08 Julho 2025
Os prejuízos incidem na conservação da biodiversidade, no aumento de incêndios e ameaçam a produção no campo
A reportagem é de Aldem Bourscheit, publicada por ((o))eco, 07-07-2025.
Grandes rios como Tocantins, Paraná e Xingu se formam no Cerrado, fazendo dele a “caixa d’água” do Brasil. Mas o desmate e as monoculturas comprometeram esse papel. Se a degradação não for contida e a vegetação nativa restaurada, os impactos serão ainda maiores, inclusive no agronegócio.
Engenheiro agrônomo e produtor de café certificado em Monte Carmelo, no noroeste de Minas Gerais, Marcelo Urtado e a família já sentem a força dessas mudanças. As secas pioraram nas últimas duas décadas, mas desde 2021 a situação é crítica. “Ninguém mais colheu bem”, relata.
A Fazenda Três Meninas, cujo nome remete às duas filhas e à esposa de Urtado, é uma das propriedades afetadas, assim como inúmeras outras no Cerrado. Contudo, os efeitos não se restringem ao campo. A queda na produção elevou o valor do café nos supermercados em quase 60%.
“Muita gente se preocupa com falta d’água ou preços altos, mas não liga isso ao desmatamento”, diz Yuri Salmona, doutor em Ciências Florestais e diretor do Instituto Cerrados. Uma investigação da Ambiental Media apoiada pela ong revela alguns vilões dessas crises.
Os números ajudam a entender. Apenas desde 1985, o Cerrado perdeu 22% da vegetação nativa, enquanto a área com soja aumentou quase vinte vezes, saltando de 6,2 mil km² para mais de 120 mil km² – semelhantes ao território do Amapá.
Doutora em Ecologia Vegetal e professora no Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB), Isabel Belloni Schmidt explica que o desmate reduz a infiltração de água no solo e a evaporação das plantas, secando e assoreando fontes de água. “Não é nada fora do esperado, mas é assustador”, conclui.
Outra parte do problema é a legislação frágil. Enquanto na Amazônia as fazendas devem manter até 80% da vegetação nativa, no Cerrado o percentual cai para de 20% a 35%. Isso levou à tomada de já metade do bioma pelo agro.
Esse desmate explosivo encolheu em quase ⅓ a vazão média nas bacias dos rios Araguaia, Paraná, Parnaíba, São Francisco, Taquari e Tocantins. Contadas em 24 horas, tais perdas de água abasteceriam o Brasil todo, por três dias e meio, aponta o trabalho.
Na região mais afetada, a Bacia do São Francisco – cuja transposição do rio serve boa parte do agro nordestino –, a vazão caiu pela metade. Isso se deveria à expansão da soja irrigada no território entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o Matopiba.
“Em locais onde seria mais importante proteger, para fortalecer nascentes, rios e a infiltração de água, estamos desmatando e usando excessivamente a água subterrânea”, pontua Yuri Salmona (Instituto Cerrados). “Trocaram a segurança hídrica de grande parte do Nordeste pela produção de soja”.
A devastação afetou até o ciclo da água. Nas mesmas bacias, está chovendo menos e mais água está evaporando. Na ponta do lápis, a pluviosidade caiu 21% e a evapotranspiração aumentou 8%. Ou seja, o Cerrado está mesmo secando.
Vale lembrar que as chuvas no bioma também dependem da umidade proveniente da Amazônia, sempre alvo de desmate e degradação florestal, destacam os autores da investigação. “A crise é causada em parte pela crise climática, mas uma parte relevante se deve ao mau uso da água e ao desmatamento”, ressalta Salmona.
No meio de campo entre quase todos os demais biomas, o Cerrado cobre ¼ do país e fornece água para 8 das 12 regiões hidrográficas brasileiras – grandes territórios com mais de uma bacia. Igualmente, quase toda a água do Rio São Francisco e do Pantanal vem do Cerrado.
O recurso também é crucial para os animais. A escassez os faz buscar água e comida cada vez mais longe, ficando mais expostos à caça e atropelamentos, destaca Isabel Belloni Schmidt, doutora em Ecologia Vegetal e professora no Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB).
“A seca diminui a qualidade dos ambientes naturais e reduz a área de vida de muitas espécies, que não têm para onde expandir seus territórios frente ao desmatamento e à fragmentação do Cerrado”, detalha a pesquisadora.
Outro efeito colateral da escassez e do desmate são os afogamentos de animais selvagens em canais de irrigação, tanto no Brasil quanto em vários outros países, revelou ((o))eco no especial Massacre Invisível.
A crise alcança igualmente as unidades de conservação, onde a estiagem reforça as chamas e os riscos à vida silvestre. “A intensidade, o tamanho e o período de risco dos incêndios aumentaram muito”, constata João Paulo Morita, coordenador de Manejo Integrado do Fogo no ICMBio.
A política de manejo do fogo, além de investir em combate e prevenção – como as queimas prescritas, usadas em mais de 40 reservas naturais federais – dedica maior atenção às unidades com turismo, como parques nacionais. Nessas, são definidas de rotas de fuga ao fechamento temporário ao público.
Além disso, Morita explica que o fogo no Cerrado não pode ser simplesmente extinto, pois tem funções ecológicas e sociais. O caminho é ordenar e controlar seu uso, diz. Para ele, medidas como essas são pioneiras. “Nenhum país tem uma política assim”, afirma.
Populações indígenas e tradicionais da mesma maneira têm seus afazeres, culturas e economias ameaçadas pela devastação do Cerrado. “Povos tradicionais têm dificuldade de assimilar essas mudanças”, avalia Rafael Gava, presidente da Rede Nacional de Brigadas Voluntárias (RNBV), com pessoas do país todo.
O grupo enfrenta crescente demanda pela crise climática, que torna as florestas mais vulneráveis ao fogo. “Qualquer fagulha cause grandes incêndios”, alerta Gava. Como mais de 95% dos focos têm origem humana, é preciso atenção constante. “As brigadas são ‘extintores’, mas atuam também com prevenção, educação e restauração ambientais”.
A Rede se reuniu semana passada, em Brasília (DF), debatendo como ampliar a proteção ambiental e melhorar políticas públicas para reconhecer e apoiar seu trabalho. “Os voluntários têm contas para pagar”, lembra Gava.
Um clássico de Zé Keti descreve que “se não tem água, eu furo um poço”. A letra do samba Opinião trata da vida nos morros cariocas, mas o trecho cabe hoje no comportamento de boa parte do ruralismo, que expande desabaladamente o uso de água subterrânea.
A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) mostra que 70% da área irrigada com pivôs centrais no Brasil está no Cerrado. A técnica é uma das mais dispendiosas de água e segue em franca expansão, inclusive no Distrito Federal, de onde fluem águas às bacias dos rios Paraná, São Francisco e Tocantins-Araguaia.
Na mesma região, ambientalistas e movimentos sociais tecem duras críticas a uma projetada termelétrica, movida a gás natural, que emitiria 4,7 milhões de toneladas de CO2 por ano, destruiria 32 ha de Cerrado e usaria 144 mil litros diários de água.
Conforme Isabel Belloni Schmidt, da Universidade de Brasília (UnB), isso tudo explode o consumo do recurso e piora a crise do bioma. “Estão resolvendo problemas imediatos, mas toda essa água usada vai faltar em algum lugar e algum momento”, avisa.
Contudo, a realidade já bate à porta. O uso excessivo de água e desmate e encolheram a pluviosidade até na capital federal. “Não chove mais em setembro em Brasília e o mês que tinha mais chuvas, o de janeiro, está tendo perdas de até 40%”, ressalta Schmidt.
A escassez de água reforçada pela destruição do Cerrado e crise do clima deveria deixar produtores rurais com as barbas de molho. Um estudo publicado na revista Nature alerta que a escalada das temperaturas reduzirá muito a produção de itens como milho, soja, trigo, arroz, mandioca e sorgo.
A pesquisa analisou mais de 12 mil regiões em 54 países para concluir que as áreas agrícolas mais produtivas, os “celeiros do mundo”, serão desproporcionalmente afetadas, exacerbando a insegurança alimentar e espalhando a fome, sobretudo em países mais pobres.
Diante disso, conter a destruição é urgente. “Não há mais argumentos para seguir desmatando”, avalia Yuri Salmona (Instituto Cerrados). “Também é preciso demarcar territórios de povos tradicionais, que convivem com o Cerrado de pé, e ampliar áreas de conservação, hoje de apenas 9% do bioma”.
Também é preciso investir na recuperação da vegetação nativa e em técnicas produtivas que ajudem a manter o Cerrado. É o que fez a família de Marcelo Urtado na Fazenda Três Meninas (MG). Depois de 5 anos investindo numa agricultura regenerativa – com técnicas como cobertura de solos e reforço da vegetação nativa – a produtividade foi mantida e a propriedade foi reforçada contra a crise climática.
Segundo ele, as medidas melhoram o microclima da fazenda – foram medidos até 20ºC de diferença entre áreas cobertas e descobertas – e hoje há mais água até o final da seca, na florada do café, que é muito sensível às variações de temperatura. Sem isso, os prejuízos seriam enormes.
“Mesmo se o clima não mudar, se não der nenhum outro problema, ganhamos com a maior oferta de água, como se fosse um seguro”, destaca Urtado, que também é presidente do Consórcio Cerrado das Águas (CCA), que dissemina técnicas produtivas associadas à conservação para enfrentar as mudanças climáticas.
Isabel Belloni Schmidt (Universidade de Brasília) assina com outros autores um artigo publicado no Journal of Applied Ecology. No trabalho, eles mostram que a imprensa e as pesquisas privilegiam as florestas em detrimento dos campos e das savanas mundiais, como o Cerrado.
“As pessoas não têm uma sensibilização para qualquer outro tipo de vegetação que não seja floresta”, diz a cientista. “Quando isso acontece, você desconsidera a água e outros serviços que outros ambientes produzem, como se pudessem ser livremente desmatados”.
Segundo Yuri Salmona (Instituto Cerrados), esse cenário de impunidade e descaso é cotidiano. “Quem formula as leis e toma decisões políticas são vinculados aos grandes latifúndios”, afirma. “Eles replicam e defendem os interesses de quem lucra com a destruição ambiental”.
Diante desse modelo insustentável, que concentra terra, seca rios e alimenta desigualdades, o Brasil pode repetir os erros ou cultivar soluções enraizadas na conservação ambiental e no respeito às populações que mantêm o Cerrado vivo.