uma nota na qual manifesta “enorme preocupação com os fatos relatados” e critica a “ausência de cadastro atualizado das famílias ocupantes e a ausência de previsão de local adequado para reassentamento”. No texto, o CNDH afirma que “as famílias [que moram na fazenda Jurema] estão em situação de vulnerabilidade social e sobrevivem do trabalho no campo, e, portanto, não possuem alternativas de moradia ou trabalho”.
Também em maio, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Edson Fachin chegou a suspender a reintegração de posse da área, sob o argumento de que o plano para remoção apresentado pela Suzano não levou em conta algumas regras já determinadas pela corte para esse tipo de conflito, como a realização de tentativas de conciliação e inspeções judiciais para evitar a separação de integrantes de uma família. Porém, no mesmo mês, a decisão de Fachin foi derrubada pela Segunda Turma do STF, e o processo foi retomado.